Aos 46 anos, Tiago Dores lança-se nas redes sociais. Ok, é mais complexo do que isso. O guionista e o humorista lançou o seu primeiro projeto em nome próprio, "Política Para Quem Não Tem Pachorra para Política", disponível no Instagram e também em formato podcast.

Há vida além do Gato Fedorento, projeto fundado em 20o3 por José Diogo Quintela, Miguel Góis, Ricardo Araújo Pereira e Tiago Dores, e é dessa vida que nos fala o humorista, guionista e cronista do jornal online Observador. Tiago Dores não rejeita o passado, sobre o qual fala com minúcia e desassombro, explicando também as circunstâncias que o fizeram não voltar a trabalhar com os colegas do coletivo (que estão atualmente no formato da SIC "Isto é Gozar com Quem Trabalha").

A política está presente ao longo de quase toda a conversa, em particular o seu posicionamento, à direita, e o extremar de posições que, quer em Portugal quer em países como os Estados Unidos, colocaram quase em barricadas opostas pessoas que tinham, antes, ideias semelhantes.

Como é que está a ser competir com influenciadores?
(risos) Acho que não estou nesse campeonato! Gostava de saber responder de uma forma até mais tecnológica mas, na verdade, não percebo nada destes novos meios. Mas percebi que, aparentemente, hoje em dia, há muita gente a procurar conteúdos nestes novos meios. É esse o meu objetivo, fazer as coisas que faço para chegar ao maior número de pessoas possível. 99% do tempo que passei a escrever humor foi para televisão. Sou um senhor de outro tempo, em que estas coisas aconteciam quase estritamente na televisão.

Embora os Gato Fedorento tenham sido pioneiros no digital, inicialmente na blogosfera.
Sim, foi naquela altura do boom dos blogues, em que nós também começámos. Pensei que se iria referir ao facto de termos surgido na SIC Radical quase em simultâneo com o surgimento do Youtube. Quando começámos a fazer as coisas na televisão, mesmo antes do surgimento dessas plataformas e das redes sociais, beneficiámos imenso da divulgação em formato digital, na altura por mail, principalmente. Havia uma rede social informal, não no sentido em que conhecemos hoje, mas na divulgação por essa via.

É cronista do jornal online Observador desde 2018. Sendo um órgão de comunicação social com um posicionamento à direita, como é que está a ser ao nível da experiência de hate [ódio]?
É pá, gostava de ter mais! Era sinal de que havia mais gente a ler. O universo do Observador e, por inerência, dos leitores do Observador, irá mais ao encontro das coisas que eu escrevo. Também confesso que, não porque não tenha algum interesse em saber o que é que as pessoas pensam, mas não costumo dedicar muito tempo a ver comentários. Quando se trata de opinião mais vincada do ponto de vista ideológico, é natural que atraia uma espécie de espectador ou de leitor mais propenso a ter vontade de escrever coisas desagradáveis. E a internet em si presta-se a isso. É mais provável que uma pessoa que odeia escreva um comentário do que uma pessoa que adora, e mais provável ainda do que uma pessoa que acha só normal o que está a ler.

O Tiago faz ainda parte do podcast Comité Central. Como é que se junta ao Carlos Guimarães Pinto [economista e fundador da Iniciativa Liberal] e ao Alberto Gonçalves [cronista do Observador] ?
Porque sou interesseiro. Tinha mesmo muita vontade de fazer qualquer coisa com o Alberto, sou leitor das coisas dele há muitos anos. Nós tínhamo-nos cruzado muito brevemente quando estive com os Gato Fedorento no Porto a fazer um espetáculo. Houve um jantar com algumas pessoas e o Alberto estava presente. Mais recentemente, tornei-me ainda mais fã das coisas que ele escreve e tinha mesmo muita vontade de conversar com ele sobre assuntos. Quando nos tornámos ‘colegas’ no Observador, a primeira coisa que fiz foi pedir ao José Manuel Fernandes o contacto dele. Desafiei-o na altura para apresentar o livro que lancei com as crónicas do primeiro ano e ele simpaticamente aceitou. A partir daí, falei-lhe na ideia de fazermos uma coisa deste género, com outra pessoa. Ele mostrou-se muito interessado, para surpresa minha e, a partir daí, começámos a perceber quem é que gostaríamos de convidar para ser o terceiro elemento do Comité Central.

A certa altura, mais ou menos por acaso, ele falou disso ao Carlos. E, algo surpreendentemente para mim, o Carlos aceitou o convite. É o elemento perfeito que faltava. Porque eu e o Alberto dizemos muita coisa mas eu, principalmente, sei muito pouco. O Carlos traz uma componente muito didática que é ótima. Eu tinha a referência do podcast do Joe Rogan — que agora tem estado muito na berlinda nas últimas semanas — na perspetiva de ser um humorista que tem uma postura muito interessante para com os convidados. Muitas vezes são pessoas com um nível de conhecimento que ele próprio assume que não tem nada que ver com aquilo que ele sabe. Essa era também a minha ideia, de poder contar com o Alberto e com o Carlos para lançar alguns assuntos e tentar aprender alguma coisa com isso.

Quão disruptivo é ser humorista, de direita, e escrever sobre isso em Portugal? Eu não conheço ninguém que, fazendo humor, assuma a sua posição ideológica sendo de direita.
Só o Zé Diogo Quintela.

Mas o José Diogo não faz aquilo que o Tiago faz.
Talvez. Embora ele exprima essas opiniões, se calhar de forma menos aberta, mas também há muito tempo. Eu acho que é importante conversarmos sobre as coisas e podermos ter pontos de vista diferentes e tentar, a partir daí, melhorar as ideias que existem. Não tenho uma pretensão especial a esse nível, mas o meu processo foi um bocadinho esse. Sempre me considerei uma pessoa de esquerda e, pelo simples facto de ter sido confrontado com uma série de opiniões de várias pessoas de direita, que tinham opiniões bastante diferentes daquelas que eram as que eu tinha, me despertaram para uma série de pontos sobre os quais eu nunca tinha ponderado devidamente. E acho que isso é interessante, essa capacidade de ouvirmos pontos de vista diferentes e, a partir daí, mudarmos (ou não) a nossa opinião.

O pior que pode acontecer é descobrirmos ideias melhores. Pode acontecer também que não, que estamos corretos e, para o ego, é muito melhor. Num caso ou noutro, o resultado é bom. Vivemos há quase 50 anos em democracia e é bastante sintomático que ainda coloquemos as coisas nestes termos. Eu acho triste. O que eu acho bastante interessante no Observador, e mesmo tendo uma linha editorial bastante definida, há uma componente de colunistas que é bastante posicionada mais à direita. A redação bastante menos porque os jornalistas tendem a ser pessoas mais jovens…

… pessoas mais de esquerda.
Sim, mas como são jovens… diz-se que o cérebro só está completamente formado aos 25. Portanto há tempo, as pessoas têm tempo para chegar lá. Mas mesmo no Observador, acho essa discrepância bastante evidente. O que eu acho que marca a diferença é um conjunto de colunistas com os quais eu também fui aprendendo muito ao longo dos últimos anos. São pessoas com as quais eu passei a olhar estes assuntos de uma perspetiva um bocadinho diferente e rearrumei as minhas ideias de forma um pouco diferente.

À parte de Portugal ser um mercado muito pequeno, quer em termos televisivos, quer do que é rentável fazer nas plataformas digitais, porque é que acha que há tão pouca gente a fazer humor sobre política? Nos Estados Unidos, há uma panóplia de pessoas, desde o John Oliver, ao Jon Stewart… Em Portugal, na televisão, há o Ricardo Araújo Pereira.
Sim, o Ricardo. E embora agora ele tenha uma equipa de escrita mais alargada, é difícil manter um programa daqueles durante muito tempo na televisão. Semanalmente ainda se consegue. Um programa como “Daily Show”, que o Trevor Noah apresenta, tem 20 ou 30 guionistas e, até há pouco tempo, dava três ou quatro vezes por semana. Provavelmente tem uma estrutura de produção que nenhuma televisão em Portugal tem e aquilo é um mero programa visto por escassos milhões. Para a população americana, é uma coisa absolutamente de nicho. O mercado é um dos motivos e, depois, não existe tradição de humor político em Portugal. Acho que todos conhecemos um bocadinho pior, por questões de preponderância cultural, o mundo não anglo-saxónico. Mas pelo menos no mundo anglo-saxónico há uma tradição que não existe em mais lado nenhum. Desde logo de debate político, que é muito mais aceso e permanente, e depois de programas sobre isso. Há toda uma cultura em torno do humor e, consequentemente, do humor político, que não há em mais lado nenhum.

Pode ser otimismo parvo da minha parte, mas quero acreditar que, em Portugal, há uma malta mais jovem, que acaba os seus cursos agora, até muito por força dos constrangimentos dos últimos anos em termos de mercado de trabalho, da perspetiva que essa malta tem do que é que vai ser o futuro deles. E, principalmente nessas faixas etárias, se percebe que é importante conversar sobre alternativas, sobre outras formas de gerirmos isto. Que é tudo o que nos interessa. Conseguirmos construir aqui uma coisa que nos dê umas perspectivas um bocadinho mais otimistas em relação ao futuro. Acho que esses miúdos pensam mais dessa forma. Consequentemente, os pais desses miúdos também. Pode ser impressão minha, mas poderá finalmente começar a haver um bocadinho mais de interesse em falar noutras formas de nos organizarmos e tornarmos este sítio onde vivemos um bocadinho mais interessante. Estas discussões sobre política, e também num formato humorístico, poder-se-ão tornar mais relevantes e atrair mais pessoas.

Recebeu convites de algum partido para se juntar à vida política ativa?
Não. Outro dia vi um anúncio da Iniciativa Liberal. Estavam à procura de assessores e eu, por piada, perguntei ao Carlos Guimarães Pinto: ‘ o que é que achas de me candidatar a isto?’. E ele, de forma muito simpática, deu-me a entender que eu não tinha qualificações. Ambições que eu tivesse ao nível de uma carreira política —  que não tenho — caíram um bocadinho por terra. Há alguns casos de malta que sabe sobre assuntos. Eu não tenho a veleidade de achar que podia uma mais valia nesse aspecto.

Mas se lhe fizessem um convite, recusaria?
À partida, sim. Mas num cenário tão hipotético, não sei. Nunca foi uma hipótese que eu tivesse colocado sequer. É giro estar de fora a mandar bocas. Não digo que não possa ser interessante e desafiador experimentar ir para dentro do campo. Eventualmente sim, mas não sei.

"Como é que me desligo do Gato Fedorento? Francamente, nunca foi uma grande preocupação"

Houve algum momento específico em que decidiu não fazer mais projetos com os Gato Fedorento ou foi mais circunstancial?
Foi mais circunstancial, sim. Quando se pôs a hipótese concreta de voltarmos a fazer um programa em 2015, na TVI [nr: "Gato Fedorento: Isso é tudo muito bonito Mas"], depois de já não fazermos nada desde 2009, foi meramente circunstancial. Por motivos familiares, foi-me absolutamente impossível aceitar esse desafio na altura. Era um formato do género do que o Ricardo está a fazer neste momento, mas diário, que abrangia as semanas antes e depois das eleições legislativas. E eu não tive hipótese de aceitar esse convite, de me comprometer com o volume de trabalho e exigência de um programa daqueles. Na altura seria escrito só por quatro pessoas. A partir daí, e nos dois anos logo a seguir, mantive-me entretido com outras coisas que não tinham nada que ver com televisão, nem sequer com a escrita de conteúdos para outros meios, e isso coincidiu mais ou menos com a altura em que eu me confrontei mais com estas outras perspectivas sobre a política.

Ao fim de um tempo, tive a veleidade de achar que podia escrever qualquer coisa humorística para o Observador. O processo, depois, acabou por dar-se naturalmente. Eu não tinha assim uma vontade por aí além de voltar à televisão e deu-se essa oportunidade de ir trabalhar com o Observador, que eu tive muita sorte em conseguir. Mais tarde, vim a fazer rádio no Observador e o caminho acabou por ser esse. O Ricardo, o Zé e o Miguel também se organizaram de outra forma, com uma equipa diferente e maior. Não houve esse momento em que eu tenha decidido em definitivo não fazermos mais nada juntos, mas também não se prestou depois uma oportunidade, enquanto Gato Fedorento, para fazermos alguma coisa juntos.

Acha que algum dia isso vai acontecer?
Não sei. Não vejo em concreto essa possibilidade. Se ela se poderá por algum dia, em circunstâncias que não consigo antecipar agora… Mas neste momento, não. Talvez quando formos muito velhinhos e for preciso pagar lares e assim, e os filhos já se tiverem borrifado em nós e tiverem ido todos trabalhar para o estrangeiro porque não há trabalho em Portugal.

Como é que, depois de se pertencer a um fenómeno como os Gato Fedorento, se constrói uma identidade própria enquanto humorista, enquanto guionista?
Não sei. É não ligar a isso e continuar a fazer as coisas que nos apetece fazer. É manter o mesmo princípio que nos norteava nas coisas que fizemos para o Gato Fedorento: fazermos aquilo de que gostamos e depois logo se vê se há mais gente que gosta. Se houver muita gente que gosta, ótimo. Se não houver e isto não tiver pernas para andar, vamos tentar fazer outra coisa. Não vale a pena tentar racionalizar muito mais a coisa porque é infrutífero.

Tal como não valia a pena, na altura do Gato Fedorento, como muita gente queria, em muitas circunstâncias, que nós fizéssemos: ‘pensar o que é que o vosso público gosta para apostarem mais neste tipo de coisa e afinar uma estratégia…’. É brincar às probabilidades. É infrutífero e acaba por condicionar aquilo que se quer fazer. Às tantas o que estás a fazer já não é o que queres fazer, já te estás a autocensurar por uma variedade de fatores que não tem nada que ver contigo nem com o que podes pensar sobre o que te rodeia. É fazer o que nos apetece fazer, da melhor forma que conseguimos, tentando ir apurando aquele que achamos que é o nosso registo e descobrir aí um caminho. Não no sentido como me colocou a questão, como é que me separo do Gato Fedorento, mas no sentido de eu descobrir o caminho para as coisas que eu quero fazer.

Isso põe-se a um nível mais pessoal, por exemplo, com este formato que estou a fazer para as redes sociais sobre política. Eu próprio estou a descobrir o que é que eu gostava que aquilo fosse. É um processo. Estas coisas, ainda para mais em Portugal e como acontecia na televisão, estas coisas não se testam. Não se fazem episódios piloto com um público ao vivo, a ver o que é que funciona. Isso não existe. É ir tentando descobrir o que é que se pretende fazer, apurando o estilo que se quer dar a determinado conteúdo. Agora, como é que me desligo dessa questão do Gato Fedorento? Francamente, nunca foi uma grande preocupação. Vou fazendo o que acho que devo fazer e o que me apetece fazer. Depois logo se vê se há alguém interessado em comprar, no sentido literal e não literal da questão.

"Francisco Penim disse-nos qualquer coisa do género: ‘isto vai vender 50 mil exemplares’"

Corrija-me se estiver errada: o seu primeiro trabalho foi n’"O Programa da Maria"?
Está um bocadinho errada, mas tem um bom motivo para estar errada. Em muito poucas ocasiões eu, o Ricardo [Araújo Pereira] e o Miguel [Góis] falámos do nosso primeiro trabalho pago como guionistas. Foi para uma revista chamada “20 Anos”, algures em 1996 ou 97. Outro dia, em conversa com o Edson Athayde, falei-lhe nisto e diz-me ele ‘é pá, eu lancei essa revista!’. Ainda antes de qualquer um de nós se ter juntado às Produções Fictícias, o Ricardo e o Miguel abordaram-me no sentido de criarmos uma empresa para produzir conteúdos humorísticos para a comunicação social. E nós criámos essa empresa, que se chamava Argumentos de Peso. E produzimos esse trabalho, que foi vendido à revista “20 anos”. Mas foi o único que tivemos tempo para fazer porque, muito pouco tempo depois, o Ricardo foi convidado para as Produções Fictícias (PF) e nós abandonámos esse projeto, que tinha como objetivo ser concorrencial das PF. Mas não só vendemos, como recebemos dinheiro por ele! Acho que esse foi o primeiro trabalho pago.

Era sobre o quê?
Homens e mulheres. Era destinado a um público jovem, com aquelas questões normais de fim de adolescência, início da idade adulta. Era sobre diferenças entre homens e mulheres, casados e solteiros. Havia um quadro que comparava os medos dos homens solteiros e dos homens casados. E de um dos lados elencava várias coisas, e uma delas era ‘os homens solteiros têm medo do compromisso e os homens casados têm medo do ‘compra-me isso’. É giro, tem de concordar.

Tinha piada em 96, 97…
Acha que passou um bocadinho (risos) ?

Se calhar, há pessoas que ainda acham piada. Eu, como mulher, não acho. Mas pronto.
É possível. É possível que isso seja uma coisa um bocadinho transversal às coisas que nós fomos fazendo ao longo do tempo e que, provavelmente, ainda fazemos hoje.

Acho que a maior parte das coisas envelheceu bem.
(risos) Ok, já não é mau.

Mas perguntava-lhe sobre o primeiro trabalho para televisão. Não fui específica.
O motivo pelo qual eu e o José Diogo Quintela somos contratados pelas PF para colaborarmos foi esse projeto, “O Programa da Maria”, na SIC. Estávamos no final de 2000. Esse foi o primeiro projeto para televisão, sim.

Foi um dos poucos programas de humor televisivo liderados por uma mulher, além da “Mulher do Senhor Ministro”, da Ana Bola.
Sim, e foi um bocadinho maltratado porque tivemos azar com o timing do programa. Foi na altura da histeria do “Big Brother”, na TVI, e a SIC estava numa onda também meio de desespero, a tentar contraprogramar para fazer face ao “Big Brother”. Então aquilo foi chutado quase semanalmente de horário para horário e nunca conseguiu fidelizar muito o público. Mas, para quem já estava nas PF antes, como Ricardo e o Miguel, e para mim e para o Zé obviamente, chegámos ali e aterrámos logo num projeto. Temos de ter noção que a produção de televisão, naquela altura, era uma coisa a uma escala grande. Eram produções pesadas e nós aterramos ali num primeiro projeto em que estamos envolvidos com uma equipa enorme de produção.  Para nós, o facto de termos tido oportunidade de trabalhar nas PF, logo naqueles projetos do Herman e da Maria, foi uma escola!

Quando começamos os Gato Fedorento, em 2004, com zero experiência de protagonizarmos programas de televisão, a verdade é que já tínhamos, no caso do Ricardo, seis anos, no do Miguel, cinco, no meu e do Zé, três, quatro anos de trabalho intensivo em televisão que não se limitava à escrita de sketches. Quando chegamos a um programa de televisão, embora a vontade de o fazermos tenha sido recebida com alguma frieza compreensível, diria eu, por parte da SIC Radical, porque ninguém nos conhecia de lado nenhum, a verdade é que trazíamos alguma bagagem a esse nível. O processo estava longe de ser uma novidade para nós. Não só da escrita como, depois, da produção também.

Qual é o momento específico em que percebem que o Gato Fedorento está a ter uma dimensão considerável?
Há um momento muito fácil de identificar: a altura do Natal de 2004, quando pusemos à venda o DVD da primeira temporada [“Série Fonseca”]. Nós queríamos muito fazer DVD, na altura vendia-se muito, tínhamos muita vontade de ter a coleção do Gato. Quando chega a altura de lançar o DVD, o histórico que havia no mercado nacional dizia-nos que o que tinha vendido mais era ou do Fernando Rocha ou do Herman. E teria vendido 13 mil ou 15 mil exemplares. E nós achámos otimista, mas tínhamos aquela esperança de nos podermos aproximar um bocadinho desse valor. Sabíamos que a SIC Radical, nas semanas em que corria bem, trazia-nos mais ou menos 15 mil espectadores por programa. Pensámos que se, conseguíssemos uma segunda e fazer os 10 mil, ótimo. Mais do que isso já seria uma coisa extraordinária.

Muito contrariamente à nossa opinião, e que revelou um visionarismo chalupa na altura, Francisco Penim, na altura diretor da SIC Radical e agora repórter de guerra na CMTV, disse-nos qualquer coisa do género: ‘isto vai vender 50 mil exemplares’. E nós ‘este gajo não bate bem da cabeça’. Nós íamos tendo algum contacto com a editora e começou a dar indicações de que havia mais pedidos. E acabámos por chegar aos 60 mil DVD vendidos. E isso despertou-nos para a ideia de que, provavelmente, havia um bocadinho mais de gente a ver o programa do que nós imaginávamos. Também nos apercebíamos de que havia muitas partilhas por mail. Ainda assim, parecia-nos uma coisa um bocadinho restrita. Mas esse foi o primeiro momento. Aquilo foi o presente de Natal que muitos infelizes terão recebido nesse ano.

Analisando estes 25 anos em que está ativamente no mercado do humor, como é que acha que isto evoluiu? Está melhor, pior, mais interessante, mais diversificado?
Mais diversificado está certamente porque a diversificação de plataformas em que é possível colocar trabalho para ser visto também é muitíssimo maior. Tenderei a dizer que isso só traz aspectos positivos. A existência de mais conteúdos só pode ser boa. Traz é o problema acrescido de ser difícil mantermo-nos a par do que é que existe.

Isso traz um problema para quem escreve humor, que era complicado há 20 anos e agora é incomensuravelmente mais complicado. Em 2000, se eu me lembrasse de uma piada para o editorial do Herman, mas aquilo me soasse a familiar, eu perguntava entre a equipa de escrita e alguém me dizia que o Jon Stewart ou o Jay Leno tinham feito uma coisa parecida. Hoje em dia qualquer ideia que eu tenha para uma piada, mesmo que faça uma pesquisa no Google, vai-me escapar alguma coisa. E nas redes sociais, certamente que já alguém teve senão a mesma ideia, que já escreveu, ou uma muito parecida.

"Em Portugal, neste momento, qualquer gajo que não é de esquerda é de extrema direita"

Gostava de saber a sua opinião sobre a cultura do cancelamento. Jon Stewart disse, em entrevista ao “The New Yorker”, algo como não é cultura do cancelamento, o que existe agora é muita gente a opinar sobre muita coisa. E que se um humorista opina sobre coisas, vai ter cada vez mais pessoas a opinar sobre isso. Acha que essa censura é real ou é o escrutínio que é mais visível do que era antes de haver redes sociais?
Acho que existe e há muitos casos que o ilustram. Um deles até é bastante antigo, foi talvez o caso que despertou as pessoas para esta questão. Não me lembro exatamente dos detalhes mas há uma senhora que vai embarcar num voo e envia uma mensagem com uma piada racista para um grupo de colegas. Ela embarca, desliga o telefone, por algum motivo essa piada sai do contexto, vai parar às redes sociais e a senhora, quando aterra, volta a ligar o telefone, é odiada por todo o mundo, está despedida do seu trabalho. Aquilo é uma conversa que, supostamente, é privada e é bastante assustador para qualquer pessoa pensar que as nossas conversas privadas de repente se torna públicas e se tornam passíveis de serem um instrumento para afetar a nossa vida nas mais diversas variáveis.

Hoje em dia, sei que as empresas, genericamente, fazem essas pesquisas nas redes sociais e há uma pressão muito grande, desde logo para uma autocensura e, depois, para uma censura efetiva de opiniões divergentes. E esta woke culture, fundamentada nestas questões da microagressões, dos safe spaces, e de uma cultura que entronca depois numa cultura de intersecionalidade, em que nós somos uma identidade que advém da cor da nossa pele, das nossas preferências sexuais, do que quer que seja, é uma coisa absolutamente grotesca e assustadora, porque é um retrocesso civilizacional evidente. Porque, do Martin Luther King até aqui, até há não muito tempo, tínhamos feito um caminho muito evidente no sentido de as pessoas serem avaliadas pelo conteúdo do seu carácter e não pela cor da sua pele. Já faltou mais, mas vai chegar lá em breve, Martin Luther King vai ser censurado por essa opinião. No Estados Unidos já se retiram estátuas do George Washington, porque tinha escravos…

Censuram-se livros.
Sim, queimam-se livros no Canadá, fazem-se fogueiras como na Alemanha nazi dos anos 30, com livros que têm conteúdos que não podem ser lidos e que agridem a identidade, seja lá o que isso for, seja lá de que pessoas forem.

Por outro lado, também se censuram palavras, como a lei “Don’t Say Gay”, que foi recentemente aprovada na Florida.
Eu tenho seguido muito de perto essa essa polémica e incentivo-a a ler um bocadinho mais sobre esse tema porque, naquela proposta de lei, a palavra gay não é referida uma única vez e não tem nada que ver com a palavra.

É uma lei anti-grooming.
É uma lei que proíbe o ensino a crianças do pré-escolar e até ao terceiro ano de tudo o que tenha a ver com questões de género. É só isso que a lei diz. O governador Ron DeSantis teve, nos últimos dias, intervenções que vale a pena ouvir em relação não só à lei, mas à interpretação que os media fizeram da lei e ao que a generalidade dos media está a transmitir sobre o que é a lei, que não é o que é a lei. Lá está: é um lado preocupante desta questão. Embora haja esta proliferação de meios de comunicação e de perspetivas diferentes sobre os mesmos assuntos, continua a haver uma capacidade muito grande da parte dos media tradicionais de passarem mensagens às quais falta a capacidade de serem vistas de uma forma um bocadinho mais isenta.

O problema não é os meios de comunicação terem um enviesamento ideológico. Não vejo nenhum problema nisso. Acho ótimo, até. O problema é precisamente meios de comunicação, com a influência que ainda têm, a CNN americana, a MSNBC, a CBS, a ABC, a NPR, e por aí fora, se dizerem isentos e passarem uma linha editorial e defenderem que são jornalistas equidistantes e depois construírem uma narrativa que é absolutamente enviesada. Por isso é importante ouvir a perspetiva, eventualmente mas assumidamente enviesada, do outro lado, para depois podermos tirar conclusões. Dá trabalho. É preciso perder muitas horas até estarmos confiantes quais são as fontes de informação em que podemos acreditar.

Só o facto de se usar a palavra “acreditar”, que tem que ver com crenças, que não tem a ver com racionalidade, em relação à comunicação social, já é um bocadinho assustador.
É bastante assustador. O problema reside aí, nos meios de comunicação que são totalmente enviesados e se vendem como sendo imparciais e equidistantes. O perigo não vem daqueles meios de comunicação associados à direita conservadora nos Estados Unidos, que têm uma linha editorial muito bem definida, que não a escondem de ninguém e que dão a perspetiva dele destes assuntos. Tu vês, confrontas com outras perspetivas e logo tiras as tuas conclusões. Mas que não chegam aos ouvintes e aos telespectadores querendo fazer acreditar que são isentos. É quase impossível, para quem não tem como trabalho escrever sobre estas coisas, e passar uma boa parte do dia a ler sobre estas coisas e a procurar perspetivas diferentes. Para uma pessoa normal, que só quer estar a par das coisas que se vão passando, é francamente difícil ter uma opinião que seja o resultado de uma ponderação das partes em conflito.

Quem é que o faz rir?
De há um tempo a esta parte, prestei mais atenção a um humorista norte-americano, Bill Maher. Ele tem um programa chamado “Real Time”, já tem 20 anos. Tem um registo muito pouco histriónico, e eu gosto disso. Um bocado na senda do Jon Stewart, um humorista que durante os seus anos no “Daily Show” teve uma influência muito grande até em coisas que fizemos no Gato Fedorento. Gosto do formato tradicional de talk show e do facto de ser mais virado para questões da atualidade política. Gosto muito do registo dele e, nos Estados Unidos, ele está agora uma posição muito interessante: ele é o que se pode chamar um liberal. Para os padrões americanos, é um gajo de esquerda. É um capitalista, claro, mas em termos de costumes, é um liberal: é um homossexual assumido que não tem filhos… é um libertário.

É um consumidor de drogas leves, segundo o próprio. Esse é o perfil dele. Apesar de tudo, em termos económicos, é um tipo de direita. Ele teve uma entrevista muito gira há poucos dias com o Ben Shapiro. Sendo o Bill Maher um liberal clássicos, hoje nos Estados Unidos todos os amigos de esquerda dele o veem como um tipo de direita. E o que ele dizia ao Ben Shapiro é exatamente isso: ‘eu fiquei exatamente no mesmo sítio. O panorama político é que levou uma guinada para a esquerda que me deixou muito mais perto dos tipos que são hoje os conservadores’. Hoje em dia, um tipo como o Bill Maher está muito mais próximo de um tipo como o Ben Shapiro, assumidamente um conservador de direita, do que está destes tipos progressistas, de extrema esquerda, que querem impor estas ideologias que chocam frontalmente com a história e com a tradição de liberdade em geral e especificamente de expressão nos Estados Unidos, que é a vida destes tipos.

Além de gostar muito do trabalho dele, gosto de ver como é que ele lida com isso. Porque eu sinto-me numa posição um bocadinho semelhante. Obviamente nos Estados Unidos tudo é mais extremo, porque as pessoas são muito mais livres em todos os sentidos e isso traz tudo o que é bom e mau. Em Portugal é um bocadinho isso também: eu mudei um bocadinho a minha perspetiva política neste contexto tradicional de esquerda e direita. Em cima disso, o panorama político nacional também levou uma guinada para a esquerda. A partir de 2015, isso torna-se óbvio, com o PS a romper aquela barreira histórica, que tornava o PS o partido que permitiu ao nosso País seguir um caminho o mais parecido com uma democracia liberal europeia do que com um país satélite da União Soviética, como a Albânia.

Eu cheguei-me um bocadinho para a direita, o País levou um supetão para a esquerda e, de repente, eu pareço um gajo… em Portugal, neste momento, qualquer gajo que não é de esquerda é de extrema direita. Não tenho utopia nenhuma em relação ao que Portugal ou outro país qualquer deveria ser. Só tenho a convicção profunda que devíamos caminhar um bocadinho mais no sentido oposto daquele para o qual temos caminhado nos últimos anos. No sentido de o Estado estar menos presente na nossa vida, do Estado desempenhar menos tarefas e se meter menos na vida dos cidadãos. Nesse equilíbrio entre poder do Estado e poder do cidadão, gostava só que caminhássemos um bocado mais para o poder estar do lado do cidadão.

Há algum português que o faça rir? Humorista.
Obviamente que rio-me muito com as coisas que o Ricardo faz e, por inerência, a equipa dele, onde estão o Zé e o Miguel. Continuam a ser, nesse aspecto, as minhas principais referências. Adoro tudo o que o Rui Unas faz. Sempre fui um fã. Confesso que não sigo muito de perto os humoristas desta nova geração. Gosto também de ler o Zé Diogo no Observador. Os podcasts que referi há pouco, nenhum é assumidamente humorístico mas por causa do tom satírico, que gosto muito. Gosto do contraste do registo sóbrio com esse tom humorístico.