Se tem uma relação com menos de um ano, aconselho que comece a ver "A Fall from Grace" com cuidado. Na primeira parte do filme, vai sentir-se desconfortável, irrequieto e extremamente preocupado com a pessoa que tem ao seu lado. É provável também que dê por si a avaliar os últimos meses da relação, ponderando seriamente se não estará a ser enganado.
"A Fall from Grace", que chegou ao catálogo da Netflix a 3 de janeiro, tem este efeito. É que não é fácil aceitar que todos nós podemos ser burlados desde que do outro lado esteja alguém disposto a isso. Os gestos mais românticos podem não passar de engodos, a paixão que evolui para amor apenas uma estratégia de um jogo de manipulação.
Não é fácil encontrar um filme que nos provoque tanto incómodo como este de Tyler Perry. Mas o produtor, argumentista e realizador consegue fazê-lo na perfeição, e na primeira metade do filme sentimo-nos com o estômago preso como se fosse carne dentro de uma alheira. Mas não me vou precipitar porque, se ainda não viu sequer o trailer, não faz a menor ideia do que estou a falar.
Ora vamos lá ao resumo (e não se preocupe, sem spoilers): Grace Waters (Crystal Fox) é uma mulher divorciada que vive sozinha há vários anos. Tem uma vida financeiramente estável, mas emocionalmente sente-se sozinha e carente. O filho casou recentemente, o ex-marido vive uma vida de sonho com a secretária que passou de amante a esposa e o amor parece sorrir a toda a gente menos a Grace.
É então que surge Shannon (Mehcad Brooks). Apesar de ser um homem mais novo e atlético, que à partida poderia procurar uma mulher mais dentro da sua faixa etária, Shannon apaixona-se perdidamente por Grace. Das conversas ao telefone pela madrugada fora até às flores, sem esquecer os encontros sucessivos e o respeito de aguardar para que Grace se sinta pronta para iniciar uma relação, ele é o homem perfeito.
Porque é que Grace é então acusada de matá-lo? A resposta terá de ser encontrada por uma advogada novata e inexperiente que, naquele momento, é tudo o que esta mulher tem.
Com 6/10 no IMDb, a crítica foi arrasadora
A "IndieWire" deu-lhe duas estrelas em cinco e é possivelmente o mais voraz a deitar abaixo esta que é a primeira longa-metragem de Tyler Perry para a Netflix. "Perry produziu um rabisco de novela que é tão má que chega a ser boa, com muitas reviravoltas para contar". Se continuar a ler dói ainda mais: "Perry fazia melhor figura se lançasse algumas das suas ideias aleatórias para realizadores jovens talentosos negros em vez de fazê-las mal sozinho".
Já o "The New York Times" critica a falta de originalidade do realizador que, novamente, volta a pegar na temática das mulheres tristes e oprimidas. "A sua persistente dependência de protagonistas oprimidas para salientar questões de misoginia e infidelidade prejudica o público que ele pretende conquistar".
Mais simpática é a americana "Variety" que, ainda assim, salienta que é um bom filme para quem foi criado à base de "uma dieta de ritmos e diálogos de novelas".
Como já percebemos, as críticas não são simpáticas. E isso é tão irritante. Ora vamos lá ver: nem todos os filmes têm de ter a complexidade de um "Birdman ou (A Inesperada Virtude da Ignorância)", a fotografia exímia de "Roma" ou os diálogos icónicos de "Casablanca". Nem todos os filmes são "O Padrinho", "Pulp Fiction" ou "Vertigo". Mas não deixam de ser bons naquele que é, afinal, o seu principal objetivo: entreter.
Vamos recordar-nos de "A Fall from Grace" daqui a dez anos? Não. E está tudo bem que assim seja. Continua a ser um filme emocionante, incómodo e imprevisível, que nos provoca um desconforto extremo na primeira parte, para logo de seguida nos levar numa carruagem descontrolada de emoções e imprevistos onde nada é o que parece.
A segunda parte, admito, tive que assistir no dia seguinte. "A Fall from Grace" é perturbador a esse ponto: não é boa ideia vê-lo sozinho à noite no quarto, caso contrário não vai parar de mexer com as suas próprias inseguranças. E se isto me estivesse a acontecer? Seria possível? E se todos os gestos de carinho, conquista e romantismo até então tivessem sido apenas manipulação?
Se chegarem a este nível de loucura, dou-vos um conselho: façam como eu e esperem pelo dia seguinte para acabar de ver o filme. Não há nada como um episódio de "Grace & Frankie" e uma boa noite de sono para voltar a respirar novamente.
Depois de superar que o meu próprio namorado não me estava a enganar, até porque (infelizmente) não sou dotada de uma conta bancária recheada, a segunda parte do filme levou-me para outra esfera. De repente, a narrativa evoluiu com uma rapidez colossal, e puxa-nos para caminhos que nunca tínhamos imaginado possíveis antes. O desconforto mantém-se, mas agora é cada vez mais viciante, descontrolado, inquietante.
Até porque não há heróis nem heroínas. Todas as personagens têm defeitos, são reais e humanas, algo que tantas vezes os filmes esquecem-se de representar. A advogada que aparece para tentar resolver este caso não é de todo uma heroína. Ela é fraca, confusa, às vezes até um pouco destrambelhada. E há um ou outro momento em que isso nos irrita solenemente mas, verdade seja dita, a humanidade também.
Dêem uma hipótese a "A Fall from Grace". Numa altura em que não há assim tanta coisa para ver nos catálogos de streaming, este filme é uma agradável surpresa para quem só quer ver a sua atenção captada do princípio ao fim. Perfeito não é, mas está muito longe de ser o desastre que querem pintá-lo.