Se já viu a mais recente aposta da Netflix, “Laundromat: O Escândalo dos Papéis do Panamá”, é provável que não consiga tirar da cabeça a prestação de Meryl Streep. Mais uma vez, a atriz de 70 anos volta a surpreender num papel que tem tanto de emotivo como de inspirador. Mas é verdade que houve uma viúva a investigar o caso dos papéis do Panamá?
A resposta é não. O realizador Steven Soderbergh sentiu necessidade de dar um rosto humano ao esquema fraudulento que abalou o mundo em 2016, no entanto Ellen Martin, a mulher que perde o marido tragicamente num acidente de barco, não é real. Mas inspira-se em pessoas reais. Confuso? Já vamos explicar melhor.
Com Gary Oldman, Antonio Banderas e AJ Meijer nos papéis principais, “Laundromat: O Escândalo dos Papéis do Panamá”, que chegou à Netflix a 18 de outubro, conta-nos a história do polémico caso dos papéis do Panamá. Em abril de 2016, uma fonte anónima (que continua anónima até hoje) entregou 11,5 milhões de ficheiros da base de dados da Mossack Fonseca, a quarta maior sociedade de advogados offshore do mundo, a um jornal alemão.
Os documentos revelavam como políticos, famosos, milionários, burlões e traficantes de droga exploravam paraísos fiscais, como por exemplo as Bahamas ou o Panamá, para ocultar património, dinheiro e transações suspeitas, bem como fugir aos impostos.
“Laundromat: O Escândalo dos Papéis do Panamá” conta-nos de forma resumida e descomplicada o caso, sem entrar em muitos detalhes no que aconteceu depois do caso se tornar público. O filme opta por ser uma espécie de explicador, com histórias curtas de alguns dos envolvidos. Mas o que é verdade e o que é ficção?
Contamos-lhe tudo de seguida.
Ellen Martin é o rosto fictício de uma tragédia bem real
No filme realizado por Steven Soderbergh, a história começa com Ellen Martin, interpretada por Meryl Streep, que vai fazer um passeio com o marido (James Cromwell) e dois amigos num barco turístico. A tragédia acontece quando uma onda vira o barco e 21 pessoas morrem — incluindo o marido de Ellen.
O acidente é real: em outubro de 2005, o navio de cruzeiros Ethan Allen afundou-se no lago George, Nova Iorque (EUA), vitimando 20 pessoas. No barco seguiam 47 passageiros e tripulantes, a grande maioria idosos de Michigan e Ohio.
As vidas perdidas ninguém poderia trazer de volta, mas a empresa turística tinha seguro, portanto poderia indemnizar as famílias. Certo? Errado: Jim Quirk, presidente da Shoreline Cruises, disse ter adquirido uma apólice de quase dois milhões de euros, válida por dois anos. Duas semanas depois do acidente, foi informado de que a apólice não existia.
A Shoreline Cruises foi uma das vítimas dos esquemas fraudulentos de seguros, que escondiam a sua identidade através da Mossack Fonseca.
Os narradores da história inspiram-se nos fundadores da Mossack Fonseca
Jürgen Mossack (interpretado por Gary Oldman) e Ramón Fonseca Mora (Antonio Banderas) foram de facto os fundadores do escritório de advogados Mossack Fonseca.
Tal como é mostrado no filme, Jürgen Mossack nasceu na Alemanha em 1948, mas emigrou para o Panamá nos anos 60. Em “Laundromat: O Escândalo dos Papéis do Panamá”, o alemão explica que isto aconteceu devido a dificuldades familiares "após a guerra". Na realidade, o pai era membro do partido nazi, foi preso após a Segunda Guerra Mundial e ofereceu os seus serviços como espião ao governo americano para comunicar atividades comunistas de Cuba.
Já Ramón Fonseca era mesmo um estudante de Direito que sonhava salvar o mundo — até virar o jogo e só se interessar por salvar-se a si mesmo.
Isto é verdade. Quanto ao resto, à medida que Mossack e Mora vão falando há obviamente um exagero ficcional. Os factos narrados, porém, são bem reais. E tal como no filme, os fundadores da Mossack Fonseca defenderam sempre a sua inocência, garantindo que tudo o que fizeram foi legal.
A Mossack Fonseca ainda existe?
A Mossack Fonseca encerrou em março de 2018, dois anos depois de rebentar o escândalo. Os fundadores culparam a economia mundial, bem como a reputação danificada aquando o caso. Fundada em 1977, era a quarta maior provedora mundial de serviços offshore.
Irvin Boncamper é muito parecido com o ator
A luta de Ellen para descobrir as fraudes que deixaram a Shoreline Cruises sem seguro — e, consequentemente, as famílias sem indemnização — levam-na até à ilha de Nevis, nas Caraíbas. É lá que se cruza com um homem chamado Irvin Boncamper, que não só é uma pessoa real como também se vestia exatamente como a personagem interpretada por Jeffrey Wright.
Apesar de nunca ter sido confrontado por Ellen Martin, a verdade é que foi preso e considerou-se culpado pelos crimes de lavagem de dinheiro em 2011. Tal como no filme, Mossack Fonseca tentou limpar o nome de Boncamper dos registos da empresa, mas acabou por ser apanhado.
A fonte anónima foi um inside job?
É isso que “Laundromat: O Escândalo dos Papéis do Panamá” nos sugere, quando percebemos que a secretária administrativa é afinal Elena. Claro que isto é tudo ficção: tanto quanto se sabe, a fonte anónima permanece anónima. Se foi um inside job ou não, o delator terá de se chegar à frente para termos finalmente essa resposta.
Ramon Fonseca Mora e Jürgen Mossack foram presos
Em fevereiro de 2017, Ramon Fonseca Mora e Jürgen Mossack foram detidos preventivamente no Panamá, para acabarem a ser libertados sob fiança um mês depois. No Twitter, Ramon Fonseca escreveu: "Graças a Deus e a Virgem por me ter livrado, a mim e ao Jürgen, de uma prisão injusta e cruel".
E garantiu: "Continuarei a dedicar todas as minhas energias na restauração do nosso nome atacado durante mais de um ano por pseudo-jornalistas cuja única investigação foi roubar o nosso banco de dados".
Ramon Fonseca Mora e Jürgen Mossack ainda aguardam julgamento mas nunca deixaram de alegar a sua inocência. Tanto que processaram a Netflix, interpondo uma ação remover da plataforma um filme que consideram ser "difamatório", "propaganda enganosa", "violação de uma marca registada" e "invasão de privacidade".
Na resposta apresentada em tribunal, a plataforma de streaming invoca a liberdade de expressão e reforça: "Como o supremo tribunal dos EUA reconheceu há muito tempo: 'A importância dos filmes como órgão de opinião pública não é diminuída pelo facto de eles serem projetados para entreter e informar'".
O tribunal de Connecticut ordenou que o processo fosse transferido para um tribunal em Los Angeles. Em entrevista à "Newsweek", um porta-voz da Netflix disse: "Este processo foi uma façanha legal frívola, projetada para censurar a expressão criativa. O filme de Steven Soderbergh conta uma história importante sobre a exploração de pessoas inocentes e uma utilização nefasta do sistema financeiro mundial."
Gu Kailai matou mesmo um homem
No final do filme, a advogada e empresária chinesa Gu Kailai fala com um empresário britânico chamado Maywood. Para garantir a sua lealdade, Gu pede-lhe que se divorcie da mulher. O homem diz que não o vai fazer e acaba por morrer envenenado. É tudo verdade nesta história, exceto que o nome do empresário era Neil Heywood. Gu Kailai foi condenada a prisão perpétua.
Charles parece ser mesmo uma personagem fictícia
Não há nenhuma indicação de que a história de Charles, o homem que vemos tentar subornar a filha para continuar a ter um caso, seja real. No entanto, os auriculares de ouro que ele oferece à amante existem mesmo e custam 11 mil euros. A empresa chama-se Happy Plugs e envia encomendas para todas as partes do mundo.
Houve muito mais personalidades afetadas pelo escândalo
No filme, vemos que o caso dos papéis do Panamá levou à demissão do primeiro-ministro da Islândia, Sigmundur Gunnlaugsson, e do primeiro-ministro do Paquistão, Nawaz Sharif. O nome do pai de David Cameron, Ian, também é referido.
Mas a lista de envolvidos é bastante mais longa. Simon Cowell, Emma Watson, Paul Burrell, Jackie Chan, Emilio Estevez, o filho de Margaret Thatcher, Mark, e a ex-duquesa de York, Sarah Ferguson, viram os seus nomes aparecerem nos papéis do Panamá. No universo desportivo, destacam-se Kevin Keegan, Andy Cole, Lionel Messi, Nick Faldo, Tiger Woods e Nico Rosberg.