Certamente já sonhou que caía de um precipício, que conseguia voar ou que tinha conhecido pessoas que nunca antes tinha visto. Seja bom ou mau, o sonho acontece sempre — quer seja numa completa noite de sono de 8 horas ou numa pequena sesta de 10 minutos, que é tempo suficiente para que surjam estas alucinações naturais no ser humano.

Mas porque é que sonhamos? Porque é que temos pesadelos? Porque é que acordamos e muitas vezes não nos lembramos do sonho que tivemos? São várias as questões que Sidarta Ribeiro, autor do livro "O oráculo da noite", tenta responder através da ciência. Isto porque é a ciência que estuda o cérebro e todos os mecanismos que trazem até nós fragmentos de memórias que constituem o enredo onírico, isto é, os sonhos.

Sidarta é mestre em biofísica pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, doutorado em comportamento animal pela Universidade Rockefeller e soma ainda um pós-doutoramento em neurofisiologia pela Universidade Duke.

E é com base na junção destes estudos que chegou às bancas esta terça-feira, 3 de setembro, o livro de 430 páginas sobre a ciência do sonho. O escritor brasileiro traça um perfil do sonho, permitindo que o leitor conheça mais sobre as experiências oníricas ao longo dos 18 capítulos nos quais aborda temas como o sonho ancestral, a bioquímica onírica e o destino.

O oráculo da noite — Sidarta Ribeiro
O oráculo da noite — Sidarta Ribeiro

A MAGG falou com o autor do livro para saber mais sobre os sonhos e sobre o que é que os leitores vão descobrir à cerca de si próprios.

Como surgiu a ideia de lançar este livro? 
Este livro tem a sua origem em 2001, quando eu iniciava o pós-doutoramento na Universidade Duke (EUA). Vislumbrei naquela época que seria possível tecer uma narrativa que levasse o leitor da biologia à psicologia, passando pela neurociência, pela antropologia e pela história sem sobressaltos. Levei 18 anos a chegar a essa visão ampla, com o objetivo de propor ao público em geral que é possível compreender a emergência da consciência humana pelo fio condutor do sonho.

Baseou-se também nos seus sonhos?
Embora tenha tido sonhos muito significativos na infância, só decidi dedicar-me a pesquisar a biologia do sono e dos sonhos muito mais tarde, já adulto, no início do doutoramento na Universidade Rockefeller (EUA). Mas sim, há sempre uma vivência pessoal, que descrevo em detalhes no capítulo 11 do livro. Não conto aqui para não fazer spoiler.

Como define o sonho?
O sonho resulta da passagem de atividade elétrica por trajetórias neuronais que representam memórias específicas, encadeadas sequencialmente como num filme que é organizado pelos desejos e temores de quem sonha, num processo mediado pela liberação de dopamina. Argumento no livro que esse fenómeno, já desde a evolução dos primeiros mamíferos, há mais de 200 milhões de anos, levou ao surgimento de um oráculo probabilístico que se tornou adaptativo por realizar simulações de futuros possíveis: com base na reativação das memórias do passado, como será o amanhã?

Qual é o papel da psicanálise?
No livro faço uma defesa enfática da psicologia profunda de Freud e Jung, tanto como uma fonte extremamente fértil de questões científicas sobre a mente, quanto como prática clínica de enorme utilidade: a terapia pela palavra. No início do livro descrevo a origem da psicanálise e traço as suas ligações com saberes oníricos que datam da Antiguidade.

Sonhar é importante para o ser humano? Porquê?
Sonhar foi muito importante na evolução dos mamíferos, mas na espécie humana atingiu uma significância muito maior, vindo a tornar-se o próprio centro da vida social. Entre povos caçadores-coletores atualmente existentes, o sonho continua a ser de importância vital e utilidade quotidiana. Entretanto, para quem vive no mundo capitalista globalizado e tecnológico, o sonho costuma ser completamente negligenciado como fenómeno ilógico e irrelevante. Essa perda da capacidade de sonhar pode estar relacionada com a grande dificuldade da sociedade contemporânea de simular as consequências devastadoras do desenvolvimento económico não sustentável.

Há uma dúvida frequente quanto ao que é que os sonhos querem dizer. É possível responder sempre a esta pergunta?
Nem sempre. Citando o próprio livro, “quando o contexto é confortável, marcado não por um grande problema mas por uma miríade de pequenos problemas do dia a dia, os sonhos aparentemente fazem pouco sentido, tornam‑se de difícil interpretação. (...) quando o contexto é muito desafiador, como numa situação de doença grave ou disputa violenta, os sonhos chegam a exprimir com clareza tanto a situação vivida, quanto as diretrizes essenciais para agir contra o perigo iminente. Por isso mesmo é crucial interpretá-los adequadamente”.

O facto de algumas pessoas não se lembrarem do sonho depois de acordar é algo negativo?
Sim, na medida em que as priva de uma “janela para a alma” de enorme importância evolutiva e grande valor introspetivo. Não se lembrar dos sonhos é um fenómeno muito comum, mas basta que a pessoa se dedique a relatar as impressões oníricas a cada manhã para que em poucos dias recupere a capacidade de lembrar-se não apenas do último sonho no início da manhã, mas de diversos sonhos ao longo da noite. Explico no livro em detalhes como atingir esse objetivo, e explico por que isto é psicologicamente desejável.

Se a matéria do sonho são as memórias, como explica os sonhos cujas imagens em nada se relacionam com a realidade que vivemos no quotidiano?
Segundo Sigmund Freud, os sonhos são a via régia para o inconsciente. Se definirmos o Inconsciente como a soma de todas as memórias de uma pessoa, bem como todas as combinações possíveis destas memórias, fica fácil entender que são tais combinações que permitem sonhar com uma imagem nunca vivida na realidade. Funciona como num retrato falado, em que qualquer rosto pode ser modelado a partir de elementos formadores mais básicos.

Os sonhos dizem tanto sobre o passado, como sobre o futuro?
A rigor, os sonhos são versões editadas e recombinadas de experiências passadas. Entretanto, na medida em que o passado tem relevância para o futuro, os sonhos tornaram-se também expressões das possibilidades do futuro, configurando o oráculo probabilístico que dá nome ao livro.

Acha que o ceticismo que se desenvolveu no século XVIII começa a mudar nos nossos dias?
Sim. Os resultados empíricos estão a acumular-se. Houve muito preconceito contra a pesquisa onírica no âmbito das neurociências, mas hoje isso está superado e esse tema de pesquisa é considerado muito “quente” nas principais revistas científicas.

Escreveu este livro para desmistificar algumas dessas ideias preconcebidas?
Sim. Considero que a atualização do público em geral sobre estes avanços científicos pode contribuir para um necessário resgate de nossa capacidade de sonhar.

Acha que o livro pode fazer com que algumas pessoas se descubram e percebam a sua infância?
Espero que sim! O livro propõe uma profunda viagem para dentro de si, através do foco na experiência onírica e na formação das primeiras memórias, no transcorrer da infância e adolescência. No capítulo 3 desenvolvo a ideia de que para entender como nasce e se desenvolve a mente humana lembradora do passado e imaginadora do futuro, é preciso compreender de que forma o enredo onírico se transforma do bebé ao idoso, passando pela criança, pelo adolescente e pelos distintos matizes da idade adulta.

O que é que descobriu sobre si mesmo através da investigação para o livro?
Tive que realizar muitos anos de pesquisa em áreas que vão além de minha formação profissional em biologia e neurociências. Nesse processo de estudar textos antigos e relatos etnográficos, descobri com surpresa diversos aspetos dos sonhos da Antiguidade e de povos ameríndios que ajudam a iluminar minha própria experiência onírica. O aspeto de maior impacto existencial e estético que descobri em mim mesmo foi que os sonhos podem e devem ser propiciados, isto é, que é possível cultivar sonhos especialmente desejados através de práticas de autossugestão (ou espirituais, para os que creem em divindades).