Resistente, veterana, underdog. Todos estes apodos servem para descrever Mimicat, a artista que vai representar Portugal na Eurovisão. Com uma carreira que começou ainda na adolescência, a cantora de Coimbra lutou, durante mais de duas décadas, por um lugar ao sol. O reconhecimento chegou em março passado, com a vitória no Festival da Canção, o passaporte para a Eurovisão carimbado com uma canção que estava na gaveta há vários anos.
Antes de partir para Liverpool com o seu "Ai Coração", Mimicat fez-se à estrada e participou nas principais festas pré-Eurovisão, que servem para os artistas mostrarem ao vivo as suas atuações, conhecerem de perto os fãs e, claro, gerarem tração nos media e nas redes sociais. Uma decisão pouco comum aos artistas portugueses que vencem o Festival da Canção que, salvo uma ou outra exceção, sempre preferiram manter-se à margem deste circuito.
O resultado deste empenho viu-se logo após o primeiro ensaio, que aconteceu este domingo, 30 de abril, na Liverpool Arena. Mimicat já não é uma estranha aos fãs mais entusiastas da Eurovisão que, nas redes sociais, a apelidam de 'mother' (termo carinhoso, maioritariamente utilizado pela geração Z, para designar uma mulher mais madura, poderosa e cativante).
Paralelamente à persona burlesca que vai subir ao palco na primeira semifinal do Festival Eurovisão da Canção, a 9 de maio, existe Marisa Mena, a identidade do dia a dia de Mimicat. Mãe de dois rapazes (o mais velho de 4 anos e o mais novo com apenas um, completado dias antes de a mãe partir para Liverpool), a artista, que foi durante mais de uma década consultora imobiliária, confessou, em entrevista à MAGG, que esteve várias vezes para desistir da música. Mas a teimosia falou mais alto.
Participou pela primeira vez no Festival da Canção em 20o1. Como é concretizar um sonho adiado há 22 anos?
Às vezes esqueço-me que fui ao Festival [da Canção] quando tinha 15 anos, tão pouca é a importância que eu dei na altura. Eu tinha 15 anos, tinha zero participação criativa na canção, era apenas a intérprete. Na altura não dei muita importância e o festival estava naquela fase muito mortinha, então quase não conta. Esta vez é que conta. Foi uma experiência gira na altura e eu, como qualquer adolescente fora de casa, diverti-me. Agora está a ser concretizar um sonho. Eu já queria ir desde que eles reavivaram o festival, desde o ano do Salvador. Todos os anos dizia aos meus agentes 'eu quero ir ao festival, eu tenho uma musica muito gira para ir ao festival!'. Eu já tinha esta música. Todos os anos eu dizia mas ninguém me convidava. Este ano ninguém me convidou na mesma e eu pensei 'vou submeter a canção'. E assim foi.
Porque é que não submeteu logo?
Porque estava à espera que me convidassem (risos)! Eu ainda não tinha feito uma demo que eu gostasse. Mas, este ano, submeti a mesma que tenho há cinco anos, que não gosto. Acho que este ano estava com o mindset certo, estavam os astros todos alinhados.
A Mimicat fez algo pouco comum aos vencedores de edições anteriores, que foi ir às festas pré-Eurovisão. Foi algo que decidiu logo que queria fazer?
Eu nem sabia que isso existia. Eu ganhei o Festival, caí de paraquedas no mundo da Eurovisão, não sabia mesmo no que me estava a meter. Quando eu ganhei, tivemos uma reunião logo na segunda-feira a seguir e elas falaram-me dessas festas. Eu pensei 'isso é capaz de ser engraçado! É um tipo um warm up para a Eurovisão. Vamos chegar a outras pessoas, eu vou conseguir ganhar público que eu nunca teria oportunidade de ganhar noutras circunstâncias, parece-me que tenho de ir!'. Apostei nas duas de Espanha e na de Londres e estou muito contente com os resultados.
Ficou impressionada com a dimensão e o entusiasmo dos fãs da Eurovisão?
Completamente! Eu não sabia que isto era assim. Nem foi só com a Eurovisão. Eu não sabia que o Festival da Canção, em Portugal, tinha a grupeta que tem. Achei que era uma cena mais generalista. Mas aquilo tem uma grupeta de malta que é muito aficionada, que conhece literalmente tudo. Quando as canções começaram a surgir, comecei a ver a malta a batalhar pelas suas canções favoritas como se fossem delas. Achei incrível. E lá fora acontece exatamente o mesmo. Vejo nas redes sociais e principalmente no Tiktok a importância que a Eurovisão tem para muita gente. Para algumas pessoas, eu diria que aquilo é o momento do ano delas. Aliás, há imensas carreiras a serem construídas à volta da Eurovisão. Gostava que a minha fosse uma dessas.
O que vai acontecer no palco da Liverpool Arena?
Eu tive de decidir o que queria dois dias depois de ter ganhado. Fiquei em pânico. Eu chego lá na segunda-feira e elas dizem-me 'quarta-feira temos de mandar as coisas para a Eurovisão'. 'Como assim?!'. Eu achava que ia ter duas semanas para preparar tudo, pensar, ver as hipóteses, estudar... não. Tivemos dois dias loucos, a tentar reunir a informação toda, o meu marido ajudou-me na parte dos visuais.
Vai ser muito diferente do que vimos no Festival da Canção?
Visualmente vai ser bastante diferente. Estamos a apostar num cenário mais cabaret, trabalhando com os painéis de leds nesse sentido. Mas estamos a trabalhar numa abordagem mais minimalista e interessante. Vai ser diferente, mas a energia, a coreografia e toda a parte de interação entre nós vai manter-se muito semelhante.
Veja aqui fotos do primeiro ensaio
Como é que se preparou mentalmente para uma jornada que começou dia 29 e, se tudo correr bem, vai terminar a 14 de maio?
Estou a levar as coisas com calma, dentro do possível. A minha vida está um turbilhão neste momento, ando com a cabeça literalmente a mil porque tenho muita coisa para fazer e pouco tempo. Em relação à minha postura face ao que vai acontecer em palco estou muito tranquila. Estou em crer que vai correr bem. Eu sei que nós vamos dar o melhor espectáculo que pudermos dar. A nossa autenticidade e a nossa energia vão estar lá e espero que as pessoas a sintam.
Outra particularidade do universo eurovisivo são os sites de apostas, onde se avaliam as probabilidades de um país vencer. Liga alguma coisa a isso?
É impossível não ver porque as pessoas mandam-me. As pessoas são muito queridas. Dizem 'isto nas apostas está muito mau mas tu não ligues nada às apostas!'. O que é um facto é que, de facto, não ligo. Estou-me bem nas tintas para as apostas e para a futurologia que as pessoas possam fazer. Ninguém sabe o que vai acontecer. Se há coisa que é imprevisível é a Eurovisão, daquilo que eu tenho visto nos últimos anos. Acho até um bocado insano fazer uma estratégia baseada numas apostas que alguém faz. Não ligo muito mas acho que até tem estado a subir, depois de as pessoas verem as atuações que tenho feito. Mas, mais uma vez, isso não interfere nada no que vou fazer.
"Cada vez que eu me sentava ao piano fartava-me de chorar porque sentava-me e compunha mais uma canção. Pensava 'será que é suposto alguém que tem este dom desistir?'"
A Mimicat anda a lutar por um lugar ao sol há mais de 20 anos. Desde que venceu o Festival da Canção o que é que já aconteceu que a tenha surpreendido?
Eu estou a lidar com isso de uma maneira muito tranquila porque acho que o deslumbramento não traz benefício a ninguém. Eu sei que isto é uma coisa que passa. Esta febre toda é agora. Eu sei que, quando a Eurovisão acabar, se eu não tiver logo uma música que bata, dali a uns meses já ninguém se lembra que eu ganhei o Festival da Canção. Eu tenho os pés assentes no chão mas não posso negar que as pessoas são uns amores para mim. É raro ter comentários negativos na minha página. Eu sinto-me acarinhada e acho que Portugal vai apoiar em massa quando eu estiver na semifinal. Sinto-me muito bem tratada e não é só aqui em Portugal. Já percebi que todos os anos Portugal é assunto e então isso acaba por ser gratificante. Estou imensamente grata por esta oportunidade. O que estou a viver é mágico. Sinto-me abençoada, sinto-me escolhida! E fui (risos)!
"Tive vários períodos de pausa em que pensei 'vou cagar para isto, estou farta desta porcaria deste meio'"
Se tivesse 20 e poucos anos, sente que não ia desfrutar desta experiência da mesma maneira?
Claramente! Na faixa dos 20 anos eu era muito mais snobe do que sou agora. Acho que a minha postura em relação a tudo, ao meio, à maneira como eu vejo a música, mudou muito, acho que para melhor. Vivo muito mais feliz, acho que estou a aproveitar agora muito melhor do que aproveitaria nos meus vintes. No entanto, tenho a dizer que dava imenso jeito não ter filhos nesta fase porque é mais chato conciliar com as crianças, e a falta que lhes faço por andar nestas andanças. Mas eu sei que mais tarde eles vão sentir orgulho no que a mãe está a fazer agora. Estou a tentar dar o meu melhor também por isso.
É um bocado inevitável perguntar-lhe sobre a questão dos filhos, sobretudo porque um deles é muito pequeno. Como é que se gere isso? É uma decisão de carreira.
É, e eu tenho a felicidade de o meu marido ser um super pai e de ter os meus pais que nos ajudam a ficar com os miúdos. Se eu não tivesse os meus pais cá, e a minha mãe sendo a avó que é, era completamente impensável. Se não fosse isso eu não conseguiria. Mas estamos a falar de pessoas que sempre me conheceram a cantar. Eles sabem que eu estava à espera de um momento deles e todos me estão a ajudar para que eu possa aproveitar a experiência. Até nisso sou sortuda.
Como é que o seu filho mais velho está a reagir a isto tudo?
Ele não tem grande perceção, está assim a leste do paraíso (risos)! Na primeira semifinal [do Festival da Canção] ele rejeitou por completo a ideia de a mãe estar na televisão à hora de ele ir dormir. Virou costas, não quis ver mas, na final, já ficou a ver, muito atento. Agora, de vez em quando, diz que vai cantar comigo para o Festival da Canção. Acho que já está a perceber que esta é a nova realidade, de a mãe estar várias vezes fora. Quando começarem os concertos, ele começa a ir outra vez, já é diferente.
Porque é que nunca desistiu de tentar ter uma carreira musical? Houve algum momento em que pensou 'vou arrumar isto'.
Várias vezes! Aliás, eu tentei várias vezes desistir. Tive vários períodos de pausa em que pensei, desculpe o termo, 'vou cagar para isto, estou farta desta porcaria deste meio'. Estava muito amarga com a indústria e com a maneira como isto funciona. Depois vi aquele discurso nos Óscares, da Taraji P. Henderson, e pensei se esta mulher está aqui com 40 ou 45 anos e diz que a carreira dela acabou de começar porque é que eu, que tenho trintas, acho que estou velha, que as coisas não vão acontecer e vou desistir já? Não! Vou continuar. Porque eu não consigo não fazer música. Isso é um grave problema.
Cada vez que eu me sentava ao piano fartava-me de chorar porque sentava-me e compunha mais uma canção. Pensava 'será que é suposto alguém que tem este dom desistir?'. Não, se calhar não é suposto. Se calhar é suposto eu continuar a tentar e, um dia, as coisas hão-de funcionar. Eu impus a barreira dos 40, mas sempre na expectativa de não desistir. É uma luta muito difícil porque estamos constantemente a lidar com a rejeição. Custa perceberes que as pessoas não gostam daquilo que tu fazes. Não chega a elas, sequer. Mas as pessoas que podem fazer a música chegar às outras pessoas às vezes não gostam, ou não se identificam. Então se não cais no goto de quem pode, não consegues. Eu aceitei que o meio funciona assim e, quando adotei essa postura, as coisas começaram a correr muito melhor.
As plataformas digitais, como o Youtube ou o Spotify, não vieram colmatar esse gatekeeping? Acha que o mindset de quem comanda a indústria está ultrapassado?
Acho que ainda existe porque tens 10 nomes em Portugal que são grandes, depois há os outros. E os outros estão quase todos no nenhures. Eu acho que tem a ver com nichos, de onde vens, que pessoas representas. E acho que demorou muito tempo até eu encontrar o meu público. No caso de pessoas mais jovens, hoje em dia, com as redes sociais, acho que é muito mais fácil conseguir comunicar mais diretamente com o público. Eu tinha uma aversão às redes sociais. Demorei imenso tempo a ter uma conta de Instagram, só fiz uma conta no TikTok na altura do festival. Tinha imensa dificuldade em encontrar as minhas pessoas e em comunicar com elas.
Ainda assim, sente que esses entraves continuam a existir?
Eu acho que continuam a existir mas há fenómenos de miúdos que estão no Youtube, não passam nas rádios e têm público, e tem concertos cheios. Eu não sei como é que isso se faz porque isso nunca me aconteceu. A única coisa que eu tive que está a funcionar é esta, no contexto Festival da Canção. Porque se fosse fora do festival, provavelmente não funcionaria. Mas há essa abertura hoje em dia, principalmente para os miúdos, conseguirem fazer a sua carreira de outra forma. No entanto, para a maioria das outras pessoas que depende do sistema tradicional de promoção, eu acho que ainda há um bocadinho.
Existe também uma diferença enorme entre as rádios nacionais e as rádios locais, que são as poucas que dão abertura a outros artistas que não aqueles 10. Mas que têm cada vez menos espaço, ou porque fecham, ou porque são compradas por rádios nacionais. Porque é que acha que existe essa diferença tão abismal entre as rádios locais e as nacionais?
Eu acho que as rádios foram muito inteligentes numa coisa. Foram criando rubricas com pessoas muito interessantes, que trouxeram uma audiência que as rádios antes não tinham. E as rádios começaram a ser influencers, de repente. Os animadores de rádio são figuras conhecidíssimas, na maior parte da vezes mais conhecidas do que os artistas. Portanto, as pessoas gostam das pessoas e se as pessoas estão naquela rádio, as pessoas vão ouvir aquela rádio. Isto é tudo um fenómeno de pessoas. Eu vejo figuras portuguesas que têm mais seguidores no Instagram do que artistas internacionais conhecidíssimos que não têm nem um terço. Mas Portugal adora esse tipo de coisas. Eu acho que as rádios locais ficam um bocado para trás porque não há essas figuras nas rádios locais e as pessoas não têm tanto interesse nesse sentido.
Ainda continua a trabalhar como agente imobiliária?
Não. Parei quando tive o meu segundo filho porque quis aproveitar. Continuo a trabalhar na imobiliária mas numa perspectiva diferente.
Como é que essa profissão surgiu na sua vida?
Eu tinha tirado Som e Imagem, trabalhei em produção e odiei. Não era vida para mim. Pensei 'bem, tenho contas para pagar, os meus pais não são ricos, preciso de me fazer à vida'. Só que eu odeio que mandem em mim. Não tenho feitio para ser funcionária de alguém. Então decidi ir a uma agência pequenina ao pé de minha casa. Encontrei uma pessoa de 30 e poucos anos que me fez a entrevista e pensei 'afinal isto não é assim tão banha da cobra como eu pensava'. É possível seres uma pessoa normal que vende casas. Tive sorte, as coisas começaram a correr bem desde o início e foi a minha safa porque me permitiu fazer música de uma maneira muito livre. Eu achava que, se fosse para os bares cantar, que ia perder por completo a minha identidade, que ia ganhar vícios na voz. E eu não gosto que façam barulho quando eu estou a cantar. Sou muito narcisista nesse sentido (risos). Decidi ter outro trabalho normal para conseguir fazer música como eu queria.
Porque é que os agentes imobiliários têm má fama em Portugal?
Acho que tem que ver com aquela postura muito antiga de vender o que quer que seja. Isso está completamente ultrapassado. O consultor imobiliário antigo trabalhava muito para si e pouco para um bom serviço ao cliente. E acho que isso com as novas gerações está a mudar.
Quem acha que vai ganhar a Eurovisão?
Eu não acho que seja a Loreen [Suécia] que vai ganhar. Estou entre o miúdo da Finlândia, o Käärijä, as miúdas da Áustria [Teya & Salena], a Espanha [Blanca Paloma] e a miuda da Arménia [Brunette]. Para mim é um desses quatro.
O que é que está a planear para depois da Eurovisão?
Concertos. Já estou a panicar porque tenho de montar o espectáculo e depois tenho o álbum para lançar, lá para outubro. O primeiro concerto será no Junta-te ao Jazz, que acontece entre 19 e 21 de maio no Palácio Baldaya, em Benfica. Vou fazer uma cena de piano e voz, só.