A ministra do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social, Maria do Rosário Palma Ramalho, afirmou recentemente ter conhecimento de casos em que as mães continuam a amamentar os filhos em idade escolar apenas para manter o horário de trabalho reduzido. A acusação foi feita em entrevista ao “Jornal de Notícias” e reacendeu o debate sobre os limites da amamentação, levando o governo a propor algumas mudanças.

Entre as alterações está a imposição de um atestado médico obrigatório desde o regresso ao trabalho, para que a mãe possa usufruir do horário reduzido. Atualmente, o documento só é exigido a partir do primeiro ano da criança, mas o Governo quer antecipar essa exigência para os 6 meses, com renovações periódicas de seis em seis meses. Além disso, o governo pretende limitar este direito até aos 2 anos de idade da criança, deixando de permitir que seja partilhado entre mãe e pai.

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A proposta foi recebida com preocupação por profissionais de saúde e especialistas da área. Para perceber os benefícios da amamentação e até que ponto faz sentido estabelecer um limite temporal, a MAGG foi falar com dois especialistas: o pediatra Manuel Magalhães e a psicóloga e especialista na área perinatal Filipa Maló Franco.

A amamentação: benefícios, uso exclusivo e período máximo

Tanto Manuel Magalhães, médico que fundou a página de Instagram O Pediatra, como Filipa Maló Franco, especialista em parentalidade e responsável pela clínica Filipa Maló Franco, defendem que a amamentação deve ser protegida, respeitada e prolongada sempre que possível.

“O alimento preferencial para os bebés devia ser, exclusivamente, o leite materno até aos 6 meses de idade”, afirma Manuel Magalhães à MAGG, sublinhando que, nesta fase, os benefícios são “todos”.

“É essencial para um crescimento mais adequado do bebé, diminui o risco de obesidade, melhora o crescimento dos bebés, tem melhoria em termos de vínculo matérico, em termos de sono, de desenvolvimento, de tudo, em quase tudo, na verdade, nos primeiros 6 meses”, refere o especialista. A partir dos 6 meses, mesmo com a introdução alimentar, “o aleitamento materno continua a ser preponderante até aos 12 meses”, com benefícios que se mantêm “até quando a mãe e o bebé quiserem”, acrescenta o especialista.

Já Filipa Maló Franco salienta que os benefícios vão muito além do aspeto nutricional. “Do ponto de vista físico, da imunológica, do ponto de vista da sucção, sabemos que os bebés estão na fase oral e, portanto, a amamentação do ponto de vista da regulação nacional, é bastante eficaz”, diz.

Filipa Maló Franco
Filipa Maló Franco A psicóloga e especialista na área perinatal Filipa Maló Franco. créditos: Instagram

Para além disso, “uma amamentação mais prolongada tem um impacto positivo no que toca em algumas doenças como o cancro da mama, como doenças cardiovasculares, diabetes, e, portanto, são inúmeros os benefícios associados à amamentação”, refere.

Ambos os especialistas foram claros, não existe uma idade ideal para o desmame. “Não existe uma idade limite. É até quando a mãe e a criança estiverem pressupostas para, e a criança aceitar”, afirma o pediatra, enquanto Filipa Maló Franco refere que segundo a antropologia “a espécie humana está feita para desmamar em média aos 3 anos e meio, sendo que a amamentação até aos 6 anos pode acontecer”.

A especialista em parentalidade refere ainda que o desmame “não tem de ser imposto por um adulto”, sendo natural que a criança o faça no seu tempo desde que a mãe também esteja confortável com isso. “É uma relação a dois”, acrescenta.

"Contam-se  pelos dedos de uma mão as mães a quem eu passo declarações de amamentação acima dos 2 anos"

Manuel Magalhães deixou ainda uma nota crítica sobre a tentativa de condicionar esta prática. “Num País desenvolvido, onde se tomam decisões baseadas em pareceres técnicos, baseadas em evidência e não em achismos, tem de se dar esta liberdade às mães e às crianças de amamentar até quando quiserem.”

“É cientificamente estudado que há benefício em as crianças mamarem e as mães darem de mamar até quando quiserem”, diz o pediatra, embora deixando a ressalva mas que os casos são raros a partir dos 2 anos. “Contam-se  pelos dedos de uma mão as mães a quem eu passo declarações de amamentação acima dos 2 anos”, acrescenta.

A sociedade e o retrocesso dos direitos das mulheres

O pediatra Manuel Magalhães considerou que a polémica “não está no atestado em si”, mas naquilo que a discussão revela sobre a forma como a parentalidade é encarada em Portugal.

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“Até aos 2 anos, há um claro benefício em as crianças passarem mais tempo com os pais, com a mãe ou com o pai”, diz, sublinhando que o foco deveria estar em criar melhores condições para que isso acontecesse.

Manuel Magalhães
Manuel Magalhães Manuel Magalhães é pediatra e responsável pela página de Instagram O Pediatra

“Deve haver algum tipo de condições para que as mães ou os pais possam passar mais tempo com estas crianças. Consigo compreender que seja necessário discutir isto, mas é para tornar isto mais justo, porque há muitas mães que querem dar de mamar e infelizmente não conseguem, e que beneficiavam em criar esse vínculo também com os filhos. Embora não seja um biberão que vai impedir de ter esse vínculo”, revela.

“Isto é um soundbite da Ministra, que utiliza para continuar uma política que tem vindo a ser feita de retirar direitos às famílias, às mães e às crianças"

Além disso, o pediatra discordou do discurso da ministra por considerar que se trata de uma narrativa distorcida da realidade. “A taxa de amamentação em Portugal aos 6 meses ronda os 20 e tal por cento”, refere. “Isto é um soundbite da Ministra, que utiliza para continuar uma política que tem vindo a ser feita de retirar direitos às famílias, às mães e às crianças", salienta.

A psicóloga Filipa Maló Franco destacou também os efeitos negativos que esta medida pode ter sobre a saúde mental e emocional das mulheres. “Mesmo com horário reduzido, estamos a falar de mães que passam cerca de oito horas separadas dos seus bebés. Tudo isso afeta a amamentação”, afirma.

A nova exigência de atestado acrescenta mais uma pressão, que pode desincentivar muitas mulheres de continuar a amamentar. “Já há muito bullying laboral, muitos abusos no local de trabalho para as mulheres que querem continuar a usar este direito”, refere.

“É quase como se tivéssemos de depender de outra pessoa para nos dizer aquilo que queremos ou não fazer com o nosso corpo e com os nossos filhos"

Para a psicóloga, uma das preocupações é no controlo que esta medida representa. “É quase como se tivéssemos de depender de outra pessoa para nos dizer aquilo que queremos ou não fazer com o nosso corpo e com os nossos filhos e realmente isto é muito preocupante, a forma como nós temos de ter uma identidade que nos valide se estamos efetivamente a amamentar logo a partir dos 6 meses”, alerta.

“E depois há aqui outra questão que se coloca nos horários reduzidos, que é o facto de haver uma discriminação para as mães que não amamentam, para os bebés que não são amamentados, porque de facto os horários reduzidos deveriam de ser para todos, principalmente nos primeiros anos de vida”, conclui a especialista.