Há um novo recorde para a mulher mais velha numa capa da "Vogue". Na segunda-feira, 4 de maio, Judi Dench, atriz de 85 anos e com 60 anos de carreira, destronou Jane Fonda que aos 80 anos, em 2019, voltou a fazer capa da edição britânica da revista de moda mais conceituada do mundo, depois da primeira em 1959.

Com mais de 100 anos de história, foi sempre de forma criteriosa que a publicação da Condé Nast escolheu os temas e figuras das suas capas. Mas as regras mudaram. Ao passo que antes as mulheres magras, altas e esplendorosas se destacavam, ditando o ideal de beleza, hoje são a diversidade e os assuntos mais prementes da sociedade que estão no controlo do tema.

É que a moda, como dizia Franca Sozanni, diretora furacão da edição italiana desta revista, durante 26 anos, "é muito maior do que um vestido".  Paula Mateus, à frente da “Vogue” portuguesa entre 2002 e 2017 concorda com esta ideia: “O conceito de moda é muito mais vasto do que um vestido em cima de um corpo magro", diz à MAGG.

Susana Marques Pinto, fundadora da escola de moda Pulp Fashion, stylist desde os an0s 70, época em que esta profissão ainda nem existia, estava nesta década a trabalhar com a Yves Saint-Laurant, em Londres, Inglaterra. Um dos clientes mais habituais era o icónico artista David Bowie — na altura em que vestia a extravagante pele de Ziggy Stardust, personagem a quem o género não se conseguia identificar, porque isso não era importante. "Ele estava muito à frente. Lembro-me de vê-lo entrar com a mulher e eles eram autênticos, na silhueta, na forma de vestir, ele de cabelo cor de laranja ela de cabelo loiro."

Estes exemplos sempre existiram, mas, excepto no caso de celebridades como Bowie, décadas foram necessárias para que pudessem sair do submundo onde se encontravam presos — ao lado dos ideais de beleza femininos que não encaixavam na norma ou das orientações sexuais que não foram definidas pelo físico à nascença.

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Finalmente, vão-se libertando. Na era dos direitos LGBT, temos modelos transexuais, colecções sem género e que respeitam quem sente que não é homem nem mulher. Na era da diversidade, vemos desfiles em que as manequins representam todos os tipos de corpos, sejam gordas, magras, albinas, grávidas ou com marcas de quem teve cancro de mama. Na era do empoderamento feminino vemos a atriz brasileira Sónia Braga a exibir os seus cabelos brancos, vemos Jane Fonda e Judi Dench (nomeada para seis Óscares, vencedora de um) a quebrarem o estereótipo que arruma a mulher na prateleira à medida que o cabelo se enche de brancos.

"A Judi Dench é um ícone para os ingleses, é uma mulher muito conceituada e respeitada", refere Paula Mateus. “Mas, se calhar, há uns anos não a punham na capa”, acrescenta.

A mulher era muito "estereotipada", lembra, tanto que Susana Marques Pinto recorda perfeitamente os padrões de beleza que eram exigidos às manequins: “Era uma indústria muito castradora: as mulheres tinham de ter medidas exatas, uma certa idade e feições regulares. Não era democrático. Depois, as pessoas viam e sonhavam ser de uma maneira que não pode ser.”

A antiga diretora da "Vogue" também tem isto bem presente, até porque saliente que não foi assim há tanto tempo: "Havia algum elitismo na moda, era só para alguns. Os outros ficavam a olhar a pensar que gostavam de ser assim ou que não tinham dinheiro para comprar. Era tudo um pouco exagerado", diz. "A ‘Vogue’ que sempre foi uma revista de moda pura e dura e sempre gostou da imagem das mulheres altas e magras, que estavam ali para fazer sonhar, hoje é mais realista.”

A moda não são só trapos

Quanto mais o tempo andou, a partir de 2010, mais esta revolução se foi fazendo notar: as tais questões da diversidade, da inclusão, da igualdade de género e das causas ambientais são a nova tendência, dando razão ao que Sozanni, contra tudo e todos, andava há que tempos a fazer: "Às vezes sou criticada por usar a moda para falar sobre outras questões", disse, citada pelo "Financial Times", em 2014.

Por esta altura, ela ainda era a excepção. Mas já não faltava muito para o mundo lhe dar razão. Tanto assim é que, a altura em que Paula Mateus saiu da “Vogue”, em 2017,  coincidiu com o tempo em que em que se começou a perceber “que se podia falar noutros assuntos além da beleza e da estética.”

As edições britânica e italiana da "Vogue" são as que mais se destacam neste campo. No primeiro caso, além de Fonda e de Dench, podemos falar ainda na edição de setembro de 2019, que pôs Meghan Markle a editar a capa da revista, tendo escolhido não uma, mas 15 mulheres que, para si, representavam a "força da mudança".

A segunda, sob a revolução de Sozanni, há já vários anos que põe a moda ao serviço das questões mais prementes da atualidade.  Há múltiplos exemplos. A edição "Black Issue" que, em 2008, deu protagonismo exclusivo a quatro mulheres negras: Liya Kebede, Jourdan Dunn, Sessilee Lopez e Noami Campbell. Ou o editorial "Horror Story", que retratou o transversal problema da violência doméstica, ao mostrar várias mulheres vestidas com roupas de alta costura — o que é até bastante verosímil, tendo em conta que este crime não escolhe estrato social.

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Na "Vogue" Arábia pudemos ver, em junho de 2019, duas mulheres com despigmentação na pele, e em abril, a primeira capa a exibir o hijab.  Mas a tendência estará longe de se cingir a esta publicação. Outras conceituadas revistas de moda e de beleza têm ido contra o até já datado status quo: a cantora e rapper Lizzo fez capa para a "Elle" em setembro de 2019, e já no ano anterior, a "Cosmpolitan" colocou em destaque a modelo XXL Tess Holliday.

Também os passareles mostram como o fashion passou a englobar muitos outros aspetos ligados à imagem e expressão própria. O desfile da Chromat, em 2019, na semana da moda de Nova Iorque, a mais importante do mundo, é a alusão perfeita de como os princípios da diversidade entraram em flecha na indústria: modelos albinas, XL, grávidas, sobreviventes do cancro da mama mostraram ao mundo os fatos de banho, biquinis e modelos desportivos da nova colecção.

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O mesmo se aplica ao momento de abertura desta semana da moda, cuja organização se associou a Sasha Velour, vencedor do concurso RuPaul's Drag Race, apresentando um conjunto de modelos LGBT e drag queens — e que criou com um momento que, mais do que sobre a roupa, pretendia celebrar e representar todas as vozes desta comunidade.

Tudo isto era impensável noutros tempos. No entanto, Susana Marques Pinto recorda um momento da década de 80 em que o conceito das pessoas reais tomou, muito brevemente, conta das passereles. "Houve desfiles da Ana Salazar, em que a moda era de colocarem pessoas reais. Lembro-me, por exemplo, de ver o Julião Sarmento e o Pedro Cabrita Reis a desfilarem", conta."Mas foi um fenómeno muito circunscrito e que coincidiu com a chegada à Europa dos designers japoneses, que colocavam a roupa acima de qualquer corpo. Na sequência disso, é que houve esta vaga de uma certa inclusão."

Apareceu, desapareceu e décadas depois, está de volta. Mas a metamorfose está longe de ser concluída.

Será a pandemia o caminho para o consumo consciente?

Também a preservação do planeta entra na equação de mudança de paradigma, até porque a fatura que ambiente paga pela indústria é elevadíssima. Mais do que quebrar tabus, neste caso é mesmo preciso haver mudanças estruturais. E há que mudar nos dois lados estritamente ligados desta barricada: marcas e hábitos de consumo.

A aceleração é problemática. Veja-se as lojas fast fashion: crop tops a 3,99€, calças à boca de sino a 19,99€, camisolas plus size a menos de 20€. Como resultado, os consumos disparam e quanto maior a quantidade de roupa, maior o volume de lixo. De acordo com dados da Greenpeace, citados pelo “Diário de Notícias”, as pessoas compram mais 60% das peças que compravam em 2000.  Os têxteis são, de acordo com a Agência Portuguesa do Ambiente, um problema: em Portugal, foram recolhidas 200.756 toneladas de tecido em resíduos urbanos. Se somarmos o valor total dos sete anos anteriores, o número sobre para 1,2 milhões de toneladas de têxteis.

Mas os processos nocivos começam antes, no momento de se transformar a roupa em matéria-prima: o poliester e o algodão são responsáveis por uma enorme emissão de gases de efeito de estufa para a atmosfera. Um simples par de calças de ganga, por exemplo, implica a utilização de 5.197 litros de água.
O problema é generalizado e também as casas da alta costura se envolveram em polémicas ambientais. A Burberry, maior marca de luxo inglesa, queimou o equivalente a 28,6 milhões de toneladas em roupas e cosméticos, só para manter o bom nome da sua casa, ao evitar que o contrabando, o roubo e os preço dos produtos reduzidos a valor de saldo.
Com dezenas de colecções e micro colecções que cada marca produz anualmente, o estrago é colossal. O cenário começa a ser tido em conta e, como resposta, as marcas começam a adaptar-se e surgem outras empenhadas em criar uma oferta que seja mais justa e respeitável. A Chanel, por exemplo, foi a primeira casa de alta costura a pôr de lado as criações com pele de animal.
O termo justiça vai além disto: do ponto de vista social, também existe um lado muito perverso na indústria da moda: trabalho infantil, condições abusivas, salários indignos.

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O lado negro da moda manteve-se escondido durante muito tempo. Paula Mateus recorda-se que este assunto só começou a ser questionado nos seus últimos anos como diretora. “Quando estava na Vogue andávamos com os olhos vendados. Agora há uma consciência social que se acelerou muito, há olhares sociais, que questionam como é que é feita a moda, como é que a indústria produz, como é que as coisas nos vêm parar às mãos.”

Se antes da era COVID-19 já se questionavam os modelos de consumo, com o rebentar inesperado da pandemia o mais provável é que tudo venha a mudar. Apesar de o futuro ser desconhecido, Paula Mateus acredita que a alienação do querer-ter-só-por-ter pode estar com os seus dias contados.

"Em relação à moda vai mudar muita coisa. Não vai ser nada daquilo que era antes. O consumo de moda, com corridas às lojas, um consumo excessivo e dezenas colecções por ano, era um turbilhão", diz. "Vai alterar-se a maneira de consumir, porque as pessoas foram forçadas a parar e a requacionar a vida. Abriram os olhos e começaram a ver as coisas de outra forma, o consumo com um ponto de vista mais humano."

As ideias de Sozanni continuam na "Vogue" italiana, sobrevivendo à sua morte, em junho de 2016. A prova está na edição de abril: a propósito da pandemia COVID-19, publicou-se pela primeira vez na história desta revista uma capa totalmente branca, como que a simbolizar a incógnita colossal dos tempos que vamos enfrentar. Vem aí uma nova realidade, vem aí um novo normal. E, para já, ninguém sabe qual é que vai ser a nova tendência.