Esta semana, Sara (nome fictício) escreveu um texto na primeira pessoa sobre uma noite que fez tudo para esquecer. Aos 19 anos, acordou um dia com as cuecas ao contrário e as leggings rasgadas no meio das pernas. Não se lembrava de nada do que tinha acontecido, mas sabia que não podia ser bom.
Durante dez anos, Sara fez tudo para esquecer aquela noite. Quando não conseguia, recordava-se de que a culpa tinha sido sua. Afinal, ela é que tinha bebido demais. Ela é que se tinha colocado numa situação de risco. Ela é que tinha a responsabilidade toda do que tinha acontecido.
Uma década depois, Sara já é capaz de entender que a culpa não foi sua. O que sucedeu naquela noite foi errado, criminoso, e, infelizmente, um reflexo da sociedade atual em que vivemos. Porque a culpa não é toda dele: Sara não vê o rapaz daquela noite como um violador, daqueles que não conseguem suprimir os seus instintos e atacam no meio da noite.
Não. O tema é demasiado complexo para se resumir a isso. Ele estava tão bêbado quanto ela. Mas vive numa sociedade que nos diz todos os dias que é normal a mulher sujeitar-se ao homem. Que ela é inferior a ele. E que ele pode fazer o que lhe apetece.
Estou a exagerar? Já apanhei muitas bebedeiras, algumas de caixão à cova. Nunca, em momento algum, rasguei a roupa de um homem. Nunca, em momento algum, pus-me em cima dele para o foder enquanto ele revirava os olhos com o excesso de álcool no sangue. Nem eu, nem nenhuma mulher no mundo. E porquê? Porque a nós não é permitido. A eles sim.
Sara não quis abrir uma guerra com ninguém — nem com o rapaz dessa noite, nem com os homens. Claro que não são todos assim. Claro que estão em minoria. Claro que esta é, felizmente, a exceção e não a regra. Mas este pensamento, que nem sequer é racional ou verbalizado, existe. Sara só quis que refletissem sobre isso.
Os comentários à publicação do artigo são degradantes. E se Sara não quis abrir uma guerra com ninguém, eu abro-a com o sexo feminino.
- "O mundo também não é justo para os homens";
- "Enfim.... já diz o ditado: quem anda a chuva molha-se";
- "História mal contada. Se a pessoa, seja homem ou mulher, chega a este ponto, é óbvio que fica vulnerável descontrolada. Tudo pode acontecer. São tristes estes comportamentos";
- "Esta história já enjoa claro que se eu beber até não me lembrar de nada e ainda por cima ter drogas a mistura que por acaso até me puseram na bebida sem eu saber.... Claro que me ponho a jeito... Dá que pensar";
- "Podiam ter arranjado uma história mais credível. Não dá a bota com a perdigota. Acordou em casa sem saber o que tinha acontecido nem como foi lá parar, mas a certa altura diz que ele a deixou na paragem do autocarro. Pelos vistos, o apagão não foi assim tão grande, não se esqueceu do sítio onde morava. Pura ficção."
Todos estes comentários foram feitos por mulheres. Sou só eu que acho isto assustador? O mais irónico disto — e bom, também — é que houve homens que foram criticar estes "comentários", reconhecendo a atrocidade do que estava a ser dito. Eu só me pergunto como é que é possível viver num mundo assim.
A nossa luta deveria ser contra aqueles 5% de homens que ainda acha que existe tal coisa como "pôr-se a jeito", seja porque usou um vestido curto ou porque bebeu demais. No entanto, parece que antes disso temos que educar as mulheres. Para mim, isso é simplesmente incompreensível. Que um homem tenha que ser ensinado de que a violação tem várias formas, acho triste mas entendo. Agora uma mulher? Uma mulher que, como eu, como Sara, como todas as mulheres do mundo, sabe o que custa ser mulher?
Todas as mulheres sabem o que é ter medo de andar na rua sozinhas à noite. O que é chamar um Uber e analisar o aspeto do motorista. O que é ser acusada de ter subido no emprego por dormir com o patrão. O que é ouvir coisas como "lambia-te toda" quando passam por um prédio em obras. O que é ganhar fama de puta só porque tem 16 anos e já vai no segundo namorado.
Todas as mulheres sabem o que é ser olhada de lado porque têm um amigo homem no trabalho — se for casado então, é certo e sabido que ela anda a fazer-se a ele. Todas as mulheres sabem o que é ser devorada com os olhos e perguntar-se se não trouxe uma saia curta demais. Todas as mulheres sabem o que é ser julgada no seu trabalho com base na sua aparência.
Todas as mulheres sabem o que é isto. No entanto, às vezes elas são as mais maquiavélicas; às vezes, elas são as primeiras a julgar, a criticar e a humilhar como se não fizessem parte desta realidade. Como se não soubessem do que estamos a falar.
No dia em que consegui o meu primeiro emprego, tive que ouvir da boca de uma mulher que o meu chefe sempre tinha tido uma queda por meninas — o que era mentira, nunca houve qualquer insinuação desse género. No dia em que publiquei um artigo que gerou polémica, uma rapariga comentou que ao menos podiam ter arranjado uma jornalista mais bonita.
Porque é que fazemos isto umas às outras? Porque é que não somos as primeiras a defender a Sara? Já chega. A sério, já chega de sermos cabras umas para as outras.
Troquemos as críticas por histórias inspiradoras. É exatamente isso que a jornalista Marta Cerqueira nos traz esta semana: Genevy, Raquel Santos Leite e Ana Marques são três mulheres que tiveram de vir para Lisboa por causa dos filhos. Na Casa Ronald McDonald, uma fundação que acolhe pais com filhos internados, puderam respirar fundo e dedicar-se à doença dos filhos.
Já o jornalista Fábio Martins sentou-se à conversa com Joana Metrass, a atriz portuguesa que é um sucesso lá fora. Depois de "O Agente da U.N.C.L.E." e "Era Uma Vez", tem um novo filme — com Jean-Claude Van Damme. Catarina Ballestero explica-nos como é que a perda de um amigo pode ser tão ou mais dolorosa como acabar uma relação amorosa, enquanto Ana Luísa Bernardino explica o que precisa de ter em atenção no momento de comprar um desodorizante. Nota: nem todos os produtos orgânicos fazem bem.
Há mais. Temos ainda uma análise ao que se está a passar com Britney Spears, uma entrevista à taróloga dos bebés e sugerimos 10 podcasts sobre crimes reais.