Para falarmos do último jogo da Seleção Nacional a que assisti ao vivo é preciso recuarmos ao longínquo ano de 2008 e viajar até Genebra, Suíça. Um Portugal - República Checa (sim, eu sei que agora é Chéquia, na altura não era, por isso relaxem) que terminou com um excelente 3-1, golos nossos marcados por Deco, Cristiano Ronaldo e Ricardo Quaresma, já nos descontos (obrigada, Zerozero).
Estávamos a 11 de junho de 2008 e a greve dos camionistas de matérias pesadas marcava a atualidade política. O protesto ameaçava paralisar o País e, ali nas bancadas do Stade de Genève, estive em amena (e um pouco surreal) cavaqueira sobre o tema com um filho de um dos Donos Disto Tudo. Mal eu sabia, mal ele sabia (talvez), que, poucos anos mais tarde, tudo se desmoronaria como um castelo de cartas.
O bom de ter memória é poder recordar estes episódios. O mau de ter memória é que o entusiasmo por estas coisas irracionais, como o amor futebolístico à Pátria (ou o amor à Pátria futebolística?) vai esmorecendo com a idade. Ainda cá está, prestes a explodir a partir de dia 18, quando a Seleção Nacional se estrear no Euro2024 (curiosamente, frente à Chéquia, e ainda com Cristiano Ronaldo), mas já sem aquele fervor demente dos rituais, da peça de roupa, o sofrimento quase físico, o choro de frustração a cada eliminação, o quase desmaio a cada golo que nos safava e nos permitia passar. Mais uma vez. Mais uma fase. Mais uns quartos. Meias. Será desta?
Com a serenidade que o Euro2016 nos deu, enquanto coletivo ciclotímico que ora fervilha de êxtase ora mergulha nas mais profunda tristeza, talvez nos tenhamos desligado, ou começado a normalizar, a nossa relação com a Seleção. O delírio coletivo do Euro2004 é tão distante mas, se fecharmos os olhos, ainda sentimos a dor lancinante do golo de Charisteas. A febre dessa festa imensa nas ruas, do autocarro que mais parecia um altar, de São Scolari, o timoneiro que veio do outro lado do Atlântico, para conduzir um País inteiro sedento de fé, reacende um poucochinho quando as imagens, ainda 4:3, surgem de vez em quando na TV.
Mas nós já não somos esse povo. Agora, somos outros. Melhores, mais.
E isto tudo para chegar onde queria chegar, ao Portugal-Croácia deste sábado, 8 de junho. Enfim sem santos, que o Santos desta casa já fez o seu milagre, agora liderados pelo nosso D. Quixote. O pragmatismo de Martínez, a sua serenidade de homem da Renascença, que se predispôs a aprender a nossa macarrónica língua e só por isso ganhou o meu respeito (e o vosso, espero, porque só os estrangeiros sabem como é difícil dominar os nossos tempos verbais alucinados, os nossos 'r' carregados e a nossas vogais impossivelmente fechadas).
Onde é que eu ia? Ah, perdemos. Pois foi. Diogo Jota marcou e os croatas deram-nos duas na pá. Mas a festa foi bonita. Nunca tinha assistido a um jogo de futebol no Jamor (mais uma falha clamorosa), mas em nada fica a dever a ver uma partida no Estádio Carlos Osório... mas ali nos anos 90, quando as bancadas estavam todas esburacadas e nem casas de banho de jeito havia.
O Estádio Nacional, grandiosa obra arquitetónica de Miguel Jacobetty Rosa, inaugurado em pleno Estado Novo é um anacronismo em 2024. Pesado, perigoso, sem acessibilidades, a cair aos bocados. Anfiteatro no meio da floresta, com um caótico e improvisado parque de estacionamento, caminhos de terra batida, entradas longínquas às quais só é possível chegar depois de um suado corta-mato. Também é um daqueles sítios mágicos, onde se sente amor à bola, respeito pelas regras de convivência (salvo aquela triste memória do passado) entre adeptos, e aquela descontração rara nos dias de hoje, que ainda consente o cigarro do vizinho do lado.
O jogo foi uma seca, mas ninguém estava à espera que uma partida a feijões fosse uma sucessão de grandes jogadas. A bancada dos croatas estava bem composta e animada e, do lado dos 30 mil portugueses, a esperança de O ver. A ele. Cristiano Ronaldo. "Criiiiistianooooo Ronaldooooooo! Cristianooooo Ronaldoooooo!", cantaram as bancadas na segunda parte, na esperança de ver o homem que carrega o peso de ser o símbolo de um País. Com tudo o que isso tem de bom e, infelizmente e muitas vezes, de mau.
CR7, que não jogou, lá apareceu no final da partida para um treino com os colegas que também não entraram em campo e foi como se outro jogo tivesse começado. Amontoados nas bancadas inferiores, centenas de pais com crianças ao colo. Cartazes, telemóveis na mão, muita foto, muito grito, um entusiasmo doido por ver um homem de 38 anos, em fim de carreira, dar uns toques na bola. Porque é isso que, racionalmente, Cristiano é. Mas, a magia do futebol é transformar homens em deuses.
Os mais entusiastas por Ronaldo são os mais pequenos. Com 5, 6, 7 anos, gritam em plenos pulmões o nome do ídolo. O que se torna ainda mais enigmático porque ainda nem sequer eram nascidos quando CR7 espalhava magia no Manchester United ou no Real Madrid. Cristiano Ronaldo já não é esse Cristiano Ronaldo. Já é um mito, maior do que a vida. Existe a equipa e depois existe Ronaldo. São duas realidades paralelas, que Martínez tem, até ao momento, sabido gerir com mestria (e que Fernando Santos nunca soube, e que o próprio CR7 nunca soube, e que a própria Federação nunca soube).
O que lá vem só Deus sabe. A providência, a adivinhação, o sebastianismo que nos tolhe a razão, diz-me que vamos ganhar este Euro2024 (cá estou, mais uma vez, a deixar-me levar por esta insanidade! Que doença!). Uma coisa é certa: será o último de Ronaldo.
¡Que aproveche!