Esta é uma crónica sobre sustentabilidade. Podia escrever aqui sobre o caldo que fiz com cascas de legumes, o detergente que estou a preparar com vinagre e laranjas ou relembrar tudo o que já preparei com o grão de bico, esse McGyver da cozinha que dá até para fazer até manteiga ou claras em castelo.

Mas vamos só fazer uma pausa no eco-green-zerowaste para no focarmos todos numa coisa: estamos todos nisto juntos malta. Aqui não há recibo verde ou contrato vitalício, não há famílias de sete ou pessoas a morar sozinhas, não há preto, branco, cor de rosa, magros, gordos ou abdominais de ferro. Este bicho pega a todos e todos nós nos estamos a passar com isto.

É normal querer ir apanhar ar, é normal voltar até a correr só para poder pôr o nariz na rua e é normal olhar para o sol que esteve no fim de semana e pensar: "Ei, e se eu fosse para Monsanto? Ninguém me ia ver e assim podia apanhar ainda mais ar". Apanhar ar é a expressão do ano — escusam de ir a votações — e eu dou por mim a encarnar os velhotes que todos os dias via no 718 a subir e a descer a Morais Soares com um pacote de manteiga na mão num dia, no outro dia com o pão. E, nessas alturas, pensava para mim: "Mas que raio, porque é que não fazem as compras todas ao mesmo tempo em vez de andarem aqui a empecer [há palavras minhotas que lamento que não sejam universais]?" Mas agora percebo. Eles só queriam ocupar o tempo, aquilo que todos nós agora tentamos fazer também, nestes dias da marmota que nunca deixam de ser iguais.

Não dá para ir às compras todos os dias? Fixe, assim aproveitamos a comida ao máximo
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Já dei por mim a ir a pé à Maria Granel de Alvalade comprar caril porque sabia que isso implicava quase uma hora de caminho. Já dei por mim a ir ao Continente mais longe de casa, porque o mais perto era só a 5 minutos de caminho e tenho medo que as minhas pernas desaprendam o que é andar. Já dei por mim a fazer uma aula de ioga de manhã e outra de cardio à tarde, só para ter aquela sensação de poder dizer que "fui" ao ioga de manhã e "fui" ao ginásio a tarde". Mas depois o meu namorado chega ao pé de mim e pergunta "Não tinhas ioga agora às 19h30?". Olho para o relógio e são 19h25. Paro e a realidade volta a mim. Cinco minutos é tudo o que precisamos para ir a qualquer lado agora, porque o qualquer lado é sempre a sala de estar.

É lá que treino, que medito, que leio, que "janto fora" quando mando vir comida e que como aquilo que me sai dos livros de cozinha que finalmente tenho tempo para abrir depois de anos parados na prateleira. É lá que escrevo, que entrevisto, que alongo quando as costas pedem e é lá que apanho sol, na nesga de luz que a minha janela deixa entrar.

Por isso sim, preciso de apanhar ar. Chamam-lhe "passeios higiénicos", que raio de nome horrível. Higiénico seria irmos à janela só para apanhar aquela nesga de sol, em vez de estar de cotovelos firmes nos parapeitos e dedo espetado qual espingarda aos pardais. "Ai já viste aquele, sem luvas nem máscara, que falta de noção" ou "Já a vi sair à rua três vezes esta semana. Há gente que devia apanhar o vírus".

Sabem quem é que devia apanhar o vírus? O Bolsonaro e o Trump, juntos, de preferência depois de beijos de língua e sem recurso a ventiladores. Mas sabem porque não apanham? "É da ruindade, nada lhes pega", já dizia a minha bisavó Irene, na altura a falar de uma vizinha, longe de saber que no mundo que me deixou haveria um tempo em que eu, crescida na rua, tinha que ficar em casa.

E apesar da vontade de ir para Monsanto — ou pro raio que o parta que não fosse a sala de estar — ter sido grande, acabei por não ir. Tive medo que muitos tivessem o mesmo ímpeto que eu e que fôssemos todos encher o verde de Lisboa com gente sedenta de ar livre. Mas não fiquei em casa, de cotovelos no parapeito e dedo apontado em riste para todos os que encheram a ponte. É tão fácil isso. É quase como um exercício para fazer subir um ego que está lá em baixo coitadinho, bem espezinhadito. "Olha aquela lixou-se. Ia de férias com o marido rico para Punta Cana e pumba, partiu a perna. Já eu, prefiro ficar com o meu Joca, que não me leva a lado nenhum mas também não parti nenhuma perna". É mais ou menos isso.

Ser sustentável não é só usar saco de pano. E foi preciso uma pandemia para mostrar isso
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Mas aquelas pessoas não iam para Punta Cana, nem sequer para Albufeira. O que passou despercebido — porque isso não é fixe para alimentar a polémica — foi a declaração da polícia que dizia que a maioria de quem circulava nas estradas no fim de semana tinha justificação para tal. E como justificação leia-se declarações da entidade patronal a provar que aquilo não era um passeio.

Ao resto, só vos posso dizer que foi uma boa tentativa e que eu podia muito bem ser uma das recambiadas para a sala de estar com muita vergonha de apresentar à polícia a minha justificação escrita à mão numa folha de bloco: "Necessidade de apanhar ar". Não seria mentira, mas não justificaria mais um carro na estrada. É que, ei!, os níveis de poluição da Avenida da Liberdade, em Lisboa, tiveram na última semana uma redução de 60% em relação ao ano passado, registando-se as concentrações mais baixas dos últimos sete anos. E não é que acabei mesmo por falar em sustentabilidade? Até mereço ir apanhar ar.

Porra, está a chover.