Isto da sustentabilidade funciona um bocado como o ioga. Não vale muito a pena fazer invertidas no tapete, unir as mãos e dizer namaste, para dois segundos depois disparatarmos porque os pratos do lava loiça não se lavaram sozinhos.

Na sustentabilidade, é o mesmo. O mundo está cheio de saquinhos de pano, frasquinhos a dizer "farinha de trigo sarraceno" ou bolos feitos com casca de banana. Mas e o resto? É que sustentabilidade, ao contrário do que muitos possam assumir, não é só estes gestos feitos a pensar no planeta. O importante é fazê-los a pensar um planeta mais pequeno: a nossa rua.

De nada vale comprar a granel, se enchemos a despensa de grão sem deixar nada para o outro. De nada vale sair de casa preparado como se Lisboa agora fosse Chernobyl, se nem sequer perguntámos à vizinha que vive sozinha no sétimo andar se precisa de comida ou de remédios da rua.

A pandemia é horrível e ninguém quer que isto acabe mais depressa do que eu,— até porque já criei a hashtag #divórciooubebés e não sei com qual das duas realidades vou acabar daqui a uns meses — mas há sempre coisas boas a tirar disto. Senão vejam.

Desde sexta-feira, o meu primeiro dia em isolamento voluntário, já conheci praticamente todos os vizinhos do prédio. Desde sexta-feira, já falei mais com os meus amigos do que se nos pudéssemos encontrar todos os dias numa esplanada. Desde sexta-feira já tive mais pessoas a perguntarem-me como estava do que no último ano. Desde sexta-feira já perguntei mais vezes como é que as pessoas estavam do que no último ano.

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Cresci numa aldeia e disso não posso fugir. Por muita Avenida da Liberdade que tenha já calcorreado, não há pavimento mais confortável para mim do que os pedregulhos da serra. E, nessa serra, os vizinhos davam uns aos outros os excedentes da horta. Os vizinhos ajudavam-me a atravessar a estrada quando a minha mãe não me podia ir buscar à escola. Os vizinhos faziam-me carapins (não-minhotos, googlem a minha palavra preferida de todo o sempre) para o inverno e, no verão, deitavam um olhinho para ver se não me aventurava muito no rio.

E finalmente, depois de onze anos em Lisboa, vi nascer na rua esta minha aldeia. De repente as pessoas falam umas com as outras, perguntam como estão, sabem o nome do vizinho e — pasmem-se — até trocam contactos e dizem em que campainha podem tocar em caso de urgência.

bilhete vizinho
Foi este o bilhete que deixei no meu prédio. Agora, já mais pessoas se ofereceram para ajudar e muitas outras colaram bilhetes idênticos nas suas portas.

É porque, de repente, o nosso prédio é uma fortaleza, de onde só saem os mais fortes. Aqueles que, à partida, se encontrarem o Corona, dão-lhe duas chapadas que é o que ele merece. Isso ou ficar no cantinho, de castigo, a pensar no que anda a fazer.

Eu sou uma dessas fortes. Saudável, não faço parte de um grupo de risco e, como tal, sou eu quem sai à rua para as compras essenciais. Aliás, acabei agora de me sentar ao computador depois de uma dessas batalhas urbanas, e o cenário não é bonito. Lisboa não é Lisboa. Lisboa é um domingo de agosto.

Pouca gente, restaurantes fechados, e ninguém fala alto. As filas para os supermermercados faziam curva no quarteirão e eu, perante este cenário, peguei nos meus sacos e voltei para a minha aldeia. Lá encontrei uma mercearia sem olhares de pânico, uma mercearia onde me ajudaram a fazer compras, a escolher o mais fresco e onde até havia papel higiénico. E só não digo o nome porque também eu eventualmente precisarei dessa barra de ouro da Renova.

Essa aldeia é a minha rua, onde há mercearias sem filas, talhos para quem quer carne e padarias com pão fresco todos os dias. É nessa aldeia que está também a Dona Glória, a minha vizinha de 80 anos que diz que não-obrigadinha-não-preciso-de-nada, mas a quem eu deixei o meu contacto caso precisasse.

Deixem também. E falem uns com os outros, saiam à janela, cantem, toquem guitarra, façam ioga ou dez burpees. Ah, e falem alto, sem medos. No limite, assustamos o vírus. É que ele pode ser forte, mas nunca ninguém me ouviu enervada.