Cristiano Ronaldo está a ser apontado pela imprensa de praticamente todo o mundo como o mais do que provável novo embaixador da candidatura da Arábia Saudita ao Mundial de 2030, onde compete contra a candidatura de Portugal, coligado com Espanha e com o apoio da Ucrânia. Embora acredito que esta proposta esteja em cima da mesa, e que as centenas de milhões de euros envolvidos na negociação estejam a deixar Cristiano hesitante, não acredito que ele vá aceitar o desafio. Nem tanto por estar a dar a cara por uma candidatura contra a do seu próprio país, mas, sobretudo, por dar a cara por uma candidatura apresentada por um dos países com um regime político e social mais abjeto do mundo, com violações diárias dos direitos humanos, um total desrespeito pelas mulheres, inexistência de liberdade de opinião, decapitações em praças públicas, mutilações de mãos para quem comete crimes menores, enfim, é só ir ler os relatórios da Amnistia Internacional relativamente a este país.
Os últimos seis meses foram muito duros para o internacional português, que perdeu grande parte do apoio público que tinha um pouco por todo o mundo. Primeiro, viu a sua reputação muito afetada com o comportamento que teve nos poucos meses em que representou o Manchester United desde o verão (sobretudo quando abandonou o campo, uma vez, e o estádio, noutra, por não ter sido escolhido para jogar). Depois, deu uma entrevista polémica a atacar o clube que sempre disse amar, o que fez com que passasse de ídolo a vilão junto dos adeptos que o idolatravam, e levou a que milhões de outros adeptos pelo mundo fora se virassem contra ele. E seguiu-se um Mundial pobre, sem glória, e com mais polémicas à mistura.
Primeira crise reputacional
Ronaldo está a sofrer, talvez pela primeira vez na carreira, uma grave crise reputacional, que tem de ser travada, sobretudo quando o jogador se aproxima do final de carreira, e, naturalmente, não quer que a sua imagem fique colada a estes últimos meses cheios de confusões e atribulações. Ou seja, este é o momento de os spin doctors agirem, de tratarem de encontrar uma estratégia para devolver ao craque a boa imagem que, de certa maneira, sempre teve ao longo da carreira.
Esse trabalho já começou a ser feito. Não foi inocente a notícia que voltou a circular na semana passada de que Ronaldo financiou a Unidade de Cuidados Intensivos do Hospital de Santa Maria. A história tem dois anos mas voltou a ser publicada em tudo o que eram revistas e jornais nacionais há pouco mais de uma semana, logo após a eliminação de Portugal do Mundial. Só que isso é manifestamente insuficiente para calar as milhões de vozes que se iriam levantar caso Ronaldo, agora, decidisse apoiar a candidatura de um país como a Arábia Saudita ao Mundial de futebol.
Há duas coisas que é importante diferenciar. Uma, é o contrato que Ronaldo pode fazer para representar o Al-Nassr, da Arábia Saudita. Cristiano é, em primeiro lugar, um jogador de futebol, um profissional, e deverá zelar pelos seus interesses desportivos e financeiros. Se recebe uma proposta que considera que vai ao encontro dos seus interesses desportivos e financeiros, mesmo vinda de um país com um regime político asqueroso, pronto, faz parte, não há como condenar uma escolha destas. Ronaldo irá para o Al-Nassr jogar à bola, e não fazer política.
Outra coisa bem diferente é Ronaldo dar a cara pelo País — e isso implica dar a cara pelo regime, não há volta a dar — e fazer propaganda pró-Arábia Saudita, seja em que área for. E o que está em causa é muito mais do que isso, o que está em causa é Ronaldo ser o símbolo máximo, o embaixador do país pelo mundo, é ceder a sua imagem para a promoção mundial da Arábia Saudita. É dizer a toda a gente que é a Arábia Saudita que merece receber o Mundial de futebol, que é na Arábia Saudita que os adeptos de todo o mundo serão bem-vindos, que serão bem tratados quando forem ver os jogos das suas seleções. E não é preciso ter uma memória assim tão boa para recordar o que se passou no Qatar, há mês e meio, para saber que tudo isso são histórias da carochinha. E Ronaldo, ao dar a cara pela candidatura saudita, estaria a ser o principal contar de histórias mentirosas pelo mundo fora.
Ronaldo não vai querer ligar-se a um projeto perdedor
Mas há outra razão que me leva a ter a certeza que Ronaldo não aceitará ser o embaixador da candidatura saudita: é que Ronaldo sabe, tem de saber, alguém próximo dele tem de lhe dizer, que a candidatura da Arábia Saudita vai perder. E Ronaldo não vai querer ligar-se a um projeto perdedor, mesmo que isso lhe valha umas centenas de milhões de euros. A decisão sobre a candidatura vencedora deverá ser tomada dentro de um ano, e mesmo daqui a um ano todos nos vamos continuar a lembrar das polémicas que ocorreram no Mundial do Qatar. A própria FIFA, por muito obscura que possa ser — e é —, tem consciência de que atribuir um Mundial à Rússia (2018), ao Qatar (2022) e depois à Arábia Saudita (2030) teria um impacto tão negativo que poderia levar mesmo à formação de um novo organismo de futebol mundial que a pudesse substituir, porque o nível de tolerância das federações internacionais de futebol de cada país vão ganhando cada vez mais consciência social, política, e não vão querer compactuar com regimes tirânicos, que violam os direitos humanos, não respeitam as mulheres, não respeitam a liberdade de expressão.
Ronaldo também não deverá querer que se olhe para a narrativa criada nos últimos meses pelas pessoas que lhe são mais próximas — nomeadamente as irmãs e a namorada —, de que os portugueses traíram Ronaldo, que são uns ingratos para com Ronaldo, que não sabem dar valor a Ronaldo, e se ache que tudo isso foi uma forma de preparar terreno para, agora, CR7 poder agarrar-se a alguma coisa e justificar o porquê de estar a dar a cara numa candidatura contra Portugal.
Por tudo isto, acho impossível que Cristiano Ronaldo aceite ser o embaixador saudita para o Mundial de 2030. Ronaldo poderá ganhar mil milhões se o fizer — e se calhar dinheiro é algo que não lhe faz assim tanta falta — mas poderá perder o respeito, a credibilidade e a admiração de milhões que o idolatraram por esse mundo fora durante 15 anos. E até mesmo em Portugal, todos aqueles que sempre o defenderam, que sempre acusaram os outros portugueses que criticaram Ronaldo de "traidores", "ingratos", "cobardes", deverão ter muita, muita dificuldade em aceitar, agora, que Ronaldo aceite dar a cara contra o seu país num projeto mundial.
Cristiano não nos vai desiludir.