Carla tem 42 anos. Mora no Cacém com o filho. Tem um pequeno negócio na área da estética. Terminou o 12º ano e foi trabalhar mas, ao contrário de alguns colegas de escola que até foram para a universidade, ganha mais do que eles. Ainda assim, todos os meses se vê à rasca por causa do dinheiro que vai parar aos bolsos do Estado. Se não fosse a ajuda dos pais durante a pandemia, tinha ficado sem negócio e sem casa. Foi por um triz.
A Carla paga 600€ por um T2. Gostava de viver numa casa com jardim, ter um cão, mas, mesmo que conseguisse poupar o suficiente para a entrada de uma casa, iria passar o resto da vida a pagá-la ao banco. Quando vê as notícias na televisão (coisa cada vez mais rara, sobretudo depois da pandemia), fica parva com o preço das casas em Lisboa. Em Lisboa? Ali ao lado, na Amadora. 800 mil euros por um T2 novo? Quem é que tem dinheiro para isso?
A Carla considera-se uma pessoa informada. Lê notícias nas redes sociais, ouve podcasts e até já chegou a assinar o Observador. Não quer ser daquelas pessoas que partilha fake news, tanto que, de vez em quando, até vê o Polígrafo na SIC. Mas desconfia dos jornalistas. Na maior parte das vezes, parecem feitos com o poder. E, tirando a CMTV, onde é que há notícias que interessem ao povo? São só notícias de Lisboa, do Porto. O que é que isso interessa a quem vive no Cacém? Ou na terra dos pais, em Trás-os-Montes?
Carla vota de vez em quando. Nem sempre. Nas últimas eleições votou no Chega. E não se arrependeu. Não contou a ninguém porque já sabe o que é que as pessoas vão dizer. "Ah e tal racista, ah e tal xenófoba, ah e tal os malucos do Chega". A Carla não é maluca do Chega nem tem nada contra imigrantes. Os vizinhos são quase todos imigrantes. Andou na escola com brancos, pretos, ciganos, gente de todas as cores. Havia problemas? Havia. E aquela gente que vive lá nos condomínios fechados em Lisboa, que andou nos colégios privados, graças ao dinheiro dos papás, sabe lá o que isso é. Falam é de barriga cheia.
Um dia, por acaso, a Carla viu no Instagram um novo podcast do "Expresso" chamado "Entre Deus e o Diabo". Sobre o André Ventura. "Mais uma propaganda de jornalixo, aposto!", pensou. Mas, como teimosa que é, pôs-se a ouvir. E, com surpresa, descobriu que tinha muitas coisas em comum com Ventura. Também ele tinha nascido e sido criado na linha de Sintra. Também tinha andado na escola pública. Também tinha pais de origens humildes. Carla foi ouvindo, episódio a episódio, ficando cada vez mais fascinada com o líder do Chega que, apesar de achar ser um político que diz as verdades, lhe parecia um bocado fala barato e até a roçar o malcriado (mas sempre era melhor do que aqueles betinhos pálidos da Iniciativa Liberal, que se pareciam todos com os gajos que se roçavam nela às 3 da manhã na Kapital, quando ela ainda saía à noite e uma vodka laranja ainda custava 600 escudos).
Ao fim de cinco episódios, Carla estava rendida. Afinal, o Ventura, que na comunicação social costumam pintar como o demónio, era um gajo esperto. E até era católico. Não que ela fosse (só fez a primeira comunhão e depois deixou a catequese) mas era uma coisa que até admirava, sobretudo em pessoas da idade dela, que não ligam muito a isso. E era romântico! Até se tinha mudado para a Irlanda para ir atrás de uma namorada! Quem lhe dera! O pai do filho nem 10% disso tinha feito (já pagar a pensão de alimentos era um pau). E era inteligente, tinha escrito uma tese de doutoramento, tinha vivido lá fora. Não era nenhum burro, não. Dentro dos tachistas, xuxalistas e dessa maltosa toda que andava a chular o País, a mamar à conta do dinheiro que, todos os meses, lhe saía da conta para pagar taxas e taxinhas, o Ventura parecia o menos mau de todos.
E diz as verdades. E irrita aqueles velhos que estão no poleiro há anos. E, se olhasse bem, Carla até achava piada a André Ventura. A barba, o cabelo bem penteado. Parecia estar em forma. E até fazia danças no Tiktok! Se o filho a ouvisse, diria "ó mãe, que cringe!". Pois é. Era um bocado cringe. Mas tinha a sua graça. À noite, na cama, Carla dava por si a pensar nos braços de Ventura.
Estaria apaixonada?
"Carla" é uma personagem fictícia. Esta história, exagerada e caricatural, tem um propósito: demonstrar que os votantes (e potenciais votantes) do Chega não são malucos nem extremistas nem devem ser encarados como tal. André Ventura, por seu turno, é um político e deveria ser tratado jornalisticamente como tal. E não como um vilão de um thriller da Netflix. O Chega, que é André Ventura, exerce um fascínio nos media (e um óbvio retorno em termos de audiências) que deve ser analisado com racionalidade e frieza. Porque corremos o risco de, apontando desmesuradamente os holofotes para o que, de forma simplista, consideramos ser "mau", essa narrativa venha a ter o efeito inverso. Porque Carlas há muitas. Cada vez mais.