A minha relação com a Igreja Católica é feita de altos e baixos. Fui batizada, comecei a frequentar a catequese aos 5 anos (havia uma coisa absolutamente absurda, chamada pré-catequese que, desconfio eu, era só uma forma de os pais despacharem os miúdos umas horas ao sábado à tarde). Dos 5 anos aos 15 anos, semanalmente, passei tardes (ou manhãs) fechada em salões paroquiais a cantar, a fazer desenhos, cópias, composições, a ouvir catequistas recitar excertos da Bíblia, a explicar (?) os mistérios da fé, desde o nascimento de Jesus Cristo, filho de uma virgem (?), até à ascensão aos céus e ao Pentecostes (que, até aos dias de hoje, não sei bem o que é).

Além da catequese, era imperativo ir à missa, aos domingos, às 10h30, uma crueldade que, apesar de tudo, me ensinou a saber lidar com o mais profundo dos aborrecimentos (e também a ser exímia na arte de contar velas, tábuas de madeira, candeeiros, cabeças de pessoas e tudo o que fosse passível de contagem, desde que desse para passar o tempo). Para grande desgosto familiar, aos 15 anos disse "xau aí" e troquei as catequeses e missas pelo teatro. Melhor decisão de sempre. Não vos querendo aborrecer com a minha história de vida, por volta dos 30 começa o questionamento. Volto a pensar em questões como a existência de Deus, a necessidade de crença em algo maior, nos valores cristãos, na doutrina que, para mim, me fazia mais sentido. E regresso à prática católica, não de forma fervorosa, até bastante crítica, mas regular. A escolha de Francisco, em 2013, para suceder ao ortodoxo e conservador Bento XVI, era uma luz de esperança. E, apesar de tudo, ainda é.

O papel da mulher na Igreja, a forma como a mulher é tratada pela instituição, além da questão do celibato dos sacerdotes, são os principais motivos que me fizeram manter uma distância de segurança e um ceticismo em relação à relevância futura da Igreja Católica. É contraproducente que, em pleno século XXI, se continue a fechar as portas do sacerdócio às mulheres, considerando-as, assim, inferiores aos homens. A Igreja Católica nunca foi propriamente apologista da igualdade de género, porque isso implicaria uma mudança sem precedentes nas dinâmicas de poder (e os homens da Igreja sabem disso); é ainda mais contraproducente achar lógico e racional que um homem sem uma vida sexual e familiar (ou a possibilidade de a ter) possa ser um líder exemplar para uma comunidade. Sendo que esse aspeto até poderia, nos dias de hoje, ser uma opção, não uma imposição, ainda para mais com os incontáveis casos de padres com "sobrinhas", "afilhados" e por aí fora. É a apologia da hipocrisia e da mentira.

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Os católicos (e os ateus) poderão achar esta reflexão ingénua ou hipócrita, como se eu só tivesse descoberto agora que existe um cancro terminal na Igreja. Como se fosse preciso ter sido criada uma comissão para sabermos o que sempre soubemos: há pedofilia, há abusos sexuais, há encobrimento, há permissividade, há violência. Há crimes cometidos ao longo de décadas na Igreja Católica portuguesa, crimes cometidos contra quem menos se consegue defender. E se há crime que é mais antitético daquilo que é o ser cristão, esse crime é a pedofilia. Abusar de uma criança é assassinar-lhe a alma. Violar o corpo de um menor, seja de que forma for (ainda que apenas por meras palavras), é condená-lo a ficar sem o que de mais puro tem a infância: a inocência.

Ao longo destas semanas, em que três relatos concretos vieram a público (o de uma mulher, que foi abusada na adolescência; o de um homem, abusado na infância, ambos divulgados pelo "Observador", e o de um padre, que denunciou 12 sacerdotes, e cujos relatos foram ou desvalorizados ou encobertos, uma investigação do "Expresso"), tenho lido com angústia, com nojo. Tenho assistido com incredulidade às declarações assustadoras do presidente da República, ilibando, ainda que a título pessoal, D. Manuel Clemente (atual Cardeal Patriarca de Lisboa) e D. José Policarpo (ex-Cardeal Patriarca de Lisboa, que morreu em 2014), da tentativa de encobrimento de casos de pedofilia na Igreja. E tenho visto a pouca indignação dos católicos portugueses. E tenho assistido a uma passividade que me enoja. E, dentro de mim, consubstancia-se a triste certeza: eu não quero pertencer a esta Igreja. Eu não acredito nesta Igreja.

Não acredito em catolicismo não praticante. É a mesma coisa que dizer que sou desportista sentada no sofá ou que adoro cozinhar, nunca tendo pegado num tacho. Não faz sentido. A fé é íntima, mas, a não ser que a pessoa crie a sua própria religião, dizer-se crente implica, de alguma forma, aceitar que existe uma organização, regras, uma hierarquia, uma estrutura física, burocrática, política e social. E esta instituição, como está, não me serve. Continuar a dizer-me católica seria aceitar uma instituição liderada por homens que facilitaram crimes contra crianças. A Igreja tem, com certeza, pessoas muito válidas, mas o trabalho sério é manchado, é destruído por este cancro.

São-me próximas pessoas sobreviventes de abusos sexuais na infância. Uma delas abusada por um padre. A geração que cresceu no pós-Casa Pia não terá noção de que, até esse escândalo rebentar em Portugal, quase ninguém falava sobre o tema. Comentava-se, em surdina. Houve o caso do padre Frederico, nos anos 90, mas como aconteceu lá longe, na Madeira, e a Madeira da década de 90 parecia um sítio longínquo, ninguém quis realmente saber.

Pais, padrastos, tios, primos, vizinhos. Padres, catequistas, professores. Abusos mais ou menos subtis, violações. Abusos continuados ao longo de anos, situações isoladas que, durando apenas minutos, deixaram marcas para todo o sempre. Quanto mais relatos oiço (e, não sei porquê, as pessoas, mesmo aquelas com quem não tenho grande intimidade, sentem-se à vontade para me contar estas experiências), mais se desenha uma tenebrosa estatística intuitiva: da minha geração (e já não vamos às anteriores), quase metade terá sofrido, durante a infância ou adolescência, algum tipo de abuso.

Quem tem fé procura na Igreja paz, perdão, redenção, um porto de abrigo. Mas não há paz possível quando a casa que nos recebe esconde escuridão, quando é uma prisão, quando é um lugar de medo, de silêncio. O que é ser católico depois disto?

Como comunicar testemunhos à Comissão Independente para o Estudo dos Abusos Sexuais de Crianças na Igreja Católica Portuguesa

A Comissão Independente para o Estudo dos Abusos Sexuais de Crianças na Igreja Católica Portuguesa, liderada por Pedro Strecht, é a entidade que está a investigar relatos de abusos e a fazer a ponte com as autoridades.

Qualquer pessoa que tenha sido abusada na infância ou na adolescência "por membros da Igreja Católica portuguesa ou pessoas que para ela trabalham" pode deixar o seu testemunho, que pode ser anónimo:

  • formulário online aqui 
  • enviando o testemunho escrito / documentos para esta morada:

CE COMISSÃO INDEPENDENTE
APARTADO 012079
EC PICOAS – LISBOA
1061 – 011 LISBOA

  • através do telefone +351 91 711 00 00
  • através do e-mail geral@darvozaosilencio.org
  • através de um encontro presencial com membros da Comissão, mediante marcação prévia através do telefone: +351 91 711 00 00