Esta terça-feira, um dos concorrentes do "Big Brother" foi sancionado após ter insinuado, de forma descontraída e casual, que teve contactos físicos não consentidos com outra concorrente enquanto esta estava a dormir.

A conversa, na qual estava também Bruno, foi tida de forma leve e descontraída, embora o olhar de Joana fosse de alguma surpresa e alarme. De forma reativa e não preventiva (ou seja, só depois de o tema se ter tornado tópico de discussão nas redes sociais), a produção do reality show da TVI decidiu abordar o tema e sancionar o concorrente. E a sanção é uma metáfora do mundo real: Ricardo levou um tau-tauzinho moral e perdeu o lugar de líder. E, ao contrário do que aconteceu em edições anteriores, em que comportamentos abusivos foram punidos com expulsão do programa, nesta edição a normalização de um comportamento abusivo (tenha ele acontecido ou não) foi tacitamente aceite por todas as partes envolvidas.

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Como é que sabemos que o ato não aconteceu? Não sabemos e nem a produção do programa sabe, a não ser que tenha visão raio X, uma vez que o concorrente insinuou que os atos se passaram debaixo do edredão. E, se não aconteceu, que cabeça retorcida, com ou sem câmaras, se autoelogiaria por ter contactos sexuais com uma mulher sem esta se aperceber? Em que planeta é que isso tem piada? Em que mundo é que vive Ricardo para achar que isso é um tema merecedor de ser parodiado? Ricardo vive no mundo real em que muitos homens (e muitas mulheres também) não só acham que isso é um comportamento normal, como até tem alguma graça.

Voltamos a questões básicas, que são a génese de toda a desculpabilização de comportamentos abusivos por parte de homens: eles têm mais desejo sexual, eles têm necessidades, logo não se conseguem controlar. Têm de se aliviar. E já nem vou falar do quão deprimente é a imagem de um homem a masturbar-se na cama enquanto a companheira está a dormir, como se fosse um animal e não tivesse qualquer capacidade de autocontrolo e racionalidade.

O "BB2020" foi a única edição do programa em que houve realmente alguma noção de contemporaneidade, da forma como pensam os novos (e potenciais) públicos. Mas — e a TVI sabe disso — foi um momento único, porque estávamos em confinamento, não havia aulas presenciais, logo estava à disposição uma faixa etária que, habitualmente, não vê reality shows em televisão linear.

Depois vieram "A Revolução", "Duplo Impacto" e voltámos à mesma lógica tóxica e ultrapassada de representação estereotipada da mulher neste tipo de formato: há a mocinha virgem e inocente, há a maluca oferecida, há a que é solteirona e independente mas magoada com os homens, e depois uma série de personagens secundárias anódinas, que só lá estão para encher chouriços.

A desculpabilização de Ricardo por parte da comentadora Helena Isabel, a forma como destaca o facto de o jovem ter família, ter filhos, e que uma situação como esta o pode prejudicar no futuro é absolutamente asquerosa. O que vale é que, por cada Helena Isabel desta vida, existem um Zé Lopes e uma Ana Garcia Martins, que veem estes acontecimentos como eles são: reprováveis sem apelo.

No entanto, há algo que é absolutamente esquecido e, a meu ver, grave: em momento algum se fala das consequências da situação para a saúde mental de Joana. Em momento algum é referido, debatido, discutido, o que aquela mulher poderá estar a sentir por ter sido equiparada a um objeto, perante — como todos se gostam de vangloriar na TVI — "um milhão de portugueses".

Porque é isso que uma pessoa (seja homem ou mulher) faz quando relega o consentimento para segundo plano: coloca a outra pessoa numa dimensão não-humana, reduzindo-a a catalisador ejaculatório / orgásmico. E isso foi um abuso emocional para com Joana.

A concorrente, em choque, corre para consolar o namorado (que chora não por vergonha do que disse, mas por medo de ter a sua imagem prejudicada... as preocupações desta gente). Mas acredito que, no seu interior, Joana se esteja a debater com a vergonha de se ver exposta desta forma. Porque Joana (#somosotodasjoanas) sabe, como todas as mulheres sabem, que nestas situações, a mentalidade vigente é esta: ele é o garanhão, ela é a oferecida. Para todo o sempre.

O valor das mulheres, em contexto de reality shows, é historicamente de troca e utilitário. A mulher só tem valor enquanto gera conflito (vejamos o caso de Ana Morina) ou se é o interesse amoroso de alguém. Paradoxalmente, o envolvimento físico é sempre penalizador para a mulher. Na vida em geral, e quando há câmaras de televisão ainda mais.