Os leitores perguntam, a psicóloga Sara Ferreira responde. É assim todas as semanas. Saúde, amor, sexo, carreira, filhos — seja qual for o tema, a nossa especialista sabe como ajudar. Para enviar as suas perguntas, procure-nos nos Stories do Instagram da MAGG.

Olá leitor,

A sua pergunta “Alguma dica para quem usa o Tinder?” é, um pouco como o próprio Tinder, algo dúbia e incerta.

“Alguma dica” para quê? Para quem? Quando, como, onde ou porquê? Ou seja, para criar um perfil (suponho que isso não me perguntaria a mim)? Para encontrar alguém? Para parecer mais apetecível ao gosto alheio? Para iniciar uma conversa? Para sobressair entre os demais? Para as frustrações serem de menos?

Bem, já sabe que por aqui vamos sempre um pouquinho mais fundo nas questões, por isso, se o seu objetivo passa por qualquer um dos pontos acima, na verdade não precisaria de mim para nada. Esse tipo de “dicas” 100% genéricas e 200% falíveis pululam na internet e “à la carte”. Aqui a conversa é outra, talvez um pouco menos trivial, mas ainda assim – uma vez que não me disse exatamente o que pretende saber sobre “usar o Tinder” – ofereço-lhe a minha visão livre sobre o tema (e ok, com uma boa meia dúzia de “dicas” suculentas que espero que lhe façam bom proveito).

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Quando me pergunta “alguma dica para quem usa o Tinder”, o que acredito que o leitor está (na realidade) a querer saber é (e diga-me depois se me enganei): como “dar-me bem” ou ter uma relação com uma qualidade minimamente satisfatória através desta aplicação? Será isto? Confirma? Agora de pouco vale, anyway.

Não me tendo indicado ao certo o que pretenderia saber, nada mais me resta dizer senão… tudo aquilo que roda por detrás dos palcos… o que se passa nos bastidores… nas guerras que acontecem lá em baixo, onde “o espírito se encontra com o osso”, como disse um belo autor. Em resumo, aquilo que observo no consultório, em relação às pessoas que utilizam o Tinder.

Nas minhas consultas, já ouvi muitas vezes o seguinte relato: “A pessoa é ótima virtualmente e péssima pessoalmente”. Talvez o leitor até seja um deles, que diante daquele fragmento de segundos diante do teclado consegue dar a resposta mais astuta e engraçada possível, mas que não consegue articular-se ao falar ao vivo. Muitas pessoas sofrem desta espécie de “síndrome” que padece de muita incongruência (mas é um fenómeno atual e bem real). Isto caracteriza aquele tipo de pessoas que se aproveitam da inicial impessoalidade que o computador lhes oferece para libertar as suas facetas ocultas e inexploradas, mas que efetivamente as mesmas não estão presentes no 'tête-à-tête´.

O computador ou o smartphone oferecem uma vantagem estratégica para muitos que querem sentir-se mais vigorosos, ousados e intensos ao teclar. No entanto, o problema é que quando chega o momento derradeiro do encontro pessoal, quem não é compatível com a imagem antes projetada (nos seus 'avatares' online) causa deceção imediata. O encontro transforma-se numa gaveta de congelador, todo aquele clima e sintonia estabelecidos virtualmente naufragam, ninguém parece conseguir soltar-se, e no meio de tudo isto, dois seres humanos, que apenas queriam ser felizes, ficam para ali especados, travados e sem se reconhecerem na sua própria presença (sim, presença, que ainda é algo afrodisíaco para a maioria das pessoas).

O leitor já se deparou com situações assim? E o que fez? Por outro lado… alguma vez já parou para pensar no que é que o Tinder mais pode estar a influenciar, nestes aspetos, a sua vida afetiva ou relacional? A-ha! Pois bem, vamos lá conversar…

O Tinder apesar de ser uma ferramenta, que bem utilizada, auxilia muitas pessoas a encontrarem os seus amores e prazeres, pode provocar-lhes algum tipo de dano pessoal. Siga-me nas próximas linhas e depois diga-me se lhe fez sentido (e sentir).

O Tinder simplifica demasiado a sua capacidade de escolha. Uma das aparentes vantagens do Tinder é poder olhar para as pessoas pelas quais você se interessa, ora para a esquerda, ora para a direita, e no meio dessa grande “montra” selecionar aquilo que lhe cai no goto (e no gosto). O único problema com isso é que na vida real, por mais que faça um “print screen” ou uma impressão inicial (e visual) de uma pessoa, você conta com os outros sentidos e com a própria interação. Então, a minha primeira “dica” para si sobre como bem “usar o Tinder” seria esta:

1) Cuidado para não estereotipar a sua perceção das pessoas (a médio e longo prazos) e avaliar as situações com pressa e superficialidade (e sem levar em linha de conta os fatores humanos e não apenas estéticos).

O Tinder parece eclipsar a capacidade de uma pessoa em aprofundar-se. Seja para ter sexo casual, seja para relacionar-se na intimidade com alguém, não podemos contar apenas com o fator “aparência” ou aspeto. Até mesmo os homens, que geralmente são rotulados por escolherem mais pelo aspeto visual, necessitam de um mínimo de envolvimento e sensação de agradabilidade para se excitarem. No entanto, o mecanismo que o Tinder cria não facilita em muito esse tipo de interação mais pessoal. Neste sentido, meu caro, aponte a próxima segunda dica:

2) Tente perceber se não está a usar a ferramenta como uma criação de um utilitarismo maluco (e avesso à intimidade) na altura de se decidir entre o “conheço”/”não conheço” uma pessoa.

O Tinder deixa o seu desejo insaciável (e predatório, mesmo). O lado mais pernicioso disto é que quando se abre para uma infinidade de escolhas, e começa – consciente ou inconscientemente – a catalogar outras pessoas como mercadoria de um saco, é fácil cair na tentação de ficar insaciável e com a nítida sensação de que mesmo escolhendo algo que desejava, seria ainda capaz de “obter” outra “coisa” muuuuuuuito melhor, se esperasse mais um pouco. A minha terceira dica para “driblar” este tipo de sensação é:

3) Veja se dá ou não por si a comer o almoço só a pensar no jantar, e ao jantar já só pensa no pequeno-almoço. Entende o que quero dizer? Sim, uma mente insaciável que acaba por ter como resultado uma insatisfação crónica, por fantasiar a maior parte do tempo de que nada na vida é para si o suficiente.

O Tinder abre canais de comunicação que não consegue gerir com efetiva qualidade. Conhece alguém capaz de conversar com profundidade e conexão com 20 pessoas em simultâneo? Tipo, um polvo psicológico que seguramente bateria todos os recordes do Guiness? Se conhecer, por favor, dê-lhe um prémio, porque isso é simplesmente impossível. No meio de todas essas interações miscelâneas, um tipo não se lembra bem da história, dos detalhes, das nuances e singularidades que tornam alguém especial… Pior do que isso são os casos em que a própria pessoa nem sabe já qual foi a história que contou para alguém. Então, aqui vai a minha quarta dica para si:

4) Abrir muitos canais nunca será uma boa ideia (quer para os honestos como para os mentirosos). Restrinja para qualificar… e ganhar mais qualidade. Nestas situações, vale a pena dizer-se: “mais vale um pássaro na mão do que 50 matches a voar”…

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O Tinder cria tantas opções que confunde. Diga-me cá, o que é mais fácil, escolher entre três ou 20 tipos de iogurtes? A ciência prova que entre três, as hipóteses de fazer uma boa escolha é maior. Ao colocarmos muitas variáveis na balança as pessoas escolhem pouco e escolhem mal. Acabam por ficar em cima do muro e não sabem como articular o seu desejo (sem conseguir “saltar” para um dos lados). Para além disto, o Tinder restringe muito as suas escolhas ao seu gosto. “E isso é mau?!” – pergunta-me, furibundo. Bem, pode parecer estranho, mas o seu gosto pode ser apenas um filtro viciado que usa para se sentir confortável e não sair do lugar-comum ou dos padrões que lhe são mais familiares. Se faz escolhas amorosas que apenas reforcem o seu gosto, isso pode criar a dificuldade de estar sempre a cair nos mesmos “buracos” do passado. E uma vez que nem tudo o que gosta é *necessariamente* o que lhe faz bem, a minha quinta dica para si é a seguinte:

5) Abra-se à possibilidade de explorar outro leque de opções. Isso irá ajudá-lo a ser mais criativo (e no fim do dia irá surpreender-se!)

O Tinder às vezes alimenta uma vanglória improdutiva. Quantos matches já deu só para ter a vaidade de ver se a pessoa responde positivamente? E porquê? A troco do quê? Será que de uma carência emocional ou presunção pessoal? Se isto acontecer consigo, aqui fica a sexta dica:

6) Lembre-se que aquela foto que vê ali é uma pessoa, é uma vida, uma história, com sentimentos e um coração. É a filha ou a amiga querida de alguém, e não um mero troféu para o suprimento narcísico. Sim, vale a pena levar isto em consideração.

Mas vejamos. A questão não é abolir o Tinder, mas saber manejar a aplicação com alguma sabedoria, não se deixando levar pela onda como se aquilo ali fosse um cardápio humano dividido ou reduzido ao binómio “serve/não serve”. Essa mesma sabedoria, ou consciência, na hora de fazer alguma escolha será levada para a sua vida, logo, se não perceber de que forma “escolhe” no Tinder, isso poderá comprometer a sua capacidade de fazer muitas outras escolhas ao longo do tempo.

A era tecnológica modificou em muito o nosso dia a dia, o nosso comportamento e, claro, os nossos relacionamentos e vínculos amorosos. E afinal, como fica o amor em tempos de Tinder?... O olho no olho substitui-se pelo olho no ecrã. As relações tornam-se mais virtuais do que presenciais. Se quiser provas disto, basta ir a um café ou à mesa de um bar e observar as pessoas (mesmo as que estão próximas fisicamente, conhecidas ou não): cada uma, de cara voltada para baixo, a mexer e a remexer nos seus telemóveis.

No entanto, este tipo de superficialidade dos relacionamentos humanos revela-se na dificuldade (e para muitas pessoas isto é sentido como uma “incapacidade” mesmo) de comunicação interpessoal. E – ironia! – hoje todos parecemos "experts" em expressar o que pensamos e sentimos através das redes sociais (munindo-nos para isso, inclusive de toda a espécie de emojis ou emoticons), mas presencialmente há cada vez mais impedimentos em trocar ideias, aprofundar uma conversa, o que interfere na (co-)construção da intimidade ou da conexão psicológica e emocional.

Como em muitos outros aspetos práticos das nossas vidas (e no campo dos relacionamentos afetivos não é diferente), somos estimulados a ter de “consumir” sempre algo, independentemente da nossa necessidade, para depois descartar e logo reiniciar o ciclo. É um desapego, provisório, feito de incertezas e buscas incessantes pelo novo, que vem também carregada de muita angústia e ansiedade. Com o passar do tempo, as pessoas ficam com uma sensação de aceleração interna e isso vai implicar numa falta de paciência na vida, como se tudo fosse um “jogo” que se divide entre incrível e o entediante, entre a obsessão e o desinteresse total.

Percebo que as pessoas procuram algo (como sempre assim foi e sempre será, aliás, isso faz parte da nossa condição de estarmos vivos), no entanto, muitas não sabem exatamente o quê.

Surgem então estas novas formas de nos vincularmos e de nos relacionarmos uns com os outros, e no caso das aplicações como o Tinder, o fácil acesso, a possibilidade de bloquear ou eliminar a pessoa sem a necessidade de dar mais satisfações, reforça a ideia da inconstância e precariedade das ligações. “Tu não prestas para mim? Não me interessas ou agradas? Não há problema, porque há outros para escolher, como produtos numa prateleira.”

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Desta forma, seja a possibilidade de um namoro ou simplesmente a experiência pela experiência, quando busca no Tinder, lembre-se de que existem outras dimensões, intenções e questões que vão além do que lhe é apresentado no ecrã. E é importante prestar atenção a elas. Não se trata de colocar a aplicação no papel de vilã, até porque há pessoas que encontraram, neste recurso, relações longas e satisfatórias. Parece-me, porém, ser necessário refletirmos sobre a forma como o Tinder tem sido utilizado por algumas pessoas, que reforça ainda mais um problema que observo todos os dias em consultório: a crescente vacuidade e desconexão emocional dos relacionamentos, na nossa sociedade atual.

Para conhecermos, de facto, alguém e construirmos com a pessoa uma intimidade (não me refiro a sexual) com alguma qualidade do ponto de vista emocional, é preciso tempo. Tempo para perceber esse outro, para conhecê-lo e reconhecê-lo, como pessoa real que é (que é muito mais do que um “perfil” ou uma foto na internet). E tempo, sobretudo para uma coisa. Para se perceber a si mesmo e reconhecer as suas próprias dificuldades e necessidades (que invariavelmente se manifestam no tipo/qualidade dos relacionamentos), sem fugir delas e sem projetar nos outros a responsabilidade de as suprir. Quando isto acontece, o resultado é um desastroso e dececionante desencontro.

Até para a semana!