Provavelmente, já ouviu dizer que só usamos 10% do nosso cérebro. A afirmação está longe de constituir um facto, sendo consequência do mais eficaz criador de boatos, o famoso jogo do telefone estragado.

Como este, há mais. Os cérebros femininos e masculinos são mesmo projetados para desempenharem diferentes competências? Os sustos provocam gaguez? Os jogos mentais ajudam a prevenir a demência? E a Internet, torna-nos burros? Tudo isto não passa de boatos — ainda que, da relação excessiva de crianças com dispositivos digitais possam surgir alguns problemas de desenvolvimento.

São os famosos mitos do cérebro, dizem Alexandre Castro Caldas, reputado professor catedrático de Neurologia, Diretor do Instituto de Ciências da Saúde da Universidade Católica, antigo presidente da International Neuropsychological Society, e vencedor do Grande Prémio Bial de Medicina, e Joana Rato, neuropsicóloga e investigadora do Centro Interdisciplinar em Saúde, da Universidade Católica Portuguesa, instituição em desenvolve o projeto "Mente, Cérebro e Educação".

A dupla é a que assina o livro "Neuromitos", editado pela Contraponto, em que, numa altura de célere propagação de boatos científicos, desvendam uma série de fábulas relacionados com o cérebro, desde as origens da gaguez, à diabolização dos canhotos ou ideia de que homens e mulheres têm competênciais diferentes. Leia a conversa com a MAGG.

neuromitos

Houve algum momento, alguma notícia ou informação, em que bateram na mesa e pensaram: "Já chega, temos de escrever um livro a desvendar mitos"?

Joana Rato (JR): Não foi uma coisa dos últimos tempos. Já é um trabalho que temos vindo a desenvolver desde, sensivelmente, 2011. Junto do trabalho junto das escolas e professores, temos percebido que há um grande fascínio sobre o cérebro, mas que depois a informação ou aquilo que é efetivamente conhecimento científico, chega de forma distorcida, muito exagerada, por vezes. Entretanto os mitos e a sua propagação crescem muito (não só no contexto escolar, já é uma coisa muito mais alargada), dando ainda mais sentido a esta discussão. Achámos, portanto, que era uma boa altura para começarmos a identificar aqueles que circulam mais e, até, aqueles que parece que estão a nascer agora — e que se não travarmos, poderão crescer ainda mais nos próximos anos.

Alexandre Castro Caldas (ACC): Acho que é obrigação de um profissional, de um neurologista e de uma neuropsicóloga, tentar pôr ao serviço das pessoas a informação certa, para perceberem as coisas, num momento em que o mercado está invadido por informações que não são válidas, mas a que as pessoas aderem com muita facilidade. Toda a notícia é hoje um bocado distorcida portanto convém que haja alguém que faça a tradução da leitura científica. Essa intenção parece-me que é muito importante. Daí termos ido buscar para fazer o prefácio e posfácio do livro duas pessoas que se têm preocupado publicamente com esse tema, que são excelentes divulgadores da ciência e que são nossos parceiros nesta missão.

Mito. O sudoku previne a demência

Quais é que são os neuromitos mais recentes?
ACC: As dietas para o cérebro, para se ficar mais inteligente. Também a ideia de que fazer sudoku previne a demência. Acho que é ótimo as pessoas estarem entretidas a fazer sudokus, porque não lhes faz mal nenhum à cabeça. Mas não impede a demência, porque a demência é uma doença. Não é uma coisa que se construa por inércia.

Os jogos mentais, não ajudam a retardar o aparecimento de doenças como o Alzheimer, por exemplo?
ACC: Não há prova nenhuma de que retarde. O que pode é contribuir para a redução da morbilidade, devido à redução da inatividade. Basta pensar que se pusermos uma pessoa demente frente à televisão o dia todo, ela vai ter uma deterioração muito mais rápida. Mas se mantivermos a atividade, como contacto social, jogos, música, isso impede que o processo de deterioração próprio do envelhecimento se vá somar à doença. Portanto, vale a pena apostar nessas atividades para reduzir a comorbilidade que pode acompanhar a doença.  É um trabalho que deve ser feito a vida toda.

Mito: só usamos 10% do cérebro

Diz-se que só utilizamos 10% do cérebro. Mas isto não é bem assim.
ACC: Não. A grande questão vem de há muitos anos, quando [William] James disse que devíamos tirar o máximo partido do potencial que temos. Mas ele não pôs números. Depois houve alguém que resolveu que era assim e, portanto, ficou mais bonito e mais engraçado. E toda a gente acreditou e continua a dizer isso.

Usamos o nosso cérebro todo, mas cada um desenvolve mais umas áreas do que outras. É isso?
ACC
: Exatamente. Pode haver umas partes mais desenvolvidas do que outras. Segundo a experiência que tenho com analfabetos, o facto de não terem aprendido a escrever e a ler em idade própria, fez com que as áreas da leitura e da escrita não se tenham desenvolvido. Quando, mais tarde, vão aprender a ler,  usam outras zonas do cérebro para fazer isso, ainda que com mais dificuldade. O cérebro é muito plástico. E tem espaço para muita coisa.

Mito: os sonhos representam aquilo que nos transcende

O que é que diriam às pessoas que, depois de sonharem, vão procurar o significado daquele sonho?
ACC: Os sonhos tem sido, de facto, um mito muito interessante. Houve imensas decisões do mundo que resultaram de sonhos. Há muitos episódios da Bíblia que acontecem durante os sonhos. Há uma tradição do significado do sonho que é difícil de apagar das pessoas. E, portanto, há muitas pessoas que conheço que sempre que sonham vêm contar a história. Não que acreditem, mas pensam "o que quererá isto dizer?". E se for premonitório, melhor ainda. Houve um enorme influenciador da interpretação dos sonhos, que foi o Freud, que o fez a partir da ideia do inconsciente. Ora, a neurociência não reconhece o inconsciente como estrutura de funcionamento do cérebro.

Como é que a neurociência explica o sonho?
ACC
: Tem a ver com o funcionamento básico do cérebro, coisas que estão a acontecer, sem que tenhamos essa percepção, exatamente como quando respiramos ou temos o coração a bater, sem que estejamos a reparar nisso. Os sinais que aparecem durante a atividade onírica, em que aparecerem estas imagens e sequências, são construções feitas no momento de acordar. Não devíamos ter memória disso, porque estamos na fase REM do sono. Só que nesta fase, o cérebro tem de estar próximo da fase da vigília, para ter acesso à informação sensorial, que está nas memórias sensoriais e nas memórias episódicas. Portanto, podemos acordar no fragmento final do sonho e, rapidamente, construímos uma história. E a história é tão diferente quanto se a contarmos logo a seguir, ou dez minutos depois, porque damos-lhe mais lógica.

Há aquelas teorias que atribuem causas a sonhos, como caírem-nos os dentes.
ACC: O Freud bem que tentou encontrar uma tipologia para isto e há livros de descrição destes sonhos típicos. Mas é possível que haja sonhos típicos porque nós somos todos parecidos uns com os outros e, portanto, provavelmente sonhamos com coisas semelhantes.

Já agora, e aqueles espasmos assim que adormecemos?
ACC
: Isso é a mioclonia do adormecimento. É o movimento involuntário que pode surgir na fase em que desligamos o sistema motor para adormecer. É uma espécie de pequeno curto circuito no sistema motor que causa o estremecimento, como se fosse um susto. Isso é perfeitamente normal, toda as pessoas têm isto.

joana rato e alexandre castro caldas
Alexandre Castro Caldas e Joana Rato

 Mito: Homens e mulheres desenvolvem diferentes competências

Os homens e as mulheres têm cérebros diferentes?
ACC. O cérebro desenvolve-se um bocadinho depois do sistema endócrino, que é o modelador da biologia e do desenvolvimento. As hormonas masculinas e femininas vão modelar diferentemente o cérebro. Depois, o cérebro tem de estar preparado para modelar e organizar o corpo para as funções diferentes de cada um dos sexos. Portanto, à partida, temos de entender isso como uma questão biológica natural, tal como a formação dos órgãos sexuais.

Então, nada de competências diferentes?
ACC
. Há alguma evidência que aponta para que existam pequenas diferenças de funcionamento entre homem e mulher, mas que não implicam o resultado final — implicam, apenas, a metodologia ou as redes do cérebro que são envolvidas nessa tarefa. Nós quando estamos perante um problema vamos recrutar aquilo que é mais apropriado para o seu cumprimento. E pode ser que recrutemos diferentemente as coisas, por uma diferente organização de base. Ou seja, não é o resultado que está em causa, portanto não podemos dizer que as mulheres são competentes para umas tarefas e os homens para outras. Pode apenas dizer que o processo é ligeiramente diferente. E também não podemos dizer que isto é determinado biologicamente, à partida, porque há uma quantidade de aspetos que são, sem dúvida, culturais.

Diz-se que as mulheres desenvolvem melhor características como a empatia e o altruísmo e os homens noções espaciais.
JR: Não podemos generalizar e dizer que os homens conseguem apresentar um raciocínio espacial, quando há mulheres que também apresentam esse raciocínio espacial. O que pode acontecer é que podem, efetivamente, utilizar de forma diferente o cérebro, mas para atingir o mesmo resultado.

Isto tem muito a ver com os tais aspetos culturais, com as circunstâncias em homens e mulheres, ao longo da história, viveram.
ACC. Este é um tema muito difícil de estudar porque as culturas são muito diferentes no mundo e é preciso percorrê-las e entendê-las a todas. É completamente diferente a relação entre homens e mulheres em diferentes partes do mundo: há muito mais mulheres em África e muito mais homens no Tibete. Portanto, as circunstâncias de vida influenciam muito esta questão. Antes os síndromes de Down ficavam em casa. Hoje são ativos. Se forem bem ajudados, desenvolvem atividades. Portanto, o cérebro tem um potencial enorme, uma grande capacidade para se desenvolver conforme a circunstância em que estiver, sobretudo em idades precoces.

Sabe-se alguma coisa sobre os meninos que nascem a sentir-se em corpos de menina e vice-versa?
ACC. Esse é outro tema. Já apareceu um artigo com diferenças anatómicas, mas descobriu-se que tinha sido forjado. A Science teve de fazer um desmentir. Não há nada encontrado no cérebro que module isso. Mas seria muito bizarro que seria tão visível. Não há dúvida de que pode acontecer isso. E acontece realmente. Há pessoas que não se sentem bem no seu corpo.

Mito: os sustos causam gaguez

Não ficamos gagos com sustos.
ACC. É provável que isto venha da ideia de que com grande emoção, como os sustos, ficamos com dificuldade sem falar. Mas sustos grandes toda a gente já teve na vida. Portanto, teria de haver muito mais gagos.

De onde vem a gaguez?
ACC. Há uma quantidade de genes ligados à gaguez. Já estão identificados. E há de facto fatores familiares ligados à gaguez.

Mas é possível desenvolver este problema não havendo um fator genético.
ACC. Há um período fisiológico da gaguez, que é quando o corpo caloso (aquilo que reúne os dois hemisférios cerebrais) matura. Acontece pelos dois a três anos de idade, período de decisão em que se cria a dominância de um dos lados para a articulação verbal. Há muitos miúdos que têm, nesta fase, um período de gaguez, sendo que só um em quatro é que fica gago, porque persiste o defeito na sequência de não conseguir estabelecer convenientemente esta organização.

Mito: a Internet torna-nos mais estúpidos

A Internet não nos torna menos inteligente. Mas a má utilização dos dispositivos pode ser prejudicial a nível do desenvolvimento?
JR: Não podemos pôr o peso nos dispositivos. Isto tem que ver com a forma como vamos usando estes recursos que têm surgindo e que nos têm facilitado a vida. Mas se falarmos de crianças e de jovens em pleno crescimento, se passam muito tempo de volta da internet, não estão a fazer outras coisas essenciais para o seu desenvolvimento. A mim preocupam-me especialmente as crianças pequenas. Entre os 1 e 2 anos, é essencial que corram, saltem e explorem o que está ao seu redor. Portanto, se estão grande parte do tempo sentadas com o tablet, obviamente que isso vai ter consequências. Alguns estudos, ainda são poucos, dizem-nos que já se verificaram consequências no desenvolvimento em crianças que passam o chamado tempo ilimitado no tablet e dispositivos móveis. Não que estes aparelhos não tenham também jogos estimulantes e interessantes. O problema é o tempo despendido. E isso é que tem de ser muito bem gerido.

Que competências é que não estão a ser desenvolvidas?
ACC: Isto tem de ser olhado por fases de desenvolvimento. Há jogos educativos, como é o LEGO, em que os miúdos não estão a optar, mas sim a tomar decisões, que é muito importante para a aprendizagem da vida. Depois, há também uma fase, que é mais complicada, em que se desenvolve a comunicação, que entretanto passa toda a ser feita através destes ecrãs, que vêm modificar tudo. Nas redes sociais é muito difícil perceber o que é a verdade e a mentira porque desapareceu a pessoa. De repente, deixa de se conseguir ler as pessoas, deixa de se ter capacidade de relação e empatia com quem está á nossa frente. Isto é crucial para a formação das pessoas. Já se veem crianças que estão constantemente agarradas às redes sociais, que deixam de ir aos sítios, que deixam de querer estar com os outros, preferindo ficar em casa. Isto mostra-me que é uma coisa com que nos devamos preocupar. É um potencial problema.

Pode então torná-las mais vulneráveis?
ACC: Tira-lhes sobretudo o sentido da verdade das coisas. Tudo pode ser verdade, conforme for dado. Nós depois conseguimos moldar a informação para ela ser verdadeira, porque o mundo está, neste momento, cheio disso. Faz-me muita aflição.

Muitos dos pais dão os telefones e tablets com o objetivo de os manterem sossegados. O que é que sugerimos a estes pais tendo em conta as necessidades do desenvolvimento da criança?
JR: É muito difícil encontrar uma solução e falo porque percebo perfeitamente os pais que cedem porque sabem que naquele momento vão ter algum descanso, sobretudo se pensarmos agora na pandemia. A questão é definir uma rotina. Impedir totalmente é muito difícil, mas estabelecer que há um tempo limite para que isso possa ser feito, tentando seguir essa regra. E tentar encontrar alternativas. Os miúdos antes divirtiam-se muito sozinhos. Agora, o que acontece é que quando estão sozinhos, pedem as tecnologias. É a maneira que eles têm de passar o tempo. Tem de se arranjar outras formas, arranjar outros jogos, chamar a atenção para outras coisas.

Qual a utilização máxima que uma criança deve fazer diariamente destas tecnologias?
JR. O que está definido pelas associações americanas é que até aos 2 ou 3 anos devia ser totalmente proibido. A partir dessa idade, uma hora no máximo.

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