Cartas românticas, ramos de flores, chocolates e bilhetes deixados no carro: parece o início de uma história de amor, mas não é. Em muitos casos é o começo de um longo relato de stalking. Em Portugal, são mais de 400, por ano, os casos registados de assédio persistente e perseguição, como é chamado na versão portuguesa, segundo dados referentes a 2016 da Associação de Apoio à Vítima (APAV). Há muito tempo que este assunto deixou de ser exclusivo entre celebridades: no mundo real os stalkers ganham vida em companheiros/as ou ex-companhairos/as, amigos, vizinhos, colegas de trabalho e até em desconhecidos. Um estudo feito com estudantes universitários refere que a maior parte das pessoas não considera o stalking como algo grave. Pior ainda, existe, em muitos casos, uma romantização da situação: "Em termos culturais estamos sempre a tentar reforçar que a persistência compensa e que 'quem não arrisca não petisca'. Depois também é uma questão de género, diz-se que as mulheres devem sempre ser relutantes e nunca dizer sim à primeira. Isso transmite a mensagem de que os homens devem insistir e persistir", explica Helena Grangeia, investigadora e docente do ensino superior, que estuda o tema desde 2007.
É para mostrar que estas histórias que podem ser de terror afinal existem na vida real que Manuel, Catarina, João e Maria (nomes fictícios) nos contam as suas histórias. Quatro versões muito diferentes de como é viver com alguém que persegue todos os seus passos.
Sem exagero ligava-me 50 vezes por dia. Ela desculpava-se e dizia que era porque gostava de mim e não conseguia estar sem falar comigo, mas eu achava aquilo opressor."
Manuel conhecia "Rita" desde miúdo. Numa altura em que estavam ambos solteiros acabaram por se envolver. Tinham sempre sido vizinhos da frente mas, naqueles meses, estavam a viver em sítios diferentes, por isso só se viam ao fim de semana. Quando começaram a namorar Rita não aguentou a distância: "Sem exagero ligava-me 50 vezes por dia. Ela desculpava-se e dizia que era porque gostava de mim e não conseguia estar sem falar comigo, mas eu achava aquilo opressor", conta Manuel. E quando as chamadas não paravam ele atendia e dizia-lhe que estava tudo bem, que não precisava de ligar mais. Mas nem isso a acalmava. Para ele a relação começou a ser cada vez menos desejada e, com o passar do tempo, os comportamentos de Rita só iam piorando. Foi aí que decidiu pôr fim à relação.
Mas a situação complicou-se: depois de acabarem Rita fechava-se dentro do prédio dele e dizia que só saía quando ele descesse. "Nessa altura tive de a começar a tratar um bocado mal, disse-lhe algumas coisas más (como por exemplo que ela era maluca) e deixámos de falar". Passados uns meses, a vida de cada um seguiu em frente, mas apesar de tudo Manuel tinha pena de como as coisas tinham acabado: "Sempre pensei que pudéssemos ficar bons amigos. E foi assim que cometi um dos maiores erros da minha vida".
Na altura ele vivia sozinho e tomou a iniciativa de lhe mandar uma mensagem a perguntar se queria ir lá a casa para falarem: "Entretanto, com o clima da noite, envolvemo-nos outra vez, só que, a meio, ela disse que afinal não queria e foi-se embora". E a partir daqui a história tomou repercussões assustadoras para a vida de Manuel: "Começou a mandar-me mensagens a dizer que eu a tinha violado. Dizia que eu a tinha obrigado e que não queria ter feito nada daquilo. Foi ao hospital e enquanto lá estava enviava-me as fotos dos relatórios médicos (que foram inconclusivos porque, obviamente, eu não a tinha violado), e chegou também a ir à polícia apresentar queixa contra mim".
Manuel tinha de manter o cadastro limpo por razões profissionais e ameaçou avançar com um processo de difamação contra Rita. Aí as coisas acalmaram e ele acabou por arranjar uma nova namorada. Mas as situações não resolvidas do passado, com Rita, fizeram com que a relação terminasse: "Ela descobriu, pelas redes sociais, que tinha namorada e começou-lhe a enviar mensagens no Facebook, a dizer que eu a tinha violado. Até mandou as fotos dos relatórios do hospital e da queixa na polícia". E não ficou por aqui: "A seguir pintou-me o carro com verniz das unhas, duas vezes. Da primeira vez não fiz nada, mas da segunda vez chamei a polícia e fui-lhe bater à porta. Eu sabia que só podia ter sido ela", acrescenta.
Como não tinha provas concretas, a polícia não pôde fazer nada quanto ao assunto, e para Manuel a situação tinha-se tornado insuportável: "Não me sentia à vontade em estar na minha própria casa, em ter outro relacionamento com alguém ou sequer o meu carro estacionado à porta. Fiquei com a liberdade constrangida". Mas a ameaça de lhe colocar um processo por difamação foi o suficiente para fazer Rita parar de vez, e o processo foi também arquivado
"Temos uma panóplia de contextos e cenários que podemos incluir no conceito geral de stalking", explica Helena Grangeia. "Há várias maneiras de stalking: podemos estar a falar de perseguição por parte de ex-companheiras ou ex-maridos e é aqui que, normalmente, temos mais homens a perseguir mulheres. Mas é importante perceber que também temos, em termos de motivação, casos muito diferentes: neste conceito cabe, por exemplo, uma pessoa que só queira vingança, pessoas que queiram construir uma relação de intimidade com a outra pessoa ou pessoas que até queiram só demonstrar afeto de uma forma que não é socialmente aprovada". Neste caso temos duas motivações: numa primeira fase a stalker é motivada pelo desejo de construir uma relação. Numa segunda fase apenas quer vingança por ter terminado o namoro.
Começou no Facebook: quando as pessoas comentavam as minhas fotografias, ele ia lá e deixava sempre um gosto nesses comentários, para eu perceber que ele tinha visto".
Catarina é um outro exemplo de como uma relação pode levar a comportamentos de perseguição. Quando namoravam ele já era do tipo controlador, e quando ela decidiu acabar, porque não estava a gostar do rumo que as coisas estavam a levar, Bernardo (nome fictício) não aceitou bem a decisão: "Começou no Facebook: quando as pessoas comentavam as minhas fotografias ele ia lá e deixava sempre um gosto nesses comentários, para eu perceber que ele tinha visto".
No início não passavam de pequenas coisas, mas não tardou até avançar para uma fase diferente. "Comecei a receber mensagens dele quando estava sozinha, sem os meus amigos, a dizer coisas como: “Estás muito bonita com essa camisola vermelha”, ou “essas calças pretas ficam-te mesmo bem”. Eram sempre mensagens em que ele nomeava uma peça de roupa que eu tinha vestida e a cor, para eu saber que ele me estava a observar. E isso era assustador", conta Catarina.
Depois disso Bernardo começou a faltar às aulas e acusava Catarina de ser a culpada: tudo porque ela tinha acabado a relação. "Houve também uma altura em que ele começou a vir para a porta da minha casa durante a noite. Aparecia lá e ligava-me a dizer que se tinha chateado com os pais ou que estava com um problema qualquer e precisava muito de falar comigo. Comecei a ficar com medo quando isto começou a acontecer muitas vezes", explica.
A partir daí, Bernardo passou a persegui-la na rua, tornando a vida de Catarina num pesadelo: "Se eu estivesse sentada num café, ele ia sentar-se duas mesas ao lado. Eu nunca saía da escola sozinha porque os meus amigos, e até os meus professores, já tinham conhecimento da minha situação, e mesmo assim, quando eu saía, fosse para onde fosse, ele ia atrás de mim".
Algum tempo depois de as perseguições começarem Bernardo foi para uma casa de correção e as coisas acalmaram, mas para Catarina nunca acabou: "Inconscientemente estava sempre a olhar para todo o lado para ver onde é que ele estava. Fiquei muito tempo com medo de sair sozinha à rua".
Rapto e ameaça com arma
As consequências psicológicas para as vítimas de stalking são muito profundas. A pessoa perde a sua privacidade e a sua individualidade, diz Helena Grangeia, acrescentando que "há uma característica do stalking que é devastadora para a saúde psicológica das vítimas: o facto de a pessoa não saber qual será a sua próxima investida. Ou seja, cada vez que sai de casa a pessoa está aterrorizada. Cada vez que toca a campainha ou que toca o telefone, a pessoa fica aterrorizada porque poderá ser o stalker".
A partir daí começou a perseguir-me todos os dias: esperava por mim à porta de casa, mandava-me constantemente mensagens e ligava-me a toda a hora a dizer que, se eu não lhe pagasse, ele me matava."
O caso de João distingue-se do resto. A história dele não advém de uma relação e muito menos de algum desejo do stalker em criar uma relação de intimidade com a vítima. Mas mesmo assim vivia aterrorizado com a ideia do que lhe podia acontecer. Quando numa noite, ao tentar disparar uma arma ilegal que, Samuel (nome fictício) lhe tinha passado para a mão, esta explodiu. Foi o fim da amizade e o início de um conto de horror: "Cobrou-me o dinheiro da arma que eram 800 euros, mas na altura eu estudava e não tinha dinheiro para lhe pagar. A partir daí começou a perseguir-me todos os dias: esperava por mim à porta de casa, mandava-me constantemente mensagens e ligava-me a toda a hora a dizer que, se eu não lhe pagasse, ele me matava", lembra João.
As esperas à porta de casa faziam com que fosse fácil, para Samuel, encontrá-lo. Numa das vezes em que o apanhou chegou, inclusive, a apontar-lhe uma arma à cabeça: "Já não aguentava mais a situação e decidi pedir o dinheiro emprestado a um amigo". Mas Samuel não aceitou o dinheiro e dizia que queria mais: "Chegou a raptar -me numa noite e a levar-me para o cemitério. Acabei por lhe dar mais 800 euros para ele me deixar em paz".
Uma das motivações para um stalker avançar com a perseguição é a vingança. E a forma de lidar com qualquer perseguidor vai, em muito, depender da sua motivação. Se estiver perante uma situação destas "pode alimentar a própria campanha de assédio o facto de o perseguidor perceber que a vítima está a ficar perturbada. Se ele se quer vingar da pessoa e percebe que ela está a ficar com medo então vai pensar que está a resultar e vai continuar. E, nesses casos, propomos aquilo que são planos de segurança pessoal, ou seja, tentar proteger ao máximo o alvo", aconselha a investigadora.
Das rosas e chocolates às mensagens constantes
Maria conhecia o seu perseguidor há alguns anos: tinham andado na mesma escola básica e andavam agora na mesma escola secundária. Não eram amigos, apenas conhecidos sem qualquer tipo de contacto.
Comprava-me rosas e chocolates e tentava dar-mos enquanto me puxava para sítios onde estava menos gente. Eu recusava e isso ainda era pior, ele ficava chateado e agressivo".
Ao fazer amizade com rapazes também amigos de Tomás (nome fictício), este começou a querer aproximar-se cada vez mais: "Começou a ter interesse por mim e, a partir daí, começou a perseguir-me: eu ia para a escola, ele vinha atrás de mim, ia para o shopping, ele vinha atrás. Comprava-me rosas e chocolates e tentava dar-mos enquanto me puxava para sítios onde estava menos gente. Eu recusava e isso ainda era pior, ele ficava chateado e agressivo".
Os amigos não ajudavam Maria, pelo contrário, ainda pioravam a situação: incentivavam-no porque "achavam piada" ao que se passava entre eles. As coisas pioraram quando Tomás conseguiu o seu número, por um dos amigos que tinham em comum, e começou constantemente a mandar-lhe mensagens e a ligar-lhe. "O pior que me aconteceu foi quando se sentou ao meu lado no autocarro e começou a tentar tocar-me, em público. Dessa vez dei-lhe um estalo porque achei que a situação estava a escapar ao meu controlo", conta.
Maria acabou por contar a história à mãe, e foi ela que a ajudou a pôr um ponto final na situação: "Por acaso ela conhecia o pai do rapaz e avisou-o de que se ele não parasse, íamos fazer queixa na polícia. Entretanto o ano acabou, ele saiu da escola e deixei de o ver". Quando, por acaso, se voltaram a cruzar, ficou surpresa ao saber que Tomás estava a ser seguido e medicado por um psiquiatra por causa do desgosto que tinha sofrido com ela.
Helena Grangeia explica que, na maioria dos casos, o stalking não tem, necessariamente, a ver com questões psicopatológicas. Pode apenas ter a ver com questões de personalidade, e não de uma delirância, mas estes também existem: "Temos de entender que há casos mais excecionais que se tratam de situações delirantes ou perturbações em que há uma quebra da realidade, em que o perseguidor acha que a pessoa está mesmo interessada. Por exemplo, os casos mais mediáticos com celebridades têm a ver com este tipo de especificidades. Nestes casos também é mais difícil eles pararem apenas com a advertência da justiça, e será necessário tratamento psiquiátrico, porque há uma deturpação da realidade que está sempre a favor dos seus delírios".
Nenhuma destas vítimas com quem a MAGG falou fez queixa à polícia e a investigadora alerta também para isso: "Acima de tudo e em todos os casos deve-se informar as autoridades porque, hoje em dia, isto é crime e há formas de atuação e de proteção destas vítimas". Todos eles pediram duas coisas: o anonimato e que toda a gente fique alerta deste problema.