"Primeira Pessoa", o primeiro programa de Fátima Campos Ferreira após o fim do "Prós e Contras", estreia-se esta segunda-feira na RTP1, logo após o "Telejornal". Apanhámos a jornalista ao telefone, em viagem do Porto, onde esteve a filmar o “Primeira Pessoa” com Rui Veloso, e conversámos sobre memória, passado e futuro e também sobre os planos da jornalista para a reforma.

Quando começou a pensar no “Primeira Pessoa”, o que é que queria fazer?
Era mudar de registo. Eu já vinha dando sinais há alguns anos. A primeira coisa que faço em televisão é uma entrevista à Maria Clara, mãe do Júlio Machado Vaz. O programa chamava-se “30 Minutos Com”, em 1986. Fiz centenas dessas entrevistas, na RTP Porto. Nesse programa passou a vida do País.

Depois fiz o “Jornal da Tarde” durante seis anos, depois o “Telejornal”, durante sete, e começo a fazer o “Prós e Contras”, durante 18 anos. Ao longo desse período fiz muitas emissões especiais, desde o Prémio Nobel, eleições de cardeais, a morte de João Paulo II, os 500 anos do descobrimento do Brasil, muitas coisas.

Em 2011, faço uma série de entrevistas chamada “Portugal e o Futuro”. Comecei a fazer entrevistas de outra forma, a pessoas que tinham pensamento relevante e uma história para contar. Eu venho dando esses sinais, sempre em paralelo com o “Prós e Contras”, que foi uma epopeia. Sempre muito difícil de fazer, de elaborar, de construir semanalmente. É o tal património documental que fica agora no arquivo público. Quando eu penso que vou fazer o 'funeral' ao "Prós e Contras", vou pensando juntamente com uma equipa jovem um conceito para fazermos um programa periódico em antena. E escolho esta equipa, jovens talentos que vieram da Academia RTP, e que eram os melhores. Foi elaborada uma estratégia e um conceito para o “Primeira Pessoa”.

É um registo documental, quase.
Isto traz uma gramática visual diferente do habitual. Talvez até surpreenda. A grande vantagem deste registo é que é muito cinematográfico, transporta-nos para muitos registos ao mesmo tempo. Vai interpelar o espectador de muitas formas. Não só pelo conteúdos do que está a ser dito mas também pelas imagens, pelas reações.

Nas primeiras imagens às quais tivemos acesso, foi muito engraçado ver reações espontâneas de uma pessoa como o António Barreto, que tem uma figura sempre muito sisuda.
Esse trabalho foi feito em 4 horas de entrevista no Palácio de Seteais e mais 3 horas no Jardim da Estrela, num outro dia. São sempre 2 dias de filmagens. A chave deste programa é a junção de um jornalista que tem uma viagem profissional e que obteve um certo olhar sobre a sociedade, e que tem memória - é a grande vantagem de já ter idade - com uma equipa que tem uma gramática estética diferente. É aliar o que se devia fazer sempre nas redações, os mais velhos com os mais novos.

O que é que foi mais desafiante?
Eu gosto do palco, em termos absolutos. Pode ser um registo com plateia, semelhante ao que eu exercia, pode ser um registo a dois. Gosto da conversa, de ir ao fundo, de exercitar esse trabalho, não só da memória como do conhecimento. Esse trabalho a dois, entre mim e o entrevistado, também é o fruto desse desafio de eu continuar a ser alguém que entende esses momentos como momentos profundos de diálogo que é buscado na alma do outro a cada momento.

A cada momento estou a procurar que saia cá para fora aquilo que o outro não tinha previsto dizer. Cada programa será único, apesar do conceito ser o mesmo. Cada programa terá uma essência diferente, porque são personalidades distintas, de quadrantes distintos. E é essa diversidade que penso que poderá agradar ao público. É olhando para estas personalidades, de quadrantes tão diferentes, que eu tenciono — e penso que os portugueses poderão também descobrir — qual é o pensamento que o País tem.

"Depois da reforma, pode ser que abra um canal no Youtube e trabalhe por conta própria"

Tem 30 anos de profissão. Qual é o seu contributo para o jornalismo português?
O meu contributo… é um mar de contributos! Não sei… contribuí e contribuo com aquilo que me diz a consciência, todos os dias. Infeliz ou felizmente, nem penso na pandemia, ando aqui a percorrer o País com uma equipa de várias pessoas. O meu contributo é aquilo que me diz a consciência em termos de sentido público. Eu tenho algum sentido de missão, como se percebeu no final do “Prós e Contras”. Eu disse isso publicamente porque é uma coisa que vive dentro de mim desde sempre. Se houver algum contributo que eu possa ter é o de cumprir o que me diz a minha consciência. Mais nada.

Acha que a memória, o sentido de missão, vai escasseando no jornalismo?
Isso parece-me que é no imediato. Mas, como eu olho para o grande quadro da História, sei que a memória fica em tudo o que fazemos. Nós vamos deixar muito mais memória, também devido às tecnologias. Todos os trabalhos que fazemos, em jornalismo e não só, vão ser estudados pelos que vierem a seguir. Tenho pena que não se dê mais importância à memória, até de um passado recente. Sei que muita gente até terá dificuldade em perceber qual foi o papel de António Barreto mas para isso está cá o serviço público, que vai lembrando. O serviço público tem essa missão. Sem memória, não somos ninguém. A memória é a nossa ligação para o futuro.

Fátima Campos ferreira
créditos: Pedro Pina / RTP

No texto que escrevi sobre o último “Prós e Contras”, enganei-me na sua idade. Escrevi que tinha 65 anos, quando tem 62…
Isso não tem problema nenhum. Eu ri-me. Sou de 4.4.1968 (risos)

Há pessoas que dão importância a isso.
É já público que tive um cancro de mama, safei-me para já. Tenho 62 anos, não há problema nenhum nisso. Chegámos a um tempo, cada vez mais, em que as pessoas valem pelo que são, não é pela idade, por serem bonitas ou feias, gordas ou magras. É pelo que têm na cabeça.

Imagina-se a deixar de trabalhar?
Não! Vou andar lá até aos 70, até me mandarem embora. Não faz sentido quando se faz com tanto prazer aquilo que se gosta, quando se está rodeado de gente jovem, em troca permanente. Nós vivemos em troca permanente. O meu realizador tem 28 anos, a minha produtora tem 25, vivo numa troca diária. Isso é um grande privilégio que a vida nos dá. Seria mau para mim e penso que também para eles. Enquanto a vida me deixar, vou trabalhar. Até porque a reforma, só a teria aos 67 anos. Mas nem nisso penso, só quando for obrigada. E depois disso, pode ser que abra um canal no Youtube e trabalhe por conta própria. Esta é a minha vida e este é o meu compromisso com a minha vida.

"Não se é bom em velho se se foi mau em novo."

Sente-se a última das moicanas da sua geração?
Não, não. Há muitos moicanos na minha geração.

Refiro-me a mulheres. Porque não há ninguém como mais de 50 anos a fazer informação.
Não, não! Tem a Dina Aguiar, que tem 66 ou 67 anos.

Mas na RTP. Nos outros canais, não.
Há muita gente na imprensa escrita. Há formas de as pessoas continuarem a colaborar. Penso que, hoje em dia, não é a questão da idade que se coloca. É a questão da qualidade. Não se é bom em velho se se foi mau em novo. Depois, há os lugares de hierarquias, de estruturas. Não é esse o caso. A fazer coisas, só consegues sobreviver se fores bom em novo. Tens o know how, o conhecimento, que é posto à prova diariamente.

Ao longo destes 30 anos de jornalismo, qual foi a maior vitória e a maior derrota?
Tudo o que eu fiz foi muito importante para me consolidar como pessoa, em primeiro lugar, e como jornalista. Não consigo tirar nenhum pedaço da minha carreira para fora. É evidente que ter feito 18 anos daquela epopeia do “Prós e Contras”, que foi muito difícil porque fi-lo também com muito poucos apoios e foi um trabalho muito esticado. Estive muito dedicada. Passei anos e anos a estudar aos fins-de-semana. Agora estou na mesma porque estou numa luta contrarrelógio com a COVID-19. Tenho de gravar o máximo de entrevistas que puder e sei que à frente vou acalmar.

Mas, durante anos e anos, passei Natais e fins de ano a trabalhar, não tinha fins-de-semana, andava sempre aflita, faltavam convidados… digamos que foi uma prova muito dura que me orgulho de ter feito. Tudo vale o que vale. É preciso ter noção disto. Nada é importante na vida, tudo é relativo. Ainda assim, tenho consciência de que esse esforço, para aquilo que eu sou como ser humano, foi importante. Foi um esforço muito grande do qual me sinto orgulhosa. Não sei se foi uma vitória. Nós nunca podemos ajuizar nos nossos próprios trabalhos. Eu não sei nada sobre mim. Quem sabe são os outros. Derrotas… todas os dias tenho derrotas, que é quando não consigo o melhor, aquilo que sonho. Mas como sou muito insistente, muito persistente, sou capaz de passar uma noite a ler papéis, a estudar, vou trabalhando um pouco mais nas coisas.