Na memória coletiva, o que fica da história das novelas são os protagonistas, os vilões, os desfechos dramáticos, muitas vezes os genéricos orelhudos. Os nomes de quem as escreve, estas "ultramaratonas" que tantas vezes ultrapassam os 12 meses de ficção, raramente estão na ponta da língua de quem as consome. Mas são eles os construtores das narrativas de amores, desamores e intrigas.

Inês Gomes faz parte desse grupo de escritores há 20 anos. Começou nas lides das novelas em 2001, na extinta Casa da Criação, que escrevia as tramas da TVI. Do seu currículo fazem parte êxitos como "Anjo Selvagem", "Feitiço de Amor", ainda em Queluz de Baixo e, depois, já na SIC,  "Mar Salgado", "Amor Maior" e "Paixão".

Serra da Estrela: tenha os sabores de "Bem Me Quer" e da "A Serra" em sua casa
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A autora tem atualmente duas novelas em exibição na SIC. "Terra Brava", que está na reta final, e a recém-estreada "A Serra", que já é líder de audiências. A MAGG conversou com Inês Gomes sobre a novela protagonizada por Júlia Palha e José Mata, sobre o impacto da pandemia na ficção e sobre o preconceito que (ainda) existe em torno de um formato que, diariamente, é consumido por mais de dois milhões de pessoas em Portugal.

A SIC está a exibir duas histórias da sua autoria, "Terra Brava" e "A Serra". Nos últimos seis anos, teve quatro novelas suas em horário nobre. Sente-se o "Special One" das novelas?
(risos) Não, de todo! Calhou ter tanta novela. Acho que me esforço para ter bons produtos. Tenho tido também uma boa equipa a trabalhar comigo. Há muitos fatores, não me sinto de todo o "Special One" (gargalhada).

SIC e TVI têm novelas que se passam na Serra da Estrela (“A Serra” e “Bem Me Quer”). Foi frustrante quando percebeu que a novela da TVI não só se iria passar no mesmo local, como ia começar primeiro?
Sim, foi um bocadinho. Mas acho que são produtos diferentes e nós continuámos a fazer a nossa história, apesar disso. Isto, na ficção, às vezes acontece. O "Coração d’Ouro" era no Douro e a TVI teve uma novela que ia ao Douro [n.r.: "Santa Bárbara"].

O cenário inicial da novela era uma serra ou já era concretamente a Serra da Estrela?
A ideia inicial foi a Serra da Estrela, especificamente, e foi-me sugerida pelo Daniel Oliveira [diretor geral de Entretenimento do grupo Impresa].

Porquê a Serra da Estrela?
Porque tem umas paisagens lindíssimas. Ainda não tinha sido utilizada em novelas quando decidimos e porque é um universo que, ao mesmo tempo, faz parte do País e é muito diferente. É a serra mais alta que temos, com aquele ambiente meio inóspito, duro, e com características muito diferentes. E as próprias pessoas da serra têm vidas diferentes. Fazia todo o sentido aproveitarmos.

A Serra - primeiro episódio
créditos: SIC

Independentemente de um canal lhe pedir uma novela passada em determinado local, nas suas histórias nascem primeiro as personagens ou os sítios?
Varia conforme as novelas. Nesta, por exemplo, nasceu primeiro o sítio e depois as personagens. Mas há outras novelas que fiz nas quais comecei por criar a história, as personagens e só depois é que se decidiu o sítio.

Há uma tendência, à medida que surgem cada vez mais estas parcerias entre os municípios e os canais, a adequar as personagens, as suas profissões, aos locais onde elas se movem?
Acho que sim e que, quando vamos para um sítio, devemos aproveitar o que há de melhor e de único nesse sítio.

"A Serra" tem a particularidade narrativa de ser - e vou fazer a comparação de que me lembrei - como um saco de nozes. Em cada episódio vão-se quebrando pequenos segredos que fazem parte de um segredo maior. Isso vai manter-se ao longo da história?
(risos) Nós tentamos. Esta é uma novela com muito segredos. Nós demos segredos a todas as personagens e fizemos um trabalho com a direção de atores e a coordenação de projeto e com o elenco, para eles não partilharem os segredos. Eles não sabem os segredos uns dos outros. E isso resultou muito bem. Depois, há segredos mais fortes, outros menos, mas nós tentamos sempre surpreender o telespectador.

“A Serra” marca o regresso de Sofia Alves às novelas. Não desmerecendo o restante elenco, houve um cuidado especial na construção desta personagem [Carlota Pereira Espinho] não só porque é o regresso da Sofia, mas também porque é a primeira vilã dela?
Quando construí a personagem ainda não sabia que ia ser a Sofia Alves [a interpretá-la], mas fiquei muito contente quando soube. Ela é a antagonista. Nós tentamos ter sempre cuidado com todas as personagens, mas os protagonistas e os antagonistas são aqueles que fazem mover a história para a frente. São essenciais para nós.

Os antagonistas são os mais interessantes de ir desenvolvendo?
Sim (risos)! Geralmente os mocinhos acabam por não ter, em termos de desenvolvimento, o mesmo interesse. Por acaso aqui, como a protagonista é da serra e é uma miúda rija, orgulhosa e com energia, acaba por não ser uma protagonista mais apagada ou desinteressante.

Secante.
Sim, secante (risos).

Há algumas protagonistas que são secantes do início ao fim. No caso da Fátima (Júlia Palha), ela tem aquela bravura, quase como a serra. Mesmo o Tomás (José Mata), com os segredo que tem, não parece ser o clássico galã.
E não é. Ele tem ali segredos, tem muita coisa para o impedir de ser o mocinho que a Fátima queria (risos).

A Serra - primeiro episódio
Tomás (José Mata) e Fátima (Júlia Palha) créditos: SIC

"Terra Brava" estabeleceu uma tendência: o regresso à novela clássica. Já não temos aquelas novelas carregadas de causas e assuntos de atualidade, como aconteceu nos últimos anos. Acha que é a atualidade a impor no telespectador um desejo de escapismo ou só uma tendência na ficção?
Acho que, às vezes, as pessoas se cansam de ver a realidade completamente retratada na ficção. As pessoas querem ver ficção para se distraírem. Se for demasiado realista, acabam por se sentirem um bocadinho enganadas, penso eu. E a ficção vai mudando, as histórias e as tendências vão evoluindo com o público. Nós vamos tentando acompanhar, perceber o que é que o público quer. Nem sempre acertamos, mas tentamos.

"Continuam a existir preconceitos contra as novelas. Mesmo entre quem escreve, produz, realiza"

As novelas que estão atualmente em exibição começaram a ser concebidas antes ou mesmo no início da pandemia. De que forma é que acha que esta realidade que estamos a viver, e que ainda vai perdurar, se vai refletir nas histórias que vão ser contadas na ficção, sejam novelas ou séries?

Acho que vai haver uma altura em que já podemos contar histórias sobre a pandemia. O manancial, em termos dramáticos, é fortíssimo. Temos pessoas que foram obrigadas a viver juntas. Filhos que se sentiram culpados por matarem os pais. Em termos dramáticos, isto tem um grande potencial de histórias. Mas acho que temos de dar um bocadinho de espaço às pessoas para se esquecerem disto.

Acha que vai haver essa tentação (pelo menos a nível internacional) de querer verter já para uma série pessoas em confinamento, ou um drama num hospital durante uma pandemia?
Acho que vai, quando isto passar. Porque, neste momento, ninguém quer ver em ficção dramas sobre a pandemia Penso eu. Está toda a gente muito farta disto. Mas acho que sim, que vai ser aproveitado. Os filmes e séries-catástrofe com pandemias têm sempre público.

Começou a escrever ficção em 2001, na extinta Casa da Criação, que fazia novelas para a TVI. Há diferenças entre escrever para o público da SIC e da TVI?
Eu comecei a escrever novelas na TVI há alguns anos. Fui para a SP [Televisão, produtora das novelas da SIC] em 2010. Acho que o que mudou foi o tempo que passou e o público mudou nos dois canais.

"Nunca Digas Adeus" foi a sua primeira novela que, na altura, não foi propriamente um êxito de audiências. Se pudesse fazer essa adaptação em 2021, o que é que mudava?
Já não me lembro bem, mas a história era boa! Deu-me muito gozo fazer essa adaptação. Aquilo também dava num horário muito tardio. A Lídia Franco e o Nuno Homem de Sá eram os protagonistas. Não lhe sei dizer, já não me lembro bem da novela.

Quando vos é pedido para fazer a adaptação de um formato, é mais limitador ou consegue-se ter bastante criatividade, apesar de haver uma base que é preciso seguir?
Depende da forma como é feita a adaptação. Se for uma adaptação mais livre, acabamos por ter mais liberdade. Se for uma adaptação que tem de ser mais fiel ao original, isso depois também tem a ver com os termos em que é comprado o formato e é acordado fazer a adaptação. Aí, é seguir a historia e adaptar ao nosso País e realidade.

Porque é que, apesar de termos atualmente uma quantidade de séries impossível de consumir num tempo de vida, a novela tem subsistido e continua a ser o formato líder de audiências?
Acho que há espaço para vários tipos de produto e acho que o público continua a gostar desta histórias mais prolongadas que, no fundo, lhes fazem uma companhia constante durante uns meses. É um formato que lhes permite sonhar um bocadinho. Sentem-se próximas das personagens porque são produtos feitos em Portugal e com personagens portuguesas. Sentem-se próximos, identificam-se. Acho que pode haver um fator de identificação que ajuda a novela.

As novelas britânicas e norte-americanas duram anos. Curiosamente, não existe, por parte de quem escreve e faz crítica sobre televisão, o preconceito que há em relação ao consumo desse tipo de formato. Porque é que acha que isso existe em Portugal?
Não sei. Há uns tempos era porque havia poucas novelas, porque a indústria estava a dar os primeiros passos e podia ser um formato que tinha mais problemas. Neste momento, não sei porque é que as pessoas continuam a ter preconceitos porque não há nada em Portugal que faça estes números, em termos de ficção. Não há nada que consiga ter mais de um milhão de telespectadores diariamente. Há uns anos dizia-se que as novelas iam acabar porque as pessoas novas já não veem novelas. Mas não. Nós continuamos a ter público de todas as idades.

Isso notou-se muito durante a exibição da novela “Nazaré”. Cada vez que havia uma ação dramática, o Twitter disparava a falar sobre a personagem da Carolina Loureiro.
E isto é um fenómeno muito específico nosso, do Brasil, da América Latina. A explicação do porquê não sabemos. Mas sim, em Portugal continuam a existir preconceitos contra as novelas. Mesmo entre quem escreve, produz, realiza, continua a haver preconceito. Quando, na verdade, isto é uma escola imensa! Isto é como correr ultramaratonas. Tem que se aguentar este ritmo, criar histórias muito longas. Isto acaba por ser uma grande escola.

Imagine que existia um formato chamado “The Mountain”. Era exatamente a mesma história da sua novela, mas estava na Netflix. Era capaz de ser um sucesso e não havia esse preconceito. 
Talvez (risos)!

Se lhe dessem orçamento e tempo ilimitados para fazer uma novela ou uma série, qual seria a história?
Ai, não sei! Tinha de pensar e fazer uma grande história. Mas ia gostar mesmo muito (risos)!