Aos 4o anos, Marlene Vieira estreia-se em televisão, na quinta temporada do "Masterchef Portugal". O programa de talentos para cozinheiros amadores regressa à RTP1, canal onde foi transmitida, em 2011, a primeira temporada portuguesa.

A chef, nascida no Porto mas com raízes minhotas, integra o painel de jurados, juntamente com o veterano Vítor Sobral e Óscar Geadas, uma aventura que começou há três meses (as várias fases do formato já estão todas gravadas). Marlene Vieira salta dos comandos da cozinha (é a líder do Zunzum Gastrobar, além de ter um food corner em nome próprio no Time Out Market, ambos espaços em Lisboa) para o pequeno ecrã, tendo a difícil tarefa de, juntamente com Vítor Sobral e Óscar Geadas, escolher quem vai ser o próximo Masterchef português. A MAGG conversou com a chef nortenha, que nos contou tudo sobre esta aventura e sobre o que é ser uma mulher líder num mundo predominantemente masculino.

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créditos: Pedro Pina / RTP

Quais eram as suas expectativas quando entrou nesta aventura e qual é, agora, o balanço?
A minha expectativa foi: 'como é que vou gerir estas emoções todas e como é que vou conseguir passar aos aspirantes todo o meu conhecimento?'. Havia muitas perguntas na cabeça e nós tínhamos de nos focar. Foi gradual. Eu optei por entrar com muita calma. Apesar de estar nervosa por me expor, porque é sempre difícil. Para mim, ao longo dos anos, tem sido quase um exercício constante. Eu não queria vir com muitas expectativas em relação aos concorrentes, queria proteger-me um bocadinho, porque fico muito ligada às pessoas em geral, e eu não queria...

Não queria sofrer.
Sim, essa era a minha base. Não quero sofrer muito. Só um bocadinho! Foi um programa de cada vez, um desafio de cada vez. E, às vezes, o Óscar ou o Vítor diziam 'eu acho que aquele concorrente vai estragar tudo' ou 'eu acho que aquele vai ganhar'. E eu dizia: 'não pensei nisso. Vamos tentar, aos poucos, ir ajudando este e aquele'. E fui gerindo assim as minhas expectativas. No final, conseguimos juntar tudo isto e foi um espetáculo.

Há algum concorrente que gostaria de ter a trabalhar consigo?
Sim, sim! Há uma na final, que eu gostaria de ter comigo. Tenho uma tendência muito natural para ir buscar mulheres.

Porque há poucas.
Não só. Há muitas mulheres na cozinha. Não há é mulheres chefs. Mas eu tenho este instinto de proteção. Como eu sofri um bocadinho para me manter nesta profissão...

É engraçado que diga 'manter'. Imagino que para chegar também não deva ter sido fácil.
Para chegar, não foi difícil. Para manter foi muito mais. Como em tudo.

Porquê?
Porque me tentaram deitar abaixo muitas vezes. [Diziam-me] 'tens o ego muito alto, tens muita confiança'.

Como é que isso acontece na prática?
Eu furo o meu caminho. Sou muito obstinada, determinada. Assumo que há sempre obstáculos, mas é só um obstáculo e eu vou passar por cima dele, nem que tenha de ser agressiva, na verdade. Porque sou muito teimosa, sou muito determinada e gostei sempre de ver o mundo pelos meus olhos. Nunca fui muito influenciável. Isto tem que ver com a personalidade da pessoa e fui assim desde criança, de querer apresentar o meu ponto de vista das coisas. E fui criando esta forma de estar na vida. Mas, muitas vezes, não me deixavam. Tentavam que eu fosse mais submissa, que eu fosse mais recatada, mais quieta.

Mas isso acontecia com superiores seus?
Não. Mais com colegas. Os chefs que me contratavam acreditavam no meu trabalho e queriam que eu estivesse ali, queriam que eu crescesse. Mas eram os meus pares, as pessoas que estavam ao mesmo nível do que eu, que me puxavam para trás, constantemente. De me tentarem por insegura, de eu não me sentir capaz. Acontecia de várias formas. Isso acontece muito nas cozinhas com as mulheres. De tocar ali em pontos fracos, 'ai, estás a chorar porque és menina'. Bullshit! Os homens também choram. Eu tive mais homens a chorar na cozinha do que mulheres. Mas é tentar tocar ali em pontos que magoam uma mulher.

Paradoxalmente, se a mulher foi muito agressiva, também é criticada por causa disso?
Não há assim muitas mulheres agressivas na cozinha. Homens, sim. E as melhores, as pessoas que me motivaram, que me inspiraram, de quem, de certa forma, bebi da confiança delas, eram pessoas muito calmas, muito caladas, até. Jamais entravam em confronto, até faziam ouvidos moucos. Este é o comportamento de grande parte das mulheres nas cozinhas: muito focadas, muito sossegadas e não são nada agressivas nem competitivas.

Os homens que me inspiram também são assim. É uma forma de estar na vida mais respeitosa, racional, de pensarem nas coisas, de terem cuidado como falam com o outro, de não serem explosivos. Tive várias oportunidades de ir para França e não fui porque eu sabia que grande parte das cozinhas tinham equipas explosivas e eu não ia saber lidar com isso. Ia acabar por desistir da cozinha e eu não queria.

"Assumo que há sempre obstáculos mas é só um obstáculo e eu vou passar por cima dele, nem que tenha de ser agressiva"

De certa forma, sempre me fui protegendo e protegendo aquilo que eu queria: seguir alta cozinha, mas fazendo um caminho completamente paralelo ao que existia. Tive oportunidade de ir para restaurantes com estrela Michelin, em França, e nunca fui. Porque eu podia facilmente desistir, ficar desiludida com a minha profissão, com o ambiente. E quis construir e provar que consegue-se fazer alta cozinha sem se ter essa agressividade. E, hoje em dia, há muitos restaurantes assim. Mas, na altura em que eu comecei, e o Óscar [Geadas], havia uma tensão muito grande, de agressividade nas palavras, pouco companheirismo, muita competição. E eu ficava: 'isto é uma falsa equipa. Isto está cada um por si'. Aquilo fazia-me muita confusão. E, quando tive oportunidade de construir a minha equipa...eu renasci!

"O sangue que corre nas minhas veias é o sangue da galinha da cabidela (risos)!"

No entanto, essa imagem do chef rock star, com um temperamento explosivo, é o que ainda vende mediaticamente.
Sim. Isso é o que mais me entristece. Eu entendo que, pelo choque, chame a atenção das pessoas. Gostam porque não é na casa delas (risos)! As pessoas também gostam de ver a reação e admiram uma pessoa que é capaz de estar ali em confronto direto e aguentar-se sem desabar. As pessoas gostam disso no Mundo todo.

Mas não gostam de ir a um restaurante e estar a ouvir berros na cozinha!
Pois não. Depois, há aqui uma contradição total entre o mundo da televisão e o mundo real. Se calhar precisamos deste choque de realidade. Mas o "Masterchef" não é isso.

É precisamente o contrário: mostra que é possível haver drama e conflito sem os decibéis lá em cima.
Exatamente! É preciso haver tensão e as pessoas, lá em casa, estão a torcer por aquela pessoa que está ali a sofrer, a tentar. Isso é, basicamente, o que nos acontece aqui (suspiro). Já tiveram de me tirar daqui. 'Sai, Marlene, tens que sair, senão vais ter um AVC ou uma coisa parecida'. Dá vontade de vestir uma jaleca e ir para ali ajudar. Foi complicado, mas nós percebemos que o mundo da televisão é assim. O Vítor [Sobral] disse que é possível fazer um programa em que não é nada disso.

Claro que vai haver tensão, claro que, se calhar, vai haver injustiça. É possível, porque nós somos humanos, e falhamos. Há lugar a tudo isso, só não há lugar à agressividade. Ponto. Quando um de nós ficava irritado com um dos concorrentes, porque tinha vontade de lhe dar na cabeça, os outros dois não deixavam que isso acontecesse. O nosso trabalho aqui é inspirar. É fazê-los evoluir pelo lado positivo. Com as nossas diferenças todas, conseguimos segurar o outro, criticar-nos uns aos outros, para fazer com que isto resultasse lá para fora de uma forma muito mais humana, real e o mais genuína possível.

O facto de os três chefs terem raízes fora de Lisboa também tem esse extra de interesse?
Eu acho que foi estratégico! Sou do Porto, mas as minhas raízes são minhotas. O sangue que corre nas minhas veias é o sangue da galinha da cabidela (risos)! Eu podia ter nascido na China que tudo aquilo que me foi apresentado na infância tem tudo que ver com os costumes e as tradições minhotas. O Óscar é de Bragança, o Vítor nasceu em Lisboa, mas sente-se alentejano. Acho que isso foi muito bem pensado. Não é uma combinação óbvia. O Óscar tem uma estrela Michelin em Trás-os-Montes. Lá é completamente improvável, e eu e o Vítor temos uma forte veia de cozinha portuguesa.

E também era essa a mensagem que se queria passar para as pessoas, e não as vedetas de televisão a que as pessoas estão habituadas. Se bem que o Vítor é já muito conhecido do grande público, eu também já tenho alguns seguidores nesse sentido, o Óscar começa a ter agora, mas não é aquela coisa que toda a gente queria ver aqui, chefs que, se calhar, já estão muito distantes do mundo real.

Estão noutro patamar.
Nós achamos que estamos todos na mesma linha da frente, a da cozinha portuguesa, cada um com a sua identidade. Para nós, não está noutro patamar. Está para o público em geral. Tem que ver com aquilo que o público valoriza: se valoriza a estrela Michelin, os prémios, a casa cheia, o que transmite de identidade... e isso é muito difícil de julgar, de quantificar ou de qualificar. Eu percebo isso. Na verdade, quando estamos todos juntos, somos só cozinheiros. É essa a sensação que temos. O que temos todos em comum é a paixão pela comida.