Passam poucos minutos das 10 horas quando me apercebo do que está a acontecer. Como se tivesse sido possuída por uma entidade sobrenatural, e só agora tivesse voltado a mim, tomo consciência de que estou de costas para a televisão a esfregar efusivamente o meu sofá com um pano molhado. As armas do crime estão espalhadas por toda a parte: o aspirador está no meio da sala, o balcão da cozinha tresanda a detergente e consigo ouvir a máquina da roupa a centrifugar. Não era suposto isto ter acontecido. Como é que vim aqui parar?
Perguntem a qualquer jornalista se alguma vez se arrependeu de ter sugerido um artigo, e em menos de nada estarão a ouvir a resposta. Todos têm a sua história de uma ideia genial que parecia extremamente divertida — na teoria. Quando a realidade se revelou bem diferente e a ideia genial lhes deu uma chapada na cara, perceberam que perderam uma excelente oportunidade para ficar calados. Foi exatamente isto que me aconteceu quando decidi passar um dia inteiro a ver o canal Panda. No meu caso, a bofetada veio carregada de arco-íris, vozes fofinhas, lições sobre reciclagem e sustentabilidade e demandas heroicas para salvar o dia.
Antes de avançarmos, importa ressalvar que não tenho filhos. Portanto, não estou habituada a estas coisas da programação infantil — caso contrário, podem ter a certeza que este trabalho nunca teria acontecido. Só posso agradecer às minhas caras colegas que já são mães por não me terem deixado fazer isto com o Baby TV.
A sério. Obrigada.
O Ruca é um bocado egoísta, quero uma camisola do Panda e a minha preocupação é a mãe da Peppa
São 9h08 quando me sento no sofá e ligo a televisão. Por uns momentos, por uns breves momentos, quase acredito que sou novamente uma miúda e que é fim de semana em vez de quinta-feira. O cenário só deixa de fazer sentido quando como a primeira colherada de iogurte natural com manteiga de amendoim. Se fosse de facto uma criança estaria a devorar uma taça de cereais com leite porque, bem, quando somos miúdos não queremos saber de calorias, nem tão pouco fazemos ideia de como é que se pronunciam as palavras “dieta cetogénica”. Em adultos a história já é outra.
O Francisco Garcia está na televisão e eu penso que se calhar não mudou assim tanta coisa desde que eu tinha oito anos — há 21 anos, portanto. Claro que ele agora já não é o miúdo de “Médico de Família”, mas também não está assim tão diferente. Se considerarmos que ainda me lembro dele a apresentar o “Disney Kids” (vá-se lá saber porquê, estive a fazer as contas e já tinha 15 anos), está igual.
Voltemos ao que interessa. Francisco Garcia está a apresentar a “Caderneta do Panda” que, percebo rapidamente, está prestes a acabar. Uma espreitadela rápida à programação do canal faz spoiler ao que aí vem: “Ruca”. Depois da publicidade que, vá-se lá saber porquê, me deixa com uma enorme vontade de comprar uma camisola do Panda, lá está ele na televisão. É o segundo episódio que me deixa seriamente preocupada com este personagem que, achava eu, era um verdadeiro amor. Não é. Na verdade, é até um pouco egoísta.
O episódio começa com uma ida à praia. Passemos à frente o facto de o pai do Ruca ter a bagageira mais pequena do mundo e ser obrigado a colocar o chapéu de sol no teto do carro. Quando chegam à praia, os pais querem ir-se embora porque está a chover. O Ruca não quer, claro, e convence-os a ficar. Mesmo quando o pai já deixou cair a sandes na areia, levou com água do chapéu de sol na cabeça e tem a toalha encharcada, o raio do miúdo não desiste.
Ele sabe que os pais estão a odiar tudo — ele admite-o, o sacana —, mas decide distrai-los desafiando-os a ir apanhar conchas. Portanto, o Ruca não só é um pouco egoísta como é também manipulador. Não estava à espera disto, que desilusão.
Tenho uma vaga ideia de ter começado a ver “My Little Pony”, mas não consigo recordar-me de nada do enredo. O Ruca durou menos de meia hora, mas parece ter sido o suficiente para esgotar as minhas energias. Começo a refletir sobre os lençóis da cama que precisam de ser mudados, o fogão que precisa de ser esfregado, as migalhas que estão no chão. E o aspirador ali tão perto. Pumbas, perco a consciência. Quando acordo, tenho a casa virada do avesso e um sofá encharcado.
Obrigo-me a largar tudo como está e a voltar para a televisão. Sento-me no chão (o sofá está molhado), mesmo a tempo de um episódio de “A História de Pedrito Coelho”. Foi a minha primeira vez com estes desenhos animados e deixem-me dizer-vos que fico um pouco triste com a estranha sensação de que o pai do Pedrito morreu. O assunto não é abordado diretamente, mas os diálogos deixam a coisa no ar. Já agora, podemos refletir sobre a quantidade de desenhos animados que não têm pai? Porque raio é que isto é uma tendência narrativa? Bem, seja como for o Pedrito está sempre metido em sarilhos mas até é bom miúdo. Bem, melhor do que o Ruca.
Segue-se “Rainbow Ruby” e eu penso na santa ironia que é os criadores terem conseguido criar todo um episódio à volta de noodles. Era tudo sobre o que uma pessoa que não consome hidratos há duas semanas gostaria de ouvir falar. Há também ali um claro distúrbio de distanciamento da realidade (ela está sempre a fugir para o quarto para ir para a Vila do Arco-Íris) e uso excessivo de eyeliner. Mas é querida, vá.
São 11h30 e eu não aguento mais. Nada contra o canal que, verdade seja dita, tem uma programação muito variada, anúncios curtos e poucos momentos musicais — a esta altura do dia só estou verdadeiramente irritada com o “Parabéns a Você”. De resto, tudo ok. Não, a culpa não é do Panda que sim, até parece ser fixe. A culpa é minha e das minhas ideias mirabolantes. Tenho saudades das minhas séries, da minha redação e da liberdade de mudar de canal.
Não posso deixar a casa como está. Convenço-me de que é perfeitamente aceitável sair do sofá e, com o som da televisão mais alto do que devia, retomo as arrumações. Estou no quarto quando ouço a Peppa perguntar à mãe qual é a profissão dela. Ela responde-lhe que trabalha no computador. Fico preocupada. Como assim, mãe da Peppa? Parece-me uma resposta demasiado abstrata. O que é que estás a esconder?
Como é que fica um adulto depois de oito horas a ver o canal Panda
São 16h28 e toca pela 345.ª vez a música do aniversário. Tenho o cérebro feito em papa, uma lágrima a formar-se no olho direito e a certeza de que vou enlouquecer se voltar a ouvir a música do “Parabéns a Você”. Também dispenso a música “Índios e Cowboys” do Panda e os Caricas. A sério, sai. Sai da minha cabeça.
Como é que fica um adulto depois de oito horas a ver o canal Panda? Fica mal. Perturbado. Com mazelas para a vida. Também passa a apreciar as pequenas coisas, como por exemplo lavar a loiça ou receber a chamada de um médico para falar sobre os efeitos da exposição solar no corpo na sequência da vaga de calor — foi bom poder conversar com um adulto durante nove minutos. Obrigada.
Fora brincadeiras, os pais podem sentir-se seguros. O Ruca pode ser um bocado egoísta e a profissão da mãe da Peppa duvidosa, mas isso são pormenores que só os adultos vão entender. A verdade é que as histórias são diversificadas, educacionais e misturam todos os elementos que os miúdos adoram — desde as músicas que ficam na cabeça (demasiado, continuo a ouvir a frase “Vou para a América do Norte” da canção “Índios e Cowboys”) até às aventuras loucas. Tudo isto com uma lição moral no final.
Podemos ficar todos descansados: o Panda é fixe. Só não para um adulto. Ou pelo menos não durante oito horas. A todos os pais deste mundo fora, desejo-vos força, paciência e equilíbrio emocional quando forem forçados a assistir a desenhos animados durante tempo indeterminado. Aos meus pais, as minhas mais sinceras desculpas por todos os momentos em que vos obriguei a ver o “Dragon Ball”. Hoje percebo aquilo por que vos fiz passar. Com exceção de alguns filmes da Disney e da Pixar, os desenhos animados foram feitos para os miúdos. Só.
Deixem os pais em paz.