Aos 46 anos, Pedro Alves tem, em "Festa é Festa", uma dupla estreia: é a sua primeira novela e também o seu primeiro protagonista num projeto de ficção de televisiva. O humorista e ator, natural de Gaia, teve carta branca para usar o sotaque na personagem central da vida agitada da aldeia da Bela Vista, o "trapalhão" Albino Jesus, ou melhor, Bino.

Com uma carreira de duas décadas no humor (partilhadas com o companheiro de sempre, João Paulo Rodrigues), Pedro Alves descreve o debute na ficção televisiva como entrar "num TGV a grande velocidade". O que é certo é que o risco está a compensar, a avaliar pela vitória de "Festa é Festa" nas audiências (coisa que há muito fugia à TVI).

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2021 não marca apenas a estreia do humorista nas novelas. Pedro Alves confirma que a dupla Quim Roscas e Zeca Estacionâncio (que ficou conhecida primeiro na rádio Nova Era, passando depois para a "Praça da Alegria" e, por fim, em formato próprio, o "Telerural") vai mesmo voltar: primeiro, o segundo filme, a sequela de "7 Pecados Rurais", que começa a ser rodada já em agosto. Depois, o regresso da fictícia aldeia de Curral de Moinas à televisão.

Quim Roscas (João Paulo Rodrigues) e Zeca Estacionâncio (Pedro Alves)
Quim Roscas (João Paulo Rodrigues) e Zeca Estacionâncio (Pedro Alves) créditos: DR

A novela “Festa é Festa” venceu na primeira semana, algo que não acontecia na TVI há algum tempo. Isso coloca pressão acrescida sobre si ou é-lhe igual ao litro?
Deixa-me contente. Não é uma questão de colocar pressão ou de me ser indiferente. Quando entro em algum projeto é porque acredito nele e quero que saia vitorioso. É muito bom sentir que esses resultados estão a acontecer. A nível de pressão é exatamente a mesma coisa e encaro as coisas da mesma forma que fiz até hoje, que é fazer o melhor possível.

Estamos numa fase em que não é tão fácil andar na rua e ouvir as reações das pessoas. Mas, do que tem visto nas redes sociais, quais têm sido as reações à sua personagem? Tenho visto no Twitter muita gente a replicar as frases do Bino.
É exatamente isso. As pessoas estão a conhecer a personagem… é uma personagem (risos)! Quando, sem ser em ficção, queremos rotular alguém, por ser caricato e diferente, dizemos que é um personagem. O Bino é mesmo uma personagem. Toda a gente já contactou com alguém da génese do Bino, seja presidente da junta, do sindicato, do clube de futebol. Acho que é consensual.

Festa é Festa - primeiro episódio
créditos: TVI

O Bino consegue provocar isso nas pessoas porque já toda a gente se cruzou com pessoas caricatas como ele. O percurso da personagem está muito bem esgalhado e está a dar-me um gozo enorme. É um desafio porque há ali muitas partes da personagem que são minhas. Há coisas que tenho de fazer de uma maneira muito natural porque, caso contrário, foge para o boneco num instante e é perigoso. Ali, não queremos nada disso. Queremos que as personagens sejam humanizadas. O Bino consegue essa consensualidade porque olham para ele e pensar "olha-me este artista!", mas acabam por sentir um certo afeto por ele. Ele é fofinho.

O Bino não é um vilão, porque é um bocado "burro" em certas coisas, mas também não é bonzinho. Depois tem aquele lado de totó com a secretária (Betinha, interpretada por Ana Marta Contente), que não sabe se avança, se pára…
Tem uma secretária que se manda para cima dele todos os dias. Depois tem uma mulher em casa [Florinda, interpretada por Ana Brito e Cunha] que não lhe liga nenhuma. Ele está sempre num combate mental muito grande. Por isso é que acaba por ser aquele trapalhão.

festa é festa
créditos: Instagram

O Pedro já tinha dito que lhe tinham dado a liberdade de usar o seu sotaque. O mais engraçado é que, nesta novela, há personagens com sotaques completamente diferentes e isso parece não ser muito relevante para a história.
A grande cena desta novela são as situações caricatas, a banda sonora é diferente, é popular, o que por si só puxa pelas situações. O que nós queremos — e todo o elenco tem plena consciência disso — é que ninguém fuja para o boneco, o que acabaria por desvirtuar tudo o que está a acontecer.  Inclusive isso [o sotaque]. Aquilo que não parece relevante acaba por ser algo que faz parte da construção da novela. Foi no trabalho dos ensaios, que foi muito bem feito por parte da direção de atores, do Joaquim Nicolau, que nos quis sempre tabelar nisso. ‘Vocês não podem fugir para o boneco mas, ao mesmo tempo, têm de criar elãs que façam com que tenham uma característica’.

A característica do Bino é exatamente a que falámos no início. É um trapalhão, uma personagem, e isto do sotaque e certas coisas que aparecem, na maneira de falar, nos termos que ele usa, acaba por ser uma coisa que não marca diferença, mas está lá. Acho que esse está a ser um dos grandes segredos dos resultados que estão a aparecer. As pessoas acabam por se identificar com o que está a acontecer. Porque não veem bonecos. É uma novela fresca, leve, o que faz com que o resultado seja um bocadinho diferente daquilo que o pessoal estava habituado a ver. 

"O Jota, a primeira coisa que faz é ligar a chamar-me ‘Ó Bino!’"

Ser protagonista de uma novela aos 46 anos deve ser um bocadinho diferente de o ser aos 20. Quando recebeu o convite, ponderou o impacto que ia ter na sua carreira, na sua vida pessoal?
Não. Pensei no desafio. A idade, seja qual for, é uma idade para ser desafiado. O briefing da novela foi-me muito bem passado pela minha agente. A Diana disse-me "é uma personagem que é a tua cara". Ela sabia que, se fosse algo com que eu não me identificasse, nem me chateava. Chateou-me e a coisa foi muito rápida. Encarei logo bem o desafio por ser uma novela, algo que eu disse que nunca iria fazer porque as novelas normais, com drama, não passam pelos meus projetos futuros, a não ser que seja algo diferente, como aconteceu com esta.

Eu gostei do desafio, a altura em que aconteceu foi boa porque, por incrível que pareça, ando ressacado de fazer cenas que me desafiem. Não estar na estrada com o João Paulo [Rodrigues] há um ano provoca carências. Provoca uma estagnação mental. Então esta novela animou-me a todos esses níveis. Convém dizer isto: eu não conhecia ninguém. Do elenco, conhecia a Ana Guiomar porque já tinha feito com ela um projeto ["Desliga a Televisão", RTP1], conhecia o Joaquim Nicolau, mas não era destas vidas.

O resto da equipa, aquela malta das novelas, o pessoal técnico, eu não conhecia ninguém. Eu aterrei ali de paraquedas. O pessoal do meu grupo de amigos às vezes pergunta-me "então, como é a cena da novela, encaixaste-te bem?" e eu dou-lhes a melhor definição que tenho para o que me aconteceu. "Imagina que está a passar o TGV a grande velocidade, eu estava na estação e atirei-me lá para dentro". Foi isto que me aconteceu. Nas duas primeiras semanas andei à procura da minha cabeça, andei à procura de onde me segurar, do sítio onde me sentar mas, depois de formatar muito a minha cabeça, consegui encarreirar e agora estou a curtir imenso.

"Um dia vamos acabar juntos, a fazer comédia no mesmo canal"

Normalmente perguntamos o que é que a família achou do primeiro episódio, mas a si tenho de lhe perguntar o que é que o João Paulo [Rodrigues] achou.
O Jota, a primeira coisa que faz é ligar a chamar-me ‘Ó Bino!’. É isto que me acontece agora (risos). Eu vim para o Porto hoje [quinta-feira, 29 de abril] porque temos uma livestream com a nossa banda e já sei que o mote da noite vai ser o ataque ao Bino. Mas quando ele fez a primeira novela dei-lhe o mesmo gozo e ela agora vai fazer o mesmo. Mas isto é salutar entre nós porque há uma coisa importante: os projetos individuais refletem-se sempre na dupla e na quantidade de pessoas que temos a ver as nossas coisas. É sempre bom, estas picardias entre os dois e, um dia, quiçá, acabaremos por nos juntar num canal e fazer um programa. 

Já fizeram…
Mas veja lá ao tempo que já foi isso. Projetos juntos, no mesmo canal, não temos há 12 anos [desde o “Telerural”, RTP1]. Isto é sempre bom porque dá visibilidade ao trabalho que nós temos mas, um dia, vamos acabar juntos, a fazer comédia no mesmo canal. E vai ser brutal porque gostamos imenso de trabalhar juntos.

Quando esteve no Maluco Beleza, há seis meses, disse que o Curral de Moinas ia voltar à televisão, além da sequela do "7 Pecados Rurais".
Posso dizer que vamos arrancar com as filmagens em agosto, para estrear no Natal. 

E o Curral de Moinas na televisão?
Já está tratado, estamos à espera para nos juntarmos no mesmo canal (risos). 

Na SIC duvido que seja, portanto ou o João Paulo volta à TVI ou o Pedro volta à RTP.
É isto que lhe posso dizer. O pessoal pode contar com isso. Um dia destes, a série "Telerural", adaptada aos dias de hoje, vai acontecer. A génese é mesma. Já está comprado, falta acabarmos os projetos deste ano. Tenho a novela para acabar até agosto, logo a seguir arrancamos com o filme. Estávamos para celebrar os nossos 20 anos de carreira. Em 2020 aconteceu esta porra toda. Adiámos dois anos. Em 2022, vamos celebrar o que chamamos os 20 anos mais IVA de carreira.

Vão ser espetáculos em salas grandes cá em Portugal e não só. Vai ser um ano em cheio e vamos fazer um forcing enorme para, a nível de agenda e vidas pessoais e profissionais, isso aconteça. Temos uma vontade enorme de fazer porque aquilo é uma coisa que a gente gosta. 

O "Telerural" é um fenómeno único no humor televisivo, mas também um pouco incompreendido, no sentido em que aquelas pessoas existem mas quem não conhece aquele contexto acha que aquilo é brejeiro ou não entende. Acha que o Quim Roscas e o Zeca Estacionâncio são personagens de culto?
Tenho essa perceção. Ao fim destes 12 anos há pessoal que vem ter comigo e falam-me de trechos, sketches, palavra por palavra, do "Telerural", dos quais eu nem sequer me lembro de ter gravado. “O Telerural” acaba por ser intemporal. Curral de Moinas é uma aldeia que não existe, com personagens que não existem, mas com situações que existem em todo o lado. Tem a ver com o que dissemos sobre o Bino. A coisa acaba por ser a mesma. As pessoas identificam-se com algo que aconteceu ali. 

Pedro Alves e João Paulo Rodrigues
Pedro Alves e João Paulo Rodrigues

Existe, na história recente do humor português, uma tendência a dar palco televisivo a projetos mais intelectuais. Vocês sentem que, de alguma forma, que o "Telerural" foi olhado como tendo menos qualidade por causa desse lado mais popular?
Não, não vejo as coisas por aí. Há público para toda a gente, independentemente da plataforma. A única diferença é que somos 11 milhões de habitantes. Um nicho de mercado para nós é uma coisa muito pequena. Se fosse nos Estados Unidos, o nosso nicho de mercado era uma coisa de milhões. O problema aqui é sermos menos pessoas. Mas temos os nichos. Então há um nicho que adora o "Telerural". Mas, sem ser da faixa etária mais nova e de grupos sociais mais baixos, há malta de grupos sociais mais altos que também nos adora, que consegue ver outro tipo de humor nas entrelinhas do que nós fazemos. 

"Não falamos de futebol, política e religião. Eu e o Jota concordámos desde o início que são temas que não iam fazer parte das nossas linhas de humor"

Com o escrutínio que existe atualmente, alavancado pelas redes sociais, e também com a questão do que é ou não politicamente correto, acha que isso acaba por condicionar quem faz humor? Há medo de ser saneado?
Respondo-lhe a isso muito rapidamente, e baseia-se numa regra que para mim e para o Jota sempre foi muito importante: nós não falamos de futebol, política e religião. Eu e o Jota concordámos desde o início que são temas que não iam fazer parte das nossas linhas de humor. E nunca gozámos com ninguém. Brincamos com as situações. Estes são os parâmetros com que nos regemos e conseguimos ter público dos 8 aos 80.

Ouvem palavrões, ouvem tudo o que dizemos e não ficam escandalizados, nem levam a mal. Tem tudo que ver com o contexto, com a forma como levamos as pessoas a chegarem lá. Isto faz com que, ao fim destes anos todos, sejamos acarinhados pelo público. Muitas vezes fico mesmerizado, "como é que é possível, com a quantidade de estupidezes que às vezes dizemos, haver um público dos 8 aos 80 que goste de nós". A cena é por aí.