“Eu não vejo novelas. Aquilo é sempre a mesma coisa, a história dos irmãos que não sabem que são irmãos e se apaixonam, é o namoro impossível entre a rica e o pobre, é o trio amoroso com dois homens a lutar por uma mulher”.
Quantas vezes é que já ouvimos alguém a dizer coisas deste género? Muitas. Mas como é que se argumenta contra isto? É difícil. Na essência, tudo isto é verdade. As novelas assentam em fórmulas quase históricas, mas se elas existem, e se são repetidas, não é porque os argumentistas estejam a viver uma crise criativa há 30 anos, elas existem e são repetidas porque funcionam. Agora, a forma como se contam estas histórias é que pode ser muito diferente de novela para novela. E a prova de que é possível pegar numa fórmula batida e torná-la num excelente produto é “Terra Brava”, pelo menos a julgar pela estreia.
O primeiro episódio da nova novela da SIC, emitido esta segunda-feira, 28 de outubro, é dos melhores produtos de ficção feitos em Portugal nos últimos anos, dentro do segmento telenovelas. A história está construída de forma sólida e envolvente, os diálogos são bons, as personagens fortes e carismáticas, os núcleos cómico e dramáticos são evidentes, e até a sempre difícil dança entre o passado e o presente aparece de forma intuitiva e natural, sem que seja preciso recorrer a truques visuais (preto e branco, imagem sépia ou câmaras lentas). Mais: a estreia de “Terra Brava”, seguramente das mais caras da história da televisão portuguesa, teve cenas que podiam figurar em boas séries de televisão, com momentos de conflitos armados, acidentes espetaculares, planos aéreos bonitos. Mas claro que não houve só coisas boas, há defeitos, problemas e até situações evitáveis, mas já lá vamos.
Coisas mesmo boas
A ruralidade
A ruralidade e a portugalidade profunda aproximam os portugueses das histórias, porque os levam a memórias vividas em casa de avós, tios, pais, primos, tempos de infância, tempos de juventude, recordações boas. “Terra Brava” tem tudo isso. Há a vila onde a igreja se confronta com a casa das meninas (“Tieta”, lembram-se?), há o café da aldeia, há as casas rurais, os animais, tudo isso remete para um universo distante mas confortável para muitos portugueses. Desde “Bem-Vindos a Beirais”, que esteve no ar durante cinco anos na RTP, que o pano de fundo da ruralidade não era bem aproveitada. Espera-se que “Terra Brava” siga por aí.
A história
Toda a história está muito bem contada no episódio de estreia. A ação começa em 1989, na zona do Alqueva, onde uma mulher, Eduarda, discute com o amante, Vicente, porque ele não quer que ela tenha o filho que carrega na barriga. Isto, num ambiente rural, de fazenda, no meio de estábulos e couves. Perante a decisão irredutível de Vicente, que é casado, e tem dois filhos (Rodrigo e Tiago), Eduarda decide contratar dois irmãos, Jorge e Anselmo Ferraz, para eles raptarem o filho de Vicente e lhe exigirem um resgate de 100 mil contos. O rapto corre mal, Vicente é morto a tiro em frente ao filho e Rodrigo levado para a Alemanha, para ser vendido. Acaba por fugir dos raptores e torna-se num delinquente. Dois ou três anos mais tarde é preso pela polícia alemã e a sua identidade é comunicada às autoridades portuguesas. Rodrigo é identificado como a criança que desaparecera uns anos antes no Alentejo.
Só que a realidade portuguesa é muito diferente daquela que Rodrigo viveu em criança. O pai morrera, a mãe também, de doença, as terras da família foram tomadas por Eduarda, e o irmão mais novo, Tiago, foi dado para adoção. Quem acaba por ficar com Rodrigo é Carlos Moreira, o inspetor da PJ que investigara o seu desaparecimento. É ele quem recomenda que Rodrigo mude de nome, e passa então a chamar-se Diogo.
A ação pula então para os dias de hoje, em que Diogo (João Catarré) é comando, está numa missão na República Centro Africana. É lá que recebe um mail de um amigo do pai adotivo a dizer-lhe que um dos suspeitos do seu rapto foi detido. Entretanto, Diogo é ferido e volta para Portugal. A primeira coisa que faz é tentar confrontar o raptor, que culpa pela morte do seu pai e a destruição da sua vida. Vai aos calabouços da PJ e confronta-o. É então que ele lhe diz que quem mandou matar o pai e raptá-lo foi Eduarda Ferreira (Maria João Luís), agora a poderosa dona da Terra Brava, que já foi da família de Diogo, e que até chegou a ser ministra da Agricultura.
Passa a ser ela o alvo da vingança de Diogo, que decide ir à procura dela, no Alentejo. A viagem de mota de Diogo é interrompida quando o carro que segue à sua frente tem um acidente e cai de uma ponte. Diogo atira-se ao rio para tentar salvar o condutor. E consegue. Salva uma mulher, Beatriz Ferreira (Mariana Monteiro) e o filho dela, Tomás. O que não sabe então é que Beatriz era a sua amiga de infância na Terra Brava, e que Tomás é filho do seu irmão, Tiago.
Aquando do acidente, Beatriz estava a fugir de uma relação ciumenta e possessiva com Tiago, que estava a chegar ao fim. E este momento vai marcar aquilo que já se percebeu que é o início de um triângulo amoroso que envolve dois irmãos que não sabem que o são e uma mulher.
Lá está, a fórmula novelesca está aqui toda, os ingredientes do sucesso estão cá todos. Há triângulo, há vingança, há irmãos que não se conhecem. Mas a forma como a história está montada é cativante, interessante e deixa qualquer um com vontade de a seguir. Falta ver se o ritmo e a qualidade se mantêm por mais 199 episódios. Esse é sempre o desafio.
Cena do acidente
A cena em que o carro de Beatriz embate num camião em cima de uma ponte, derruba a proteção e cai à água não só está muito bem filmada, como demonstra o nível de investimento na produção desta novela. Ao contrário, por exemplo, da cena marcante da estreia da novela “Prisioneira”, da TVI — uma explosão num aeroporto —, muito fraca, anedótica mesmo, esta, a cena que marca o efeito espetacular da estreia, está muito bem conseguida.
Atores
A qualidade das interpretações desta “Terra Brava” também está num nível muito elevado. João Catarré, Mariana Monteiro, Maria João Luís, Luciana Abreu, Fernando Luís e a fantástica Noémia Costa tiveram todos um episódio de estreia de grande nível, sem oscilações de qualidade, muito ajudados também por diálogos bem construídos e coerentes. A única nota negativa é a mesma de sempre, que são os “extra”, ou atores menores, com papeis muito pequenos, e que atiram sempre a credibilidade das cenas para a lama com interpretações fracas e que contrastam de forma evidente com os atores mais seniores e profissionais. Mas é um problema recorrente, não é um problema desta novela. Um problema idêntico é o que se vive com os atores menores, que continuam a ser um drama para quem escreve e produz novelas, exatamente pela mesma razão. É investir mais na formação de jovens atores.
Núcleo cómico
Bastou um acorde, um efeito sonoro, para se perceber onde estava o núcleo cómico da novela: na trama que envolve Tina Macedo (Luciana Abreu), Diana Esteves (Catarina Gouveia) e Prazeres Pinto (Noémia Costa). É aqui, entre uma beata e duas meninas de cabaret que vão estar as cenas mais divertidas e ousadas da novela. A cena da dança das meninas no cabaret funcionou muito bem, teve humor, sensualidade e é aquilo que deve ser feito para captar a atenção de um público que vê novelas (ao contrário, por exemplo, da cena anedótica do strip no segundo episódio de “Nazaré”).
O que não correu bem
Não há falhas graves na estreia de “Terra Brava”, há detalhes que podiam ter corrido melhor, menos coerentes ou pouco credíveis. Nada que mate as cenas ou a realidade da história, mas que podiam ter sido melhor trabalhadas ou contornadas.
Fronteiras em 1989
Uma delas é a cena em que Rodrigo é raptado, em 1989, e levado na traseira de uma carrinha para a Alemanha. Ora, em 1989 as fronteiras não eram abertas. E para chegar à Alemanha, os raptores teriam de passar as fronteiras de Espanha, França e Alemanha, com uma criança escondida e sem documentos. Não é muito credível que o tivessem conseguido.
Gajo interrogado na PJ
A cena em que Diogo (Catarré) vais aos calabouços da PJ confrontar o suspeito da morte do seu pai também é pouco credível. Embora o seu pai adotivo seja um ex-PJ, não é muito credível que deixassem um civil entrar numa sala de interrogatório e quase espancar um suspeito para lhe sacar uma informação. Nada de grave, mas pronto, podia ter-se procurado uma solução mais verosímil.
Música
É talvez o ponto menos forte da estreia. A música, a transbordar portugalidade, acaba por ter um peso grande nesta estreia, mas talvez com uma presença demasiado forte. Muitas cenas musicadas, muitos planos aéreos, alguns temas mais aborrecidos, mas a vantagem é que estas cenas também eram curtas.