Há já muito tempo que planeava fazer uma viagem até ao Irão. Os relatos que ouvira daquele país fizeram-me desejá-lo muito antes de me aprofundar na sua História e numa cultura, que tem tanto de distante quanto de apaixonante. Fui convidada pelas magníficas histórias do povo iraniano, que relatavam uma bondade sem igual e uma simpatia que não nos cabe nas  medidas.  

Porém, a viagem à antiga Pérsia quase se viu relegada devido aos protestos que recentemente emergiram no país. Estávamos no mês de Setembro quando Mahsa Amini, uma jovem curda de 21 anos, foi espancada até à morte pela polícia da moralidade, pelo incorreto uso  do véu islâmico. Como resposta, o povo saiu às ruas em protestos, pedindo a dissolução do  regime. Sobre o mote “Mulher, Vida, Liberdade”, as ruas iranianas têm-se enchido de homens e  mulheres que procuram, acima de tudo, o inquestionável direito à liberdade. 

Recebi estas notícias com um sentimento agridoce – se por um lado estava contente pela miragem de uma possível revolução pró-democrática, num país que tem vindo a sofrer décadas de tirania, por outro não podia deixar de esconder o medo e o receio que uma viagem neste contexto implicava. Os relatos de turistas presos, que serviriam de moeda de troca com os países ocidentais, fizeram-me ponderar e quase desistir. Consciente do risco que corria, tomei a difícil decisão de partir. Não com audácia, mas sim com temor. 

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O avião com destino a Teerão saiu de Istambul pejado de passageiros – seriam turistas? Locais? Observei atentamente o comportamento das mulheres, na tentativa de perceber quando é que deveria vestir o véu islâmico – afinal, a partir de que momento é que a sharia se impõe? A grande maioria não cobriu a cabeça durante todo o voo, o que me levou a pensar que, tal como eu, se tratavam de estrangeiras, quiçá turistas. Assim que o avião aterrou, cada uma foi  embrulhando a cabeça no lenço, enquanto nos preparávamos para sair. Estávamos a chegar à zona dos passaportes quando percebi estar totalmente enganada – na fila dos “foreigners” podiam contar-se menos de dez gatos pingados, sendo eu a única mulher. Os restantes passageiros, e todas aquelas mulheres, acumulavam-se na fila de “iranians”. Este foi, claramente,  o primeiro sinal de que o véu islâmico no Irão representa muito mais uma imposição alinhada com o regime teocrático ao invés de um traço cultural que orgulha o seu povo. 

Os dias que se seguiram foram passados a viajar pelo pela antiga Pérsia – de Teerão seguimos para a religiosa cidade de Qom, e de seguida para a tradicional cidade de Kashan.

Perdemo-nos de amores pela praça Naqsh-e Jahan em Isfahan e ficámos deslumbrados pelas cores da mesquita cor-de-rosa em Shiraz. As mesquitas, os holy shrines, as casas tradicionais, os  jardins – tudo neste país é de uma dimensão grandiosa e até majestosa. É difícil para a lente  ocidental, habituada aos traços barrocos e renascentistas, não se fascinar com a exaltação dos  detalhes da arquitetura persa. 

“Pensamos que sabemos o que é a hospitalidade até chegarmos ao Irão”

Apesar da beleza incontestável, fazer uma viagem na circunstância especial que o país  atravessa foi um verdadeiro desafio. As dificuldades, que por si só já existiam, foram amplificadas  por uma crescente de manifestações que ebuliam a promessa de uma revolução. Devido às sanções impostas pelos países ocidentais, não é possível utilizar cartões bancários, pelo que todo o dinheiro que entra proveniente do turismo tem de ser trazido em cash.

Num país onde a taxa de inflação ascende aos 60% e onde o valor da moeda tem vindo a cair a pique ao longo dos  últimos anos, conseguir cambiar grandes quantidades de dinheiro pode ser um autêntico repto.  Coisas simples como reservar um hotel ou comprar um bilhete de autocarro são dificultadas pela  falta de acesso às plataformas digitais e pelas barreiras linguísticas habituais. O acesso à internet foi outro pesadelo. Uma vez que as redes sociais são censuradas pelo regime, é praticamente obrigatório utilizar uma Rede Privada Virtual (VPN) para alterar a localização do telemóvel. A  maioria dos hotéis não tinha Wi-fi porque não tinha hóspedes. Devido aos protestos, o acesso à internet tem sido limitado pelo Estado, em especial à noite pelo que, o acesso ao mundo exterior  estava altamente condicionado.  

Mas, por entre todas as dificuldades logísticas com que nos deparámos, (e porque há sempre um mas), fomos completamente arrebatados por uma gentileza e bondade difíceis de igualar noutras coordenadas. “Pensamos que sabemos o que é a hospitalidade até chegarmos ao Irão”, disse-me uma holandesa que conheci, por entre os ínfimos turistas com quem nos  cruzámos no país.  

Estávamos em Shiraz quando conhecemos o Massoud e a Mary, um casal iraniano com  quem visitámos às ruínas da cidade de Persépolis, antiga capital do império Aquemênida. Após explorar o massivo complexo, fomos convidados para um piquenique. Era sexta-feira, dia sagrado no Islão e considerado dia de descanso. Quando demos por nós estávamos num descampado com o Massoud, a Mary e os seus três filhos, a grelhar umas espetadas de frango e açafrão por entre as trapalhices do Abtin, de apenas 2 anos. Sem questionar, e praticamente sem planear, entregámo-nos à deliciosa experiência de conhecer uma cultura pelas palavras de quem a vive. Por entre as muitas conversas que tivemos, sobre aquilo que é diferente e aquilo que é igual, emergiu em nós a eterna sensação de que, por muito distantes que as nossas culturas estejam,  somos todos seres humanos que procuram, acima de tudo, paz, tranquilidade, segurança e amor. 

A Mesquita cor-de-rosa, em Shiraz, é um dos lugares mais emblemáticos do país
A Mesquita cor-de-rosa, em Shiraz, é um dos lugares mais emblemáticos do país A Mesquita cor-de-rosa, em Shiraz, é um dos lugares mais emblemáticos do país créditos: Patrícia Carvalho / Girl From Nowhere

Estávamos a poucos quilómetros da cidade de Marvdasht onde, no dia anterior, uma série de protestos levara ao abuso de poder e à consequente morte de alguns manifestantes por parte da polícia da moralidade. Se, por um lado, estávamos a viver um momento muito especial, repleto de paz e tranquilidade, por outro estávamos a parcos quilómetros de um ambiente de violência, no qual não nos queríamos envolver.  

Por muitas vezes senti medo e receio. Sempre que passávamos por forças policiais, sempre que saíamos fora da rota turística, sempre que estávamos em trânsito, a deslocar-nos entre cidades, sempre que sentia um olhar mais desconfiado. Mas no momento seguinte, o medo dava lugar a uma compaixão sem precedentes. Ora porque alguém se prestava para nos ajudar, ora porque alguém nos oferecia comida, ora porque nos brindavam com um sorriso.  

“Querem vir até minha casa?”, perguntou-nos o Ali, um iraniano que conhecemos na cidade de Yazd. Não ponderamos recusar a oferta e quando demos por nós estávamos sentados sob os sumptuosos tapetes persas, no seu lar, rodeados pela sua esposa, mãe e irmã. Por entre chá e bolinhos, o Ali partilhou conosco algumas das suas paixões, por entre futebol, livros, cultura e viagens. As iguarias à mesa estavam constantemente a ser renovadas pela mãe, que não falava inglês. Agradecíamos cada dádiva com um gesto ternurento, conscientes de que nenhum agradecimento fazia jus àquilo que estávamos a receber. Mais do que ajuda, comida ou um simples aceno, as pessoas davam-nos o seu tempo, e nós bem sabemos o valor que o tempo tem  nos dias de hoje. Estávamos a despedir-nos da família do Ali quando a sua mãe nos ofereceu um saco cheio de frutas, para a viagem noturna que iríamos fazer com destino a Teerão. Já dentro  do carro, quase a curvar o quarteirão, a mãe voltou novamente, desta vez a correr, com um saquinho de cristais de açúcar, para nós. Que mais dizer? Quando um obrigado não chega, faltam nos as palavras.  

"Rompemos o 'obrigada', de tantas vezes que o dissemos, mas trouxemos uma grande lição de Humanidade"

Há viagens mais arriscadas e destinos mais impactantes. E viajar no Irão durante esta  onda de protestos foi um autêntico desafio para uma mente portuguesa, tão acostumada à calma e tranquilidade do nosso País. Todos os dias dei por mim em constante desequilíbrio – a ir do 8 ao 80 numa questão de momentos, ora invadida pelo medo, ora a transbordar de gratidão. E foi desta constante incoerência que se fez esta viagem ao Irão – estávamos num dos países menos desejados do momento, mas tudo o que estávamos a receber era o completo contrário daquilo que nos imprimem os noticiários.  

A maioria das pessoas com quem conversámos tem perfeita consciência do regime em que está inserida. Ao contrário do que acontece noutros países como a Coreia do Norte, Rússia ou China, a propagada no Irão tem pouco alcance e apenas convence uma franja da população mais conservadora. Antes da Revolução Islâmica, em 1979, o povo vivia numa atmosfera com  maior liberdade, sem a opressão e imposição religiosa que agora se impõem. E a lembrança de um passado livre, onde se podia dizer o que se quisesse e ser quem se desejasse, tem sido a força motriz que tem alavancado os protestos dos últimos meses e que os levará, seguramente, à  revolução que tanto merecem.  

As pessoas que encontramos suplantaram largamente as dificuldades que o governo nos impôs. Mais do que a simpatia e a delicadeza que já esperávamos, surpreendeu-me a sua postura no momento particular que o país atravessa. O povo iraniano sentia-se triste e sem alento. E essa angústia refletia-se nas mesas vazias dos cafés, no semblante plácido que invadia as ruas, nos  restaurantes que fechavam antes da hora, no encolher de ombros sem esperança. Mas, ainda assim, e com todos os motivos para estarem desiludidos, com raiva e ódio, o povo iraniano escolhia o caminho da esperança. Continuavam a sorrir sempre que passavam por nós, continuavam a ajudar-nos sem esperar nada em troca, e continuavam a dar-nos o seu tempo, mesmo que isso em nada lhes acrescentasse. Rompemos o “obrigada”, de tantas vezes que o dissemos, mas trouxemos uma grande lição de Humanidade. 

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Viajar permite-nos desenvolver a capacidade de saber apreciar o mundo em todas as suas formas, até nas mais difíceis. E se as viagens são feitas de pessoas, no Irão esta declaração é largamente suplantada. É mais do que apenas conhecer pessoas. É viajar até às profundezas da essência humana, numa epopeia de abraços e gargalhadas, e entender que há algo maior que  nenhum governo consegue controlar, por mais opressivo, horrendo e desprezível que seja. É, forçosamente, perceber que por entre as mais variadas emoções e sentimentos que o ser humano é capaz de sentir, a generosidade e a compaixão são a melhor versão de nós mesmos. Por muito que se ergam barreiras e se limitem fronteiras, a verdadeira essência humana é algo  que nos une enquanto espécie, e não há cultura nem governo capazes de a superar. Porque um regime pode limitar a liberdade de um povo, pode desprovê-lo do seu direito a se manifestar e  exprimir, mas não pode nunca, jamais, balizar a sua capacidade de amar.  

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Viajar pelo Irão ensina-nos que o mundo não é um mapa a preto e branco, onde facilmente se traçam fronteiras entre o bem e o mal, entre aquilo que se deve e não fazer. De dia para dia, vimos o medo transformar-se em amor à frente dos nossos olhos – uma viagem que começou carregada de medo, num dos destinos mais receados do momento, acabou por ser  palco do mais belo hino ao amor. E fez-nos entender que, por muito que o despotismo e a prepotência sejam cruelmente disseminados, há uma guerra que nenhum governo pode ganhar - enquanto o Homem for capaz de amar, a batalha entre o poder e o amor não prevalecerá. 

Ninguém nos tira o poder de amar. 

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