"Uma pessoa pode ser feliz sendo gorda ou deprimida tendo um corpo saudável", diz à MAGG José Miguel Mulet, investigador espanhol e professor na área de química, biologia molecular e biotecnologia da Universidade Politécnica de Valência, que não acredita na máxima que diz que "somos o que comemos".
Autor de livros como "Comer sem Medo", tem uma visão diferente daquela a que estamos habituados a ver face a várias questões relacionadas com a alimentação e produção alimentar. Nós não somos aquilo que comemos, os alimentos geneticamente modificados não são perigosos para a saúde (são, antes, uma garantia de segurança alimentar) e, na realidade, nós nunca nos alimentámos tão bem como hoje — de outra forma, a esperança média de vida diminuiria e não aumentava, como tem estado a acontecer.
Os pesticidas também não são um problema real e são até bastante necessários. Problema sim, considera o especialista, são as teses que defendem curas via alimentação, excluindo tratamentos convencionais, de eficácia cientificamente comprovada. A tecnologia, considera, desempenha um papel primordial para que os alimentos sejam seguros e cheguem para todos, embora caiba a cada um fazer escolhas equilibradas — o que nem sempre acontece. É esse o paradoxo, considera.
Foi sobre estes temas que falámos com o investigador, que marca, pela primeira vez, presença em Portugal, para ser orador na segunda edição do Fórum Smart Farm, que, sob o tema “Mitos da Alimentação”, vai decorrer a 18 de junho na Fundação Calouste Gulbenkian.
Disse que estamos a alimentar-nos melhor agora face às gerações anteriores.
Com certeza. Agora temos acesso a uma variedade e diversidade de alimentos muito melhor e ao longo de todo o ano. Estes alimentos também são mais seguros, já que as intoxicações alimentares ou doenças relacionadas com alimentos se tornaram muito raras nos países desenvolvidos.
Mas antes não tínhamos tantos alimentos maus, como aqueles que vêm da indústria processada, que é enorme…
Sim, esse é o paradoxo: temos melhor comida, mas às vezes escolhemos a pior opção. E há um outro problema: obesidade e doenças relacionadas com a obesidade estão a aumentar, especialmente entre as crianças. O paradoxo é que, há 50 anos, era difícil obter frutas frescas no inverno ou pescar em áreas internas. Agora que resolvemos o problema da distribuição de alimentos, decidimos comer hambúrgueres ou cachorros quentes o ano todo. Agora temos comida boa e segura, mas falta a educação nutricional.
Falou sobre o facto de nunca termos tido tanta segurança alimentar. Isso é o mesmo do que dizer que estamos a comer melhor?
Estamos a comer melhor, no sentido em que já ninguém sofre de, por exemplo, escorbuto ou do problema da tiroide da pelagra, que vêm da falta de nutrientes essenciais na dieta. Intoxicações por botulismo ou doenças transmitidas por alimentos também são escassas. Portanto, sim, estamos a comer de maneira mais saudável e a melhor prova disso é a esperança média de vida estar a aumentar em quase todos os países. Com uma dieta má, não conseguíamos chegar a isto. O ponto é que ainda há muito espaço para melhorias, relacionadas com o combate à obesidade e doenças relacionadas. Ainda precisamos de melhorar a nossa dieta, embora em muitos aspetos seja muito melhor do que a dos nossos avós.
Em termos práticos, em que processos é que se materializa esta segurança alimentar? Pode pode dar alguns exemplos?
A segurança alimentar tem vários aspetos. Primeiro, relaciona-se com a disponibilidade de comida. Graças ao uso de tecnologia na agricultura, aumentámos a produção de alimentos à medida que a população cresce. Há, neste momento, mais pessoas a comerem do que em qualquer momento passado da história mundial.
Outro aspeto é se esse alimento é seguro. A resposta é sim, e não há debate sobre isso. Basta ver os relatórios da Agência Europeia de Segurança Alimentar, ou a FDA americana. As contaminações estão a desaparecer, embora de tempos a tempos haja alguma crise. Mas, se olharmos para o quadro geral, o panorama é mais do que aceitável, devido ao esforço dos diferentes participantes, dos agricultores, dos distribuidores e consumidores. Temos de considerar que o frigorífico é a invenção que salvou mais vidas. Pense em como era a conservação de alimentos antes de as pessoas poderem comprar este eletrodoméstico.
Diz que não estamos a comer pesticidas. Pode comentar?
Não é o que eu digo, é o que dizem os relatórios. As regulamentações sobre pesticidas na Europa são muito detalhadas e restritivas. Na verdade, os agricultores reclamam por falta de ferramentas essenciais para combater as pragas. Também os controles pelos quais os alimentos têm de passar antes de serem comercializados são exaustivos.
O ponto é que, nos alimentos convencionais ou orgânicos, as quantidades de pesticidas são insignificantes. Não há evidência de nenhum problema de saúde devido à exposição a vestígios de pesticidas na comida. Na verdade, houve um estudo de uma universidade dinamarquesa publicado em 2018, que dizia que a exposição a pesticidas de um consumidor europeu padrão, que come comida convencional, era semelhante a beber meia chávena de vinho a cada sete anos. Se os pesticidas nos alimentos nos estão a envenenar, então não estão a cumprir bem o trabalho deles, já que estamos a viver mais anos, geração após geração.
O uso de culturas transgénicas resistentes a pragas evitou o uso de milhões de toneladas de inseticidas"
Por é que diz que não somos o que comemos?
Porque essa é a verdade. A comida é o que somos, na medida em que a comida e gastronomia são expressões culturais, tais como a roupa, a música ou a arte. Cada cultura tem sua própria comida, e isso é uma consequência da sua economia, do seu ambiente ou da sua estrutura social, mas não o contrário.
A origem da frase é do filósofo alemão Feuerbach, mas ele referia-se ao facto de a comida ser a exigência primordial para sobrevivermos. Se uma pessoa não come, simplesmente morre e não é nada. Há também uma frase semelhante do gastrónomo francês Brillat-Savarin, mas ele estava apenas a referir-se à comida como expressão cultural. Não há misticismo ou influência psicológica da dieta — ela é apenas uma escolha e depende de nós. Não muda o humor ou personalidade.
Mas a nossa saúde é fortemente influenciada pelo que comemos. Por exemplo, se comemos muitas comidas processadas, ficamos gordos, cansados e provavelmente com problemas de saúde. Se comermos bem, provavelmente vamos sentir-nos melhores, com mais energia e mais felizes.
Sim, claro, mas uma pessoa pode ser feliz sendo gorda ou deprimida tendo um corpo saudável. É claro que comer muita comida não é aconselhável porque isso resultará num peso acima do normal, o que afeta a saúde, mas há mais fatores. É sedentário? A ciência mostrou que estar acima do peso ou fazer uma má dieta, mas ter uma vida ativa, incluindo a prática de desporto regularmente, é melhor face a um cenário de peso adequado, dieta equilibrada, mas com ausência de atividade física.
Os alimentos geneticamente modificados não são maus para a saúde?
Qual seria o ponto de comercialização de um transgénico que é mau para a saúde? É preciso ter em conta que a maioria dos medicamentos são transgénicos como, por exemplo, a insulina. Pergunte a um diabético se as injeções de insulina são más para sua saúde. Ele está a injetar um transgénico quatro vezes por dia e, graças a isso, pode ter uma vida normal. Há várias décadas não era assim: a insulina era muito cara e insegura, uma vez que era obtida a partir de pâncreas de porco.
Mas se falarmos de transgénicos utilizados na agricultura, é preciso sublinhar que eles precisam de passar por uma regulamentação muito rigorosa e provar que são absolutamente seguros para o meio ambiente e para a saúde, antes de irem para campo ou serem comercializados. Por exemplo, podemos ir a um supermercado e comprar amendoins, mas há pessoas que não o podem comer, pois é muito alergénico. Um dos controles pelo qual um alimento transgénico tem que passar garante que ele não é alergénico. A melhor prova de que os alimentos geneticamente modificados estão a funcionar é de que em 20 anos não tivemos nenhum problema de saúde ou ambiental.
Como e porque é que a tecnologia está a mudar a maneira como nos alimentamos?
Está a mudar tudo, todos os dias. Pense num supermercado há 50 anos ou 100 anos. Primeiro de tudo, não havia supermercados. Era possível comer kiwi ou manga em Portugal há 100 anos? Provavelmente não, porque a tecnologia na época não permitia um transporte adequado de conservação. Por que é que em Portugal se come tanto bacalhau, embora seja pescado na Noruega? Porque o sal permitiu uma conservação adequada, mas para outros peixes não havia essa possibilidade, até ao desenvolvimento do congelamento industrial. O desenvolvimento do leite em fórmula permitiu aumentar a sobrevivência das crianças, e há muito mais exemplos. Também o uso de tecnologia na agricultura, como os fertilizantes, permitiu aumentar a produção de alimentos e reduzir o preço dos mesmos, permitindo que mais pessoas comessem.
Também é importante por causa do ambiente?
Claro. Atualmente, a agricultura tem menos impacto ambiental do que tinha há um século. Por exemplo, produzir uma laranja ou um melão agora requer metade da água necessária, face há 20 anos. O problema é que a população está a aumentar e estamos a comer mais carne, e isso tem muito mais impacto do que comer legumes. O uso de culturas transgénicas resistentes a pragas evitou o uso de milhões de toneladas de inseticidas.
Quais são os maiores e mais perigosos mitos da alimentação no mundo de hoje?
Qualquer afirmação que diz que há uma dieta que cura o cancro é perigosa, assim para qualquer outra doença grave. Ou que nos podemos desintoxicar com sumos. São perigos reais, já que as pessoas estão a abandonar as terapias comprovadas e a morrer por causa desses mitos. O exemplo mais conhecido é o de Steve Jobs, mas há casos como esse todos os dias.
Como um tomate cereja tem mais tecnologia do que um iPhone5?
E mais do que um iPhone XS. Tomates selvagens vêm de uma planta que ainda vive em Los Andes [Chile]. Eles são muito pequenos... e tóxicos. Os tomates modernos são um produto de séculos de cruzamentos, procriação e seleção artificial de mutações e isso é tecnologia. A maioria dos tomates que encontramos num supermercado, como cereja, RAF ou kumato, são muito recentes e não existiam há 20 ou 30 anos.
Pode dar mais exemplos de alimentos que exigem muita tecnologia?
Tudo o que comemos vem de plantas e de animais domesticados, que não existiriam sem intervenção humana. Vá para a selva ou para uma floresta. Encontra milho ou trigo? Laranjas ou bananas? Frango, porcos ou vacas? Estes não são animais selvagens e não seriam como são sem tecnologia.