No início sentem-se super-heróis. Os músculos crescem, a gordura desaparece. Há energia e boa disposição constantes. São omnipotentes, invencíveis, mas conforme o tempo passa e a ingestão aumenta, os efeitos colaterais começam a aparecer. Vem a agressividade, a ansiedade, a depressão. Nos homens, o cabelo começa a cair, a glândula mamária pode nascer, os testículos diminuem e a produção de espermatozoides também. Nas mulheres, dá-se o inverso: a voz engrossa, os pelos podem nascer nas costas, no peito, no queixo. As mamas desaparecem e o clitóris ganha uma forma diferente. Nos dois casos, podem vir os tumores e as paragens cardíacas. O pior dos cenários não é assim tão improvável, e é a morte.
João (nome fictício), 28 anos, falou com a MAGG e confirmou alguns destes sintomas. Recorda um dia de 2010 em que saiu do carro e agrediu outro condutor, na Praça de Espanha, em Lisboa. “Ele puxou-me, eu agarrei-lhe na cabeça por baixo e bati com ela carro. Saiu um taxista e separou-nos e cada um foi a sua vida", conta. "Segui para o ginásio."
Hoje assume que esta explosão pode ter sido causada pelos esteroides anabolizantes que estava a consumir. “Sentimo-nos capazes de tudo, com muita força. Mas também ficamos mais violentos e mais agressivos.” A primeira vez que teve contacto com esta substância terá sido há dez anos. "Tinha um familiar que vendia esse tipo de coisas. Ele era PT.”
Os esteroides anabolizantes, compostos sintéticos derivados da testosterona, são uma espécie de elefante na sala. O seu consumo é recorrente entre os atletas de culturismo ou até mesmo entre os mais assíduos no ginásio, que procuram corpos altamente definidos, grandes e sem vestígios de gordura. Mas é como se nada fosse. “Tenho a certeza de que mais de 80% das pessoas que vemos com corpos altamente definidos nos ginásios, consomem”, diz João. “Só que ninguém admite.”
Chegar à forma desejada pode demorar. Nos primeiros três meses vemos os resultados, nos três seguintes também. Mas, a certa altura, é difícil evoluir. É aí que nos dão as alternativas: uma é mais lenta e exige mais esforço, outra é mais imediata e são os anabolizantes.”
João, pelo contrário, não tem problemas em assumir. A frieza com que fala nesta substância é a mesma com que se refere a outro tipo de estupefaciente, como a cocaína, o speed ou o MDMA. Nenhuma lhe é desconhecida. Adepto do exercício físico, sempre levou uma vida boémia e com alguns excessos, apesar de admitir que hoje o faz com muito mais moderação. “Os anabolizantes são uma droga igual às outras e viciam”, diz. Apesar do consumo recreativo, não deixa de ser objetivo. “Ponho tudo no mesmo saco. É tudo uma merda.”
A forma como teve contacto com esteroides anabolizantes poderá ser a via através da qual muitos outros entram neste mundo. Os profissionais dos ginásios, considera, são várias vezes porta de entrada: “Os PT são traficantes de droga”, diz. “Chegar à forma desejada pode demorar. Nos primeiros três meses vemos os resultados, nos três seguintes também. Mas, a certa altura, é difícil evoluir. É aí que nos dão as alternativas: uma é mais lenta e exige mais esforço, outra é mais imediata e são os anabolizantes.”
Apesar de não descartar a hipótese de voltar a utilizar esta substância, assume que há dez anos o seu consumo foi descontrolado. “Num ano devo ter feito oito ciclos, quando só se deve fazer um ou dois.” Era adolescente. Bebia muito, consumia outras drogas, fumava charros, saía à noite. Treinava, mas alimentava-se mal. Quem lhe vendia, não estava preocupado com a frequência com que ele consumia. “Poucas pessoas que vendem estão preocupadas com isso [quantidades ingeridas]. Quanto mais venderem, melhor para eles.”
Só acalmou porque perdeu o controlo. “Estava a passar a ponte 25 de abril e comecei a ficar confuso. Comecei a ficar ansioso, sem saber para onde é que estava a ir. Entrei num estado de ansiedade, em que pensava que estava a ter um ataque cardíaco. Fui à farmácia e estava tudo bem com a minha tensão”, conta. João tinha tido um ataque de pânico, o primeiro sintoma do problema de ansiedade que desenvolveu. “Depois disso, não conseguia fazer trajetos muito longos. A conversa deixava de fazer sentido e psicologicamente não fazia ideia do que estava a acontecer. Comecei a tomar ansióliticos.”
Foi preciso começar a trabalhar para, gradualmente, voltar ao seu estado normal. Quando hoje olha para trás, pensa que este episódio foi fruto de um cocktail de anabolizantes, com álcool, pouco descanso e stresse. “Depois disso já voltei a fazer ciclos, mas mais controlados, com protetores de estômago, fígado e tiroide”, conta.
"Qualquer dose num individuo saudável é excessiva"
João Gamelas, medico de Medicina Desportiva, explica que este tipo de substância só pode ser utilizada para fins terapêuticos, para tratar “anemias, défices de crescimento ou desequilíbrios hormonais”. A sua utilização para fins estéticos e de performance não pode sequer ser uma hipótese, em nenhuma circunstância, incluindo a aparentemente controlada e pontual que João não descarta. “São doses que são dezenas ou centenas de vezes superiores às utilizadas nos fins terapêuticos”, refere. “As doses terapêuticas são ajustadas à dimensão da doença. Qualquer dose num individuo saudável é excessiva.”
Administrados por via oral ou injetável, estes derivados sintéticos da testosterona têm uma acção fisiológica que se divide em duas linhas de acção: a androgénica, que mexe com a função reprodutora e com a manutenção das características sexuais masculinas, e a anabólica, que faz a estimulação do crescimento e maturação dos músculos e do tecido ósseo.
Os efeitos imediatos do seu consumo são agradáveis: “Produz um aumento da síntese proteína, o que provoca um volume da massa muscular. Aumenta a auto-estima, a boa disposição. Diminui a percentagem de gordura corporal, melhora os tempos de recuperação, o que significa que pode treinar mais assiduamente, potenciando resultados rápidos”, explica.
O problema é que “associados a esses efeitos positivos há o enorme e perigoso impacto dos efeitos secundários”, que, além do mais, são “cumulativos." A médio longo prazo tornam-se mais evidentes as patologias cardiovasculares, como o aumento da hipertensão e a diminuição da capacidade de funcionamento do coração”, que pode esta na origem de morte súbita, devido à hipertrofia do músculo do coração.
O fígado também é um dos órgãos mais afetados, daí muitos adeptos recorrerem aos tais protetores referidos por João. “Cria grande toxicidade”, diz. “Isto pode estar na origem do tumor do fígado ou da próstata.” As tromboses e embolias também entram na lista, porque o consumo dos esteroides anabolizantes também provocam alteração na coagulação sanguínea. “São complicações graves e potencialmente fatais.”
Apesar de se tratar de uma hormona sintética que imita a testosterona, em homens, há ainda a possibilidade do aparecimento da glândula mamária (ginecomastia). O volume testicular diminui, levando a uma diminuição dos espermatozoides, na origem de uma possível impotência e perda de apetite sexual. Por outro lado, nas mulheres as perturbações hormonais criam efeitos inversos: os pelos crescem, as mamas diminuem ao ponte de desaparecerem e a voz engrossa. “Pode ainda haver alterações na genitália: dá-se uma hipertrofia clitoriana, que leva à formação de um pequeno pénis.”
A lista não é pequena e continua com os efeitos psicológicos, alguns dos quais João sentiu. “Há ainda alterações de comportamento, como o aumento da agressividade e depressões profundas, que podem até levar ao suicídio.”
De acordo com João Gamelas o “mandrolona (deca-burabolim) e o stanevolol”, são os mais utilizados. Porém, afirma já haver “batidos proteicos com vestígios destas substâncias”, que, “em bom rigor e teoria, não deviam ter.” Somamos a isto, outros produtos que nascem em laboratórios suspeitos — “de vão de escada” —, produzidos por quem não sabe e que muitas vezes incluem outras substâncias. Estes, facilmente encontrados online, serão os mais perigosos para a saúde.
O problema é grave entre os atletas, mas João Gamelas não descarta a hipótese de a sua utilização se estender a outros setores, como o da segurança e até das instituições de forças de combate de defesa do País.
“Os efeitos secundários que estas drogas podem ter, no que se refere à irritabilidade e agressividade, são aspetos particularmente sensíveis para ocorrerem em forças de segurança ou armadas”, explica. Em entrevista à “Visão” Luís Horta, médico de Medicina Desportiva e coordenador do departamento de anti-dopagem do Benfica, desde fevereiro de 2018, considerou importante “estudar a fundo o que se passa em ambiente prisional e nas Forças Armadas e de segurança.”
E há ainda as prisões. O Serviço de Intervenção nos Comportamentos Aditivos e nas Dependências realizou, em 2014, um inquérito sobre o consumo de substancias ilícitas nas prisões e concluiu que havia uma transferência do consumo de substâncias tradicionais para os esteroides anabolizantes.
Portugal foi já indicado como um dos países exportadores de esteroides anabolizantes. Em 2016 a Unidade Nacional de Combate à Corrupção da Polícia Judiciária, em cooperação com a Guarda Civil Espanhola, começou a investigar o problema que em 2012 se tornou publico, depois de toneladas de terem sido encontrados em Espanha, vindos de Portugal.
No entanto, o assunto parece ficar maioritariamente entre as paredes das salas de treino. Um estudo realizado em 2011 pela associação europeia Health and Fitness, com o apoio da Comissão Europeia, revelou que 4,2% dos frequentadores de ginásio portugueses inquiridos para a investigação confessaram consumir substâncias dopantes, contra a média europeia de 2,7%, avançou o jornal "Público".
Luís Horta acredita que “estes números devem pecar por defeito”, disse à “Visão”, no ano anterior.