Está bem presente na nossa memória a noite em que num restaurante acabado de estrear — daqueles todos instagramáveis no qual nos foi servida uma bowl com noodles de curgete espiralizada, com atum fresco e molho de tomate picante — vimos, pela primeira vez, dois cães nas mesas em redor. Tinha sido aprovada há pouco tempo a lei que permitia a entrada de animais no interior de restaurantes e a presença dos mesmos naquele estabelecimento passou despercebida até que um deles urinou junto à mesa dos donos.
O que se sucedeu? Agitação do staff para resolver rapidamente a situação, o mesmo com os donos do animal em questão que tentavam ajudar e um olhar atónito dos clientes que estavam sentados, mais pela curiosidade do que outra coisa. Numa questão de segundos a situação foi esquecida, com consciência geral de que acontece. O que aconteceria n'O Velho Eurico? Não se sabe, porque na verdade nunca aconteceu. "Se acontecer, não sei. Sempre que aceitamos animais, é normal que possa acontecer alguma coisa", refere à MAGG José Paulo Rocha, proprietário do restaurante que abriu portas ao conceito moderno de cozinha portuguesa em 2018.
No início, O Velho Eurico ainda não aceitava animais no interior do restaurante, até porque o espaço antes da pandemia era bastante reduzido. Quando a pandemia obrigou a tirar mesas, ficaram reunidas as condições para receber animais, mas essa não foi a única razão para passar a recebê-los. "Há uns meses o meu cão morreu e depois pensei: 'Os cães são sempre bem-vindos", diz José Paulo Rocha.
Para introduzir a decisão de forma legal no estabelecimento, o proprietário teve de colocar a devida sinalização na porta d'O Velho Eurico, conforme estabelece a Lei n.º 15/2018. Contudo, a forma de informar se são ou não admitidos difere para o interior ou para a esplanada dos estabelecimentos, que desde 2015 já podiam receber animais, segundo o Regime Jurídico de Acesso às Atividades de Comércio, Serviços e Restauração.
"No caso das esplanadas, como a regra é a da admissibilidade, o proprietário ou a entidade titular da exploração que pretenda restringir a admissão dos animais no espaço deve afixar essa indicação, em local destacado, junto à entrada do estabelecimento. Relativamente ao interior do restaurante, a regra é a inversa: só os estabelecimentos sinalizados é que podem aceitar os animais de companhia. Tudo isto com exceção dos animais de assistência, que são sempre permitidos", explica Inês Coelho Simões, advogada na Nobre Guedes & Associados. Apesar de os animais serem permitidos há seis anos no exterior, a lei de 2018 "foi sem dúvida inovadora no panorama jurídico português", acrescenta a advogada.
Com esta, todos os clientes podem levar os seus animais de companhia, que "devem permanecer nos estabelecimentos com trela curta ou devidamente acondicionados, em função das características do animal", pode ler-se na norma.
Quanto a este ponto, poderá ser considerado vago quando diz que tudo depende das "características do animal". A questão que se coloca é como saber que características são essas. No fundo, o que é aceitável dentro da lei? "Existem diversos diplomas que regulamentam as condições em que os animais devem ser transportados e acondicionados. O que a lei prevê é que para que a permanência dos animais de companhia em espaços fechados seja permitida, os portadores têm, desde logo, que cumprir todas essas determinações legais", refere Inês Coelho Simões.
Não há, assim, restrições ao tipo de animal que pode estar dentro do estabelecimento, a regra é apenas o bom senso para quem se faz acompanhar pelos mesmos. "Falamos sempre com as pessoas de forma a terem atenção. O objetivo é estar com os animais, não é que eles andem a passear pelos restaurantes, senão também não conseguimos dar o serviço que queremos", refere José Paulo Rocha. Até porque a lei assinala mesmo que os animais "não podem circular livremente nos estabelecimentos, estando totalmente impedida a sua permanência nas zonas da área de serviço e junto aos locais onde estão expostos alimentos para venda".
Fine dining e animais de estimação
Ao contrário d'O Velho Eurico, um local mais descontraído (uma taberna mesmo), que às mesas serve produtos como sandes de chambão, arroz de pato e "fresquinhas" da MUSA, o restaurante Terroir é sítio para começar com um cocktail ao balcão e seguir para um robalo, com batata fumada e algas, harmonizado com vinho branco Meruge 2019, que faz parte do menu de degustação.
O projeto, que teve início em 2020, começou com um pequeno espaço, apenas um balcão, limitando logo à partida as condições para sequer se pensar em receber animais — tal como aconteceu com O Velho Eurico. Abrir sem sinalização para permitir animais de companhia não foi, por isso, "uma escolha ativa", refere Erik Ibrahim, proprietário do Terroir. A verdade é que de um restaurante de fine dining como este, também não se espera que estejam animais junto às mesas e a prova são os próprios clientes.
"Nunca houve esse pedido e nem sequer fomos questionados sobre a possibilidade", afirma o proprietário, que ainda assim não descarta a ideia. O espaço do Terroir até está maior — em agosto de 2021 foi inaugurada uma nova sala —, embora ainda não seja o ideal para receber animais de companhia, até porque o restaurante tem cozinha aberta e "acabaria sempre por afetar os restantes clientes devido às questões de higiene".
"Quem sabe, um dia, se nos expandirmos e/ou mudarmos de morada, até pode vir a ser uma possibilidade. Até concordamos com o conceito (eu próprio tenho animais de estimação), mas tem de ser algo que se enquadre bem com o local e onde os animais tenham espaço onde ficar tranquilos durante a refeição", explica Erik Ibrahim.
O responsável pelo Terroir não considera que o conceito pet-friendly esteja fora de questão para restaurantes com conceitos gastronómicos mais sofisticados, mas sim que tudo depende do enquadramento, devendo ser avaliadas questões como "se os donos conseguem desfrutar da sua experiência e refeição com o seu animal" ou se "o animal tem espaço e condições para permanecer durante aquelas duas ou mais horas com tranquilidade".
Da mesma opinião é José Paulo Rocha, proprietário d'O Velho Eurico, que reconhece que é preciso avaliar se há condições para prestar um bom serviço. "Termos um cão a ladrar no O Velho Eurico acho que não faz muita diferença porque é um ambiente taberneiro, mas num espaço com serviço mais de fine dining, se calhar acaba por prejudicar o ambiente".
E se fosse decretado que todos os restaurantes têm de admitir animais no interior? Legalmente seria possível? Segundo a advogada Inês Coelho Simões, isso não parece estar em causa, uma vez que "do ponto de vista dos Direitos dos animais, com o quadro legal existente, não é necessária essa imposição", refere a advogada. Além de que aí sim, "estaríamos perante um cenário de colisão de direitos".
Primeiro, os do "proprietário do restaurante, cujo negócio está a ser prejudicado, e do cliente, que pretende levar o seu animal para o estabelecimento. E podemos estar a falar de uma rã dentro de um aquário", remata a advogada.
Higiene e segurança alimentar: estão garantidos?
Foi em 2017 que o partido Pessoas Animais Natureza (PAN) avançou com o projeto-lei para alterar o decreto-lei sobre a entrada de animais de companhia em estabelecimentos comerciais. Em junho de 2018, a proposta acabou por ser aprovada, recebendo, no entanto, uma crítica da Associação de Hotelaria, Restauração e Similares de Portugal (AHRESP) que afirmou que "a responsabilidade que pode gerar para os proprietários de estabelecimentos, nomeadamente em termos de higiene e segurança alimentar", poderia levar a que muitos não aderissem à permissão de entrada de animais de companhia nos bares e restaurantes, de acordo com o "Jornal de Notícias".
Será que a presença dos animais coloca mesmo em causa a salubridade dos espaços? "Não é um fator de contaminação ou de alguma forma põe em causa a higiene do espaço, desde que as pessoas saibam respeitar o espaço do outro com o seu animal de companhia", afirma a líder do PAN, Inês Sousa Real, à MAGG.
Até porque "além de estar vedado o acesso ao animal à zona da confeção da alimentação, da mesma maneira que uma pessoa não pode entrar na zona de confeção da cozinha não pertencendo ao staff", frisa a deputada e líder do PAN. "O que temos verificado é que existe um cuidado em ter uma zona de repouso onde o animal possa estar".
Contudo, há quem continue sem se sentir confortável com a presença de animais nos restaurantes, mas neste caso aplica-se o livre-arbítrio. "Quem não quiser estar num restaurante que possa ter acesso a animais de companhia, simplesmente não vai. Faz parte daquilo que é a escolha em democracia", continua. No fundo, o que a lei de 2018 pretende é "não negar direitos, que a este tempo estão também postos em causa, como é o caso, por exemplo, do facto da Assembleia da República ainda não ter resolvido o problema do acesso ao arrendamento por parte das famílias com animais de companhia, que muitas vezes lhes é negado por essa razão. Isso sim contribui uma forma de desigualdade", alerta a líder do PAN.
Apesar de não haver dados relativos ao número de estabelecimentos que acolheram a medida, sabe-se que a adesão em cafés e restaurantes é crescente em Portugal (contrariamente ao que a AHRESP esperava) e a prática, entretanto intitulada de pet friendly, acabou por estender-se também a unidades hoteleiras. Há até uma outra modalidade para receber animais.
"Contrariamente ao que se verificou logo aquando a entrada da lei, hoje são cada vez mais os restaurantes que são pet friendly, que têm não só as tigelas de água disponíveis para os animais que acompanham os seus detentores, como espaços que permitem acolher quer as pessoas, quer os animais. Também já temos cat coffees que fomentam, por exemplo, a adoção dos gatos que possam estar em associações. Isto é uma viragem do ponto de vista civilizacional para termos uma sociedade de maior respeito", remata a líder do PAN.
Há "uma maior vigilância dos cuidados que são prestados aos animais"
Levar um animal a um restaurante representa mais do que a partilha de momentos entre donos e companheiros. É também uma forma de tirá-los de casa ou evitar deixá-los à porta de um estabelecimento, mesmo que por breves instantes, zelando assim pelo seu bem-estar. "Não faz sentido que no nosso dia a dia tenhamos que deixar o animal lá fora, num espaço público, correndo o risco de fugir, de ser até furtado, quando um animal com condições de higiene pode perfeitamente aceder ao estabelecimento", refere Inês Sousa Real.
Se, pelo contrário, for visível que o animal não tem a devida higiene, então neste caso a lei está mais uma vez a atuar pelo bem do animal ao denunciar uma possível situação de negligência. "Isto [permitir animais em restaurantes] até nos permite fazer uma maior vigilância dos cuidados que são prestados aos animais".
É visível a abrangência da lei, cujo objetivo vai muito além da companhia, pretendendo também "combater fenómenos como o abandono, a negligência e os maus tratos também a animais", continua a líder do PNA.
Inês Sousa Real lembra que, hoje em dia, a "família é constituída não apenas pelo ser humano, mas também acaba por ser uma família multi-espécies" e que sendo os animais seres sociais, não devem ficar restringidos a um só espaço solitário. Neste seguimento, o PAN já deu entrada a uma outra iniciativa, que pretende pôr "fim do acorrentamento animal e também dos animais que ficam fechados em casa 24 sobre 24 horas ou em espaço exíguos ou em varandas" — mais uma medida que visa a proteção dos Direitos dos animais.