Laura Rodrigues ainda hoje não sabe explicar bem o que aconteceu. Quando viu uma gatinha no feed de uma rapariga que a tinha encontrado — bebé, debilitada, com coriza (inflamação da mucosa nasal) e desnutrida —, agarrou imediatamente no telefone. “O João [na altura namorado, hoje marido] estava no Porto a filmar e eu liguei-lhe a dizer que queria adoptá-la. Ele não me ligou nenhuma. Disse que falávamos quando regressasse."
A fotógrafa de 34 anos insistiu e enviou-lhe uma foto da gata. João, operador de câmara, 38, aceitou ir conhecê-la, e quando a viu já estava mais convencido do que Laura. Foi amor à primeira vista, um sentimento praticamente inexplicável — até porque nenhum dos dois tinha alguma vez tido um animal de estimação e não percebia nada de gatos.
"Pode parecer lugar comum, mas a Bruma era especial. Só lhe faltava falar, era de uma lealdade incrível e um temperamento bastante explosivo. Ou amava ou odiava. E nós amávamos aquela gata para além do razoável."
Em janeiro de 2015, o casal andava a tratar dos preparativos do casamento, que iria acontecer dentro de três meses. Foi nessa altura que começaram a aperceber-se de que a gata estava diferente — parecia mais magra, vomitava algumas vezes, tinha tendência a isolar-se. Acabaram por levá-la ao veterinário.
"Não temos grandes memórias do suposto entusiasmo pré-casamento. A nossa gata estava a morrer, com os rins a falhar, e todo o nosso foco, energia e até dinheiro foi para ela, para todo e qualquer tratamento experimental que lhe pudesse dar tempo e qualidade de vida. Íamos visitá-la todos os dias. Todos. Saímos sempre de coração apertado e de lágrimas nos olhos, mas não podíamos deixar de ir."
A 29 de março, João teve a sua despedida de solteiro com os amigos e chegou a casa de madrugada. Como Laura fazia anos a dia 30, levantou-se cedo para ir comprar pão e frutas para um pequeno-almoço especial.
"Jamais me vou esquecer. Quando cheguei a casa, o meu marido estava no patamar das escadas. A Bruma morreu-nos durante a noite. E nós não estávamos lá. Em 14 anos de vida em comum, nunca vi o meu marido sofrer como naquele dia e nos seguintes. Nunca o vi chorar como chorou durante semanas a fio porque perdemos a nossa gata."
As coisas mudaram. "Uma semana depois de a Bruma morrer, adotámos a Mel (de um site de adoção), não para a substituir, mas para apaziguar. E fomos fazendo um caminho das pedras, para gostarmos dela tanto quanto gostávamos da Bruma. Tínhamos ficado com um gato quando a Bruma tinha 2 anos por acharmos que merecia ter companhia. E o Simão andava deprimido com a ausência da Bruma — esteve um mês e tal internada e depois...", diz.
"Mas tal como não se comparam filhos, não se comparam animais de estimação. São os três totalmente diferentes e cada um com o seu lugar. A Bruma, por si só, era (é) única e insubstituível."
"Lembro-me de chegar um dia da escola e de me sentar no chão do quarto a chorar. Ele sentou-se ao meu lado e ficou ali, o tempo todo"
“O Scotty está muito mal, Catarina. Vamos ter de fazer alguma coisa.” As palavras da amiga veterinária atingiram-na como setas afiadas — sequenciais, profundas, cada uma mais dolorosa do que a outra. Na altura a trabalhar nos Açores, Catarina Amaro começou imediatamente à procura de voos para Lisboa — estávamos em 2009 e as low costs ainda eram uma miragem, mas o dinheiro não interessava para nada naquele momento. Fosse por que valor fosse, a fisioterapeuta de 26 anos queria estar com ele. Queria despedir-se. Queria agradecer-lhe os 11 anos de amor incondicional.
“Infelizmente só tinha um lugar disponível ao final do dia”, recorda à MAGG, com a voz a tremer. “A meio da tarde a minha amiga disse que não valia a pena [pausa]. Não ia chegar a tempo.”
Scotty entrou por acaso na vida da família Amaro. A irmã mais velha de Catarina descobriu uma cadela que tinha acabado de ter uma ninhada, em que os donos pretendiam afogar as crias. O cão arraçado de labrador foi resgatado, mas nem por isso poupou os donos a traquinices — nos primeiros tempos era habitual o chichi no chão, sobretudo no quarto de Catarina. Sofás, meias e pantufas eram alvos constantes, e às vezes até o sofá parecia apetecível para meter a boca.
Catarina Amaro tinha 15 anos quando Scotty entrou em casa. A terceira filha de um total de quatro — duas raparigas e dois rapazes —, cresceram juntos como se de um quinto irmão se tratasse. Ensinaram-lhe a dar a pata, a rebolar e a pôr-se de barriga para cima, envolveram-no em todas as brincadeiras. “Era engraçado porque ele tinha um comportamento diferente consoante cada membro da família. Comigo e com o meu irmão mais novo era mais infantil — soltava o cachorro que tinha dentro dele [risos].”
Mas também sabia ser extremamente meigo, talvez até empático. Há um momento que Catarina Amaro nunca esqueceu: “Quando tinha 18 anos, aquela que foi a minha primeira relação terminou. Lembro-me de chegar um dia da escola e de me sentar no chão do quarto a chorar. Ele sentou-se ao meu lado e ficou ali, o tempo todo.”
Scotty era um membro da família. Só que os anos passaram e a família começou a crescer. “Costumo dizer que o Scotty foi perdendo as mulheres da vida dele”, diz. Quando o cão tinha 4 anos, morreu a mãe de Catarina. Pouco tempo depois, a irmã mais velha que um dia o resgatou da morte, saiu de casa. Seis anos depois, foi a vez de Catarina.
“Fui a última mulher a sair da vida dele. O Scotty ficou com o meu pai e com o meu irmão mais novo.”
Catarina sabe que Scotty sentiu essa perda de forma profunda. Tanto que sempre que vinha a Lisboa conseguia compreender-lhe tristeza no olhar. “Infelizmente foi nessa altura que comecei a notar também uma evolução rápida da doença. Quem estava com ele não se apercebia.”
Scotty começou por ter uma espécie de convulsões quando passeava na rua — Catarina percebeu mais tarde que havia um bloqueio na passagem do oxigénio para o cérebro. Além disso, tinha também perdas urinárias. Com o passar dos anos, os órgãos começaram a entrar em falência. No início de 2009, estava em sofrimento. Com a irmã mais velha e o irmão mais novo na sala, Scotty foi eutanasiado.
“Era um familiar. Aliás, como pode perceber pela minha voz [Catarina está visivelmente emocionada]. Passaram-se dez anos e continua a ser difícil.”
Em que consiste a eutanásia nos animais
"Nessa fase final de vida, no fundo os animais são privilegiados", explica à MAGG Luís Montenegro, médico veterinário e diretor clínico do Hospital Veterinário Montenegro. "Praticamente todos os animais têm assistência veterinária e nós, médicos veterinários, estamos muito preparados para ser bons conselheiros para o dono."
Perante uma situação em que, clinicamente, já não é possível salvar o animal, a preocupação dos veterinários é poupar o animal da dor e do sofrimento. E isso acaba por ser reconfortante para os donos, saber que eles sofreram o menos possível. "É o que mais preocupa os tutores dos animais, se o animal está a sofrer ou não está a sofrer."
A eutanásia consiste numa overdose de anestésicos, que leva a que haja primeiro uma inconsciência cerebral e depois então uma paragem cardíaca. "O sofrimento está completamente ausente".
São os médicos veterinários que recomendam esta prática, conscientes de que já não há nada a fazer pelo animal, mas o ato só pode ser feito com o consentimento dos donos — tem de ser, aliás, assinado um papel onde os tutores autorizam a prática da eutanásia no seu animal de estimação.
Durante seis meses, Joana sonhou que salvava Diana todas as noites
Todas as noites, todas, sem exceção, Joana Lopes sonhava que conseguia salvar a sua cadela caniche. Sonhava que conseguia avisar a mãe para olhar para o espelho retrovisor, para ver que Diana estava atrás do carro e não a atropelar. Infelizmente, eram apenas sonhos — a tragédia tinha acontecido e a cadela não ia voltar.
O meu pai é daqueles homens muito sérios, que não se sensibilizam com nada a não ser com música clássica. De repente vi-o a chorar, em pânico. Ele só me disse: ‘A Diana. A Diana. A Diana’"
Joana Lopes tinha 10 anos quando, a muito custo, conseguiu convencer a avó e a mãe a deixarem-na ficar com uma cadela caniche que tinha acabado de nascer. Conseguiu e, com apenas 15 dias, Diana entrou na sua vida. “Era muito pequenina, cabia no bolso do casaco”, recorda à MAGG a fotógrafa natural de Aveiro.
Diana tornou-se na princesa da casa. Adorava andar de carro, comia gelados, iogurtes e todas as asneiras que hoje Joana sabe que não lhe deveria ter dado, mas era saudável e feliz. Era meiga e simpática, e tinha um amor genuíno pela família — pelo pai, pela mãe e, claro, por Joana.
As primeiras complicações de saúde começaram a surgir quando Diana tinha 15 anos — perdas urinárias, problemas de visão e de audição. “Foi a perda de audição que lhe deu o destino final”, diz. Dois anos depois, em 2014, a cadela praticamente já não ouvia. Foi por isso que, numa manhã, não se apercebeu que a mãe de Joana tinha ligado o carro. A mãe, infelizmente, também não olhou para o espelho retrovisor.
“A minha mãe estava a sair do trabalho e eu levantei-me — nem sei bem porquê, não costumava fazer isso. Só me lembro de ver a cara do meu pai. O meu pai é daqueles homens muito sérios, que não se sensibilizam com nada, a não ser com música clássica. De repente vi-o a chorar, em pânico. Ele só me disse: ‘A Diana. A Diana. A Diana’.”
Diana não teve morte imediata — a mãe de Joana ainda conseguiu segurá-la no colo, enrolada num manta, e ouvir os seus últimos suspiros. Quando a fotógrafa de 31 anos chegou, já tinha partido. A mãe implorou-lhe perdão, Joana deu-lho, claro. Mas mesmo que nunca lhe tivesse dito na altura, perguntou-se muitas vezes porque é que ela não tinha olhado para o espelho retrovisor. Se ao menos tivesse olhado.
“Estávamos todos à espera que a Diana morresse, mas de forma natural, de velhice. Eu própria estava consciencializada: um dia chego aqui à sala e ela não vai acordar. Porque é normal, é o ciclo da vida. Mas ninguém está preparado para causar a morte.”
Nos primeiros anos, ninguém falava em Diana — a dor era demasiado profunda. Hoje já conseguem fazê-lo, recordando as suas traquinices e brincadeiras. Ficou a saudade e a certeza de que ela era única.
Nho viveu 25 anos e os veterinários nem queriam acreditar
Com cerca de cinco anos, Fanhosa — mais conhecida por Nho — já tinha sofrido muito. Vítima de maus-tratos, quando foi resgatada por Joana Cabral, tinha costelas partidas e estava prestes a parir. Infelizmente, e devido às agressões dos antigos donos, nenhum dos animais sobreviveu.
Estávamos em 1997. Apesar deste começo difícil, a cadela arraçada de caniche viveu uns impressionantes 25 anos. "Acompanhou praticamente a minha vida toda", diz à MAGG a designer de 37 anos. "Desde que eu andava no ensino secundário até há dois anos".
É preciso explicar que Joana não está a exagerar quando diz que Nho a acompanhou praticamente a vida inteira — a cadela ia às aulas, andava com as amigas e até se sentava no carro, como se fosse mais uma pessoa. Quando Joana foi para Coimbra tirar o curso, Nho também foi. Quando foi para Viseu estagiar, depois para Aveiro e mais tarde para Lisboa, também.
Joana Cabral não conseguia imaginar um vida sem Nho. Mesmo que soubesse que era impossível, no seu íntimo imaginava que a cadela ia viver para sempre. Apesar dos problemas de saúde que começaram a surgir com os anos, o coração continuava a bater forte. E isso surpreendia os próprios especialistas — sempre que ia a uma clínica, todos os veterinários faziam questão de conhecê-la. Afinal, era o cão mais velho que alguma vez tinham visto.
O que é que se sente? Se eu lhe disser que houve dois momentos muito duros na minha vida que foi perder o meu pai e perder a Nho... pronto."
Só que Nho não era imortal. Em 2017, na casa dos pais em Aveiro, a cadela começou a ficar apática. Foi levada imediatamente para o hospital veterinário mas conseguiu ser reanimada. Joana voltou para Lisboa mas, nessa noite, o animal teve uma paragem cerebral.
"A parte cerebral dela morreu, mas eu insisti, permiti que ela ficasse ligada às máquinas uma semana. Eu achava que era só mais uma recaída, que ela ia acordar."
No final da semana, os veterinários tiveram uma conversa com Joana — apesar da esperança da dona, Nho não ia recuperar. Tinha de ser eutanasiada. "Foi nessa altura que me caiu tudo."
Quando perguntamos a Joana o que é que se sente quando se perde um animal com 25 anos, a voz treme-lhe. "O que é que se sente? Se eu lhe disser que houve dois momentos muito duros na minha vida que foi perder o meu pai e perder a Nho... pronto."
Joana realça logo a seguir que não é comparável — o pai foi, obviamente, uma dor muito intensa. Mas Nho representava muito desse amor, uma vez que foi com ele que Joana a resgatou. Naquele dia, foi como voltar a perdê-lo e perder alguém que a acompanhou durante toda a sua formação como mulher. "Em todas as minhas fotos, ela está lá. Agora há um vazio."
Antes de se despedir, Joana acrescenta: "A Nho foi enterrada por nós e em cima foi colocada uma rosa. Passado alguns dias, a minha sogra viu a rosa com botões novos — pegou e floresceu. Agora temos a chamada 'roseira da Nho'."
"É só um cão, Inês. É só um cão"
Foi numa visita a uma loja de animais para comprar um aquário de água quente que Inês Mesquita e a família se apaixonaram por um Yorkshire Terrier. "Foi de forma completamente errada, não se deve fazer isso", admite. "Mas foi amor à primeira vista. Não se faz, mas escolhemos por impulso."
Inês Mesquita, hoje com 26 anos, cresceu com aquela cadela cujo nome prefere manter em segredo. A morte ainda é muito recente — aconteceu no início de fevereiro —, e a dor ainda está muito presente. Inês nunca viu nenhum animal com aquele nome, e para já dá-lhe conforto saber que a denominação é só dela.
"Aos 9 anos teve um cancro mamário. Foi operada três vezes, mas ficou tudo bem", recorda. Mais tarde voltou a ter um tumor na pata, mas, após a sua remoção, ficou novamente saudável. Há cerca de 6 meses as coisas começaram a piorar. Os veterinários descobriram um novo tumor, desta vez na bexiga, e a cadela ficou cada vez mais dependente.
Este período negro coincidiu com a altura em que Inês, designer de interiores, decidiu criar a sua própria empresa. "Aproveitei esse tempo e passei a ser a cuidadora dela." A jovem foi muito criticada, toda a gente lhe dizia que estava obcecada pelo animal. "É só um cão", insistiam em dizer-lhe. Mas não, não era só um cão.
"Ela estava sempre colada a mim, precisava de mim para comer...". A pressão social, aliada com a atenção constante que tinha de dedicar à Yorkshire — e que significava muitas noites sem dormir — deitaram-na abaixo. Tanto que teve de procurar ajuda psicológica.
O quadro clínico da cadela foi piorando. A 7 de fevereiro, foi eutanasiada. "Toda a gente achava que eu não estava preparada mas, assim que percebi que estava a sofrer, tomei a decisão de eutanasiá-la."
"Ela precisa de descansar." Foram estas palavras que acalmaram Inês no momento em que a sua cadela partiu. "Ela deu-nos tanto amor, agora merece descansar".
Como lidar com a perda de um animal
Na opinião do veterinário Luís Montenegro, é importante ter consciência de que os animais vão ter sempre uma esperança média de vida menor do que a nossa. É assim o ciclo natural da vida, e compreender e interiorizar esse facto é essencial desde o momento em que um animal de estimação entra nas nossas vidas.
"Biologicamente, esse animal vai ter de partir. Isso tem de ser visto num formato natural, mesmo com as crianças."
A experiência de Luís Montenegro também dita que o luto é muito mais difícil quando o animal que morre é o único da casa. "Custa sempre mais quando só há um animal. Aquilo que recomendámos é que, quando começam a ficar com cerca de 10 anos, os donos pensem em ter um novo animal. Até porque o mais velho vai ser um excelente treinador para o membro mais novo da família."
E continua: "Parece-me que essa continuidade torna menos penoso o momento da partida. Quando a pessoa não tem nenhum, o luto é mais prolongado e doloroso. Verifico mesmo isso."
O veterinário também acredita que é importante estar presente no momento da eutanásia do animal. Embora seja uma decisão do dono, e seja sempre respeitada, obviamente, Luís Montenegro tem verificado que é uma ajuda para iniciar o processo de luto.