Esta segunda-feira, 23 de maio, na discussão na especialidade sobre o Orçamento do Estado (OE) para 2022, o governo português rejeitou a proposta do PAN para criar uma licença menstrual para as mulheres que sofrem de dores graves e incapacitantes durante este período.

A rejeição da medida — que destoa do que se passa aqui mesmo ao lado, em Espanha, onde o projeto-lei para a criação da licença menstrual foi aprovado a 16 de maio, e da luz verde do governo português para a descida do IVA de 23% para 6% sobre produtos de higiene menstrual — veio ampliar a discussão sobre o tema, que continua na ordem do dia e que divide opiniões.

Por um lado, a aprovação de uma licença menstrual pode significar uma conquista na luta pelos direitos das mulheres. Por outro, há quem a avalie como mais um fator discriminatório no local de trabalho.

Governo rejeita proposta de criação de licença menstrual. PS, PSD, IL e Chega votaram contra
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Mas o que é a dor menstrual, quão incapaciante é? E a existir em Portugal, como funcionaria a licença e qual o peso destas ausências das funcionárias para uma empresa? Fomos tentar perceber.

"A dor menstrual não é normal, nem deveria ser normalizada"

Já para não falar dos preconceitos sobre o tema, a menstruação (vulgo, período) e as dores que esta situação causa às mulheres sempre foram vistas como normais e algo pelo qual é esperado que estas passem. Mas tal não podia estar mais longe da verdade.

"Temos de compreender que a dor menstrual não é normal, nem deveria ser normalizada, no sentido em que não é expectável que mulheres saudáveis, sem qualquer tipo de patologia associada ao ciclo menstrual, tenham dor menstrual forte e incapacitante, que façam com que estas mulheres não consigam manter o seu quotidiano”, explica à MAGG a educadora menstrual Patrícia Lemos, criadora do projeto Círculo Perfeito - Anos Férteis.

Patrícia Lemos, educadora menstrual
Patrícia Lemos, educadora menstrual Patrícia Lemos, educadora menstrual créditos: divulgação

Já Fernando Cirugião, ginecologista e diretor do serviço de obstetrícia e ginecologia do Hospital São Francisco Xavier, salienta que entre dores, inchaços, edemas, também existem mudanças de humor, que podem ser consideradas "sintomas psiquiátricos, quase uma patologia psiquiátrica". "As alterações emocionais associadas à síndrome pré-menstrual podem ser de tal forma intensas ao ponto de se justificarem terapêuticas antidepressivas", refere à MAGG.

Licença menstrual. O que é e como poderia funcionar?

Tal como explica Patrícia Lemos, esta licença passa pela "criação de um quadro de excepção para pessoas que apresentem um diagnóstico, seja endometriose, uma adenomiose, ou alguma coisa dentro desse espectro, que por causa de uma patologia associada ao seu ciclo menstrual, fiquem impossibilitadas de fazer o seu quotidiano normalmente nos dias de menstruação", sendo garantida uma baixa nesses casos.

A especialista refere ainda que esta medida teria especial peso em Portugal, País onde uma em cada 10 mulheres sofre de endometriose. De acordo com dados da Organização Mundial de Endometriose, existem 176 milhões de doentes em todo o mundo.

Fernando Cirurgião refere que a licença menstrual "deve ser considerada, porque sem dúvida que está comprovado que a menstruação pode ser incapacitante". No entanto, o especialista alerta que "vai ter de partir da própria mulher expressar a intensidade de sintomas".

Fernando Cirurgião é diretor do serviço de ginecologia e obstetrícia do Hospital São Francisco Xavier
Fernando Cirurgião é diretor do serviço de ginecologia e obstetrícia do Hospital São Francisco Xavier

O médico refere também que valorizar e quantificar a dor nunca será possível por ser algo "muito individual" e explica que há casos em Portugal de ginecologistas que passam baixas a doentes que têm dores incapacitantes causadas pela menstruação — mas trata-se de uma justificação de ausência laboral, que não é paga. 

Impacto da licença no trabalho e desigualdades

O ciclo menstrual já constou nos contratos de trabalho em Portugal, e estes continham a possibilidade de dispensa sem vencimento, durante dois dias, por causa do ciclo menstrual. Noutros casos, as trabalhadoras podiam faltar até dois dias por mês, com pagamento facultativo da retribuição, explicou a dirigente da CGTP, Fátima Messias, à CNN Portugal. Estas medidas terminaram em 2012, com o Código de Trabalho, que definiu um “regime imperativo de faltas”. 

Mas, a ser aprovada no nosso País, qual seria o peso desta licença para as empresas? "Em termos de impacto, naturalmente que o absentismo coloca sempre graves problemas na gestão de pessoal, e consequentemente, na atividade das empresas", esclareceu a Associação Empresarial de Portugal numa declaração enviada à MAGG.

Apesar da aprovação da medida em Espanha ter sido muito aplaudida, existe o outro lado da questão: será que a licença menstrual pode contribuir para a desigualdade de género? Fernando Cirurgião explica que "muitas associações, mesmo relacionadas com direitos das mulheres, consideram que a licença poderá ser algo exagerado" e refere que há mulheres que podem encarar a licença como uma "fragilidade".

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Já Patrícia Lemos não tem dúvidas que o mercado de trabalho pode ser um gerador de desigualdades."Há várias questões associadas aos anos reprodutivos das mulheres: quando quer ter filhos, se está a pensar amamentar, se fará uso da licença do horário reduzido para amamentar”, explica.

Para a licença menstrual não se tornar mais uma das questões da entidade patronal, a educadora menstrual sublinha a necessidade de ser feita uma estrutura e um enquadramento no mercado de trabalho para se evitar a criação de um fator de desequilíbrio.

As preocupações de Portugal com a menstruação

O debate sobre os problemas associados à menstruação também chegou a Portugal, com propostas do Partido Livre e PAN.

Em relação à licença menstrual ,não há sinais de avanço. A proposta do PAN teve votos contra do PS, PSD, EL e Chega, apenas o PAN e o PCP com votos a favor, e os restantes partidos abstiveram-se. No mesmo dia, foi aprovada a taxa mínima de IVA, 6%, para todos os produtos de higiene menstrual. A proposta foi apresentada pelo deputado Rui Tavares, do partido Livre.

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A realização de um estudo sobre o impacto da menstruação no trabalho foi outra proposta do deputado do Livre e aprovada pelo Governo e, ainda sobre o tema, em março deste ano, a Assembleia Municipal de Lisboa aprovou a distribuição de produtos menstruais reutilizáveis na escola, para combater a pobreza menstrual do município. 

O caminho sobre a menstruação está a começar a ser traçado em Portugal — mas ainda há muito para trabalhar. "Se não sabemos as nossas opções, é como se não as tivéssemos", salienta Patrícia Lemos, que acredita que o País precisa de atualizar a informação sobre o tema. "Temos de olhar para o ciclo menstrual como um sinal vital."

Espanha trouxe o caso para debate 

O governo espanhol aprovou na passada terça-feira, 16 de maio, um projeto-lei que inclui a criação de uma licença menstrual. Esta medida é direcionada a todas as mulheres que sofrem sintomas graves durante o período de menstruação e que as incapacitam de trabalhar. A nível laboral, esses dias serão pagos pelo Estado e a trabalhadora não é obrigada a ter um número mínimo de dias de contribuição à Segurança Social, como explica o “El Mundo”. A baixa será atribuída por uma licença médica sem duração máxima. 

A secretária de Estado para a Igualdade de Espanha, Ángela Rodriguez, explicou que “quando o problema não pode ser resolvido clinicamente, acreditamos que é muito sensato que haja (o direito a) uma incapacidade temporária associada a esse problema”. 

A proposta ainda terá de ser aprovada pelo Parlamento mas, caso avance, Espanha será o primeiro país da Europa com medidas deste género. 

Licença menstrual no resto do Mundo

A licença menstrual não é novidade. A primeira vez que o tema surgiu foi em 1947, no Japão, onde as operárias fabris tinham direito a três dias durante a menstruação. Atualmente, a Coreia do Sul, Taiwan e a Indonésia têm uma licença para doentes com endometriose e adenomiose. 

Segundo a CNN Internacional, com o passar dos anos, a adesão das mulheres a este tipo de medidas tem vindo a diminuir. No caso do Japão, em 2017, apenas 0,9% das trabalhadoras utilizou a licença menstrual. Na Coreia do Sul, em 2013 a adesão era de 23,6%, e em 2017, baixou para 19,7%. 

O chefe de departamento de Tóquio da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Económico (OCDE), Yumiko Murakami, defende vários fatores para a diminuição de adesão. Primeiro, pelas empresas no Japão não serem obrigadas a pagar os dias de falta, mas também pelas trabalhadoras não saberem da existência da licença, bem como a disparidade salarial e a possibilidade de discriminação nas empresas.