Nada deixaria Tina Turner mais feliz do que saber que o mundo continuará a cantar, as rádios continuarão a tocar e o povo continuará a saber de cor as suas canções mais célebres. "Simply The Best", "What's Love Got to Do With It" ou "Private Dancer" são clássicos intemporais que vão resistir para sempre à morte da cantora, esta quarta-feira, 24 de maio. Tina Turner morreu vítima de uma doença prolongada na sua casa na Suíça. Tinha 83 anos.
Ao longo de 50 anos de carreira, ganhou várias alcunhas como a deusa do rock, "The Legs" (as pernas), encheu estádios em todos os continentes, ganhou 12 Grammys e, sobretudo, o respeito de praticamente todo o mundo, não só pela sua voz, como pelas canções e pela sua luta, interna, com uma vida dramática às mãos de um ex-marido violento e abusador, como enquanto símbolo da luta pelos direitos dos artistas negros.
"Com ela, o mundo perde uma lenda da música e um modelo a seguir". As palavras de Bernard Doherty, publicista de Tina, anunciavam assim a sua morte, sem explicar a causa, que, sabe-se, dito pela própria na sua autobiografia lançada em 2018, era um cancro no intestino. Há alguns anos, precisamente devido à doença, Tina recebeu um rim do marido, Erwin Bach, após ter sofrido uma falência dos rins. Acabou por salvar-se com a doação do novo órgão, mas nunca conseguiu voltar a ser saudável, como também é dito na auto-biografia.
Doherty anunciou ainda que haverá uma cerimónia fúnebre privada, unicamente para amigos próximos e membros da família
A carreira de Tina Turner começou em finais dos anos 50, início dos anos 60, na altura com um duo de rhythm and blues, Ike & Tina Turner. Só mais tarde acabou por seguir a carreira a solo. Foi a primeira mulher e a primeira artista negra a aparecer na capa da mais prestigiada revista de música do mundo, a "Rolling Stone" — logo na sua segunda edição, o que foi um marco relevante na luta pelos direitos dos artistas negros.
Na sua biografia — algo que já podia ter sido visto no filme autobiográfico — revelou como levou uma vida de abusos e violência às mãos do ex-marido, Ike Turner, que queria controlar toda a sua vida e as suas contas.
"Foi a minha relação com Ike que me fez mais infeliz. No início, eu estava realmente apaixonada por ele. Vi o que ele tinha feito por mim. Mas ele era totalmente imprevisível", escreveu Turner.
No final da década de 1970, Turner separou-se de Ike e lançou-se numa carreira a solo cheia de êxitos.
Como Anna Mae Bullock se fez Tina
Tina Turner nasceu a 26 de novembro de 1939 com o nome de batismo Anna Mae Bullock. Viveu e cresceu no campo, numa zona rural de Brownsville, no Estado do Tennessee. A sua família era humilde e sem grandes recursos, mas Anna desde criança que cantava, sobretudo temas que ia ouvindo na rádio. Já nos primeiros anos da adolescência, a família mudou-se para St. Louis, no Missouri, e Anna começou a cantar em bares de R&B da cidade.
E foi aí, já em meados dos anos 50, que foi descoberta por Ike Turner, que atuou com a sua banda, os Kings of Rhythm, na mesma noite de Anna. Ike acabou por contratar Tina como back vocal, ou corista, da sua banda. Iniciaram uma relação e Ike mudou o nome artístico de Anna para Tina, dando-lhe o seu próprio apelido, Turner.
O primeiro grande sucesso do Duo é de 1960 — "A Fool in Love" — que fez com que Ike & Tina Turner começassem a passar em todas as rádios nacionais, tornando-se muito populares, sobretudo devido à animação das suas canções. Em 1962, Ike e Tina casaram-se. Já na altura, Tina começava a brilhar não só pela voz, como pelas suas pernas longas, bem desenhadas, que eram sempre evidenciadas graças às minissaias que usava em palco e nas produções fotográficas. "Tina Turner é uma miúda incrível", escreveu Jann Wenner, co-fundador da Rolling Stone, em 1967. "Ela aparece com uma minissaia muito curta, muito acima dos joelhos, com lantejoulas prateadas e brilhantes colados. A sua dança é completamente desenfreada".
Drogas, abusos e violência
Foi por esta altura que o casamento de Tina e Ike, que tinha apenas meia dúzia de anos, começou a definhar. Ike meteu-se nas drogas, começou a sofrer com problemas psicológicos, emocionais, desequilíbrios, que o levaram também ao álcool e, consequentemente, ao abandono da carreira artística enquanto performer. Nos bastidores, passou a querer controlar toda a vida de Tina, sofrendo graves crises de ciúmes que levavam a que, recorrentemente, aplicasse tareias violentas na mulher, que a aprisionasse e a impedisse de aceder às suas contas. O mais irónica era mesmo o facto de serem mais ou menos conhecidos vários casos de Ike com amantes.
A 1 de julho de 1976, após uma violentíssima discussão antes de um concerto em Dallas, Tina decidiu que era o momento de pedir o divórcio. Deixou Ike e perdeu acesso a todo o seu dinheiro. Ficou apenas com 36 cêntimos no bolso e um cartão de crédito.
Tina Turner fez então várias digressões a solo sem grande novidade para apresentar, cantando apenas os temas que tinha, com o único objetivo de arranjar dinheiro para pagar as muitas dívidas. Em 1981, já com a situação quase resolvida, atingiu o momento mais alto da carreira, ao abrir o concerto dos Rolling Stones.
"Private Dancer" mudou tudo
Embora fosse conhecida e reconhecida pela sua voz e presença, Tina Turner só disparou para o sucesso que veio a ter em 1984, quando lançou o álbum "Private Dancer", que continha o seu maior êxito de sempre, "What's Love Got To Do With It". O álbum vendeu mais de 20 milhões de cópias em todo o mundo e ganhou três Grammy, incluindo Disco do Ano e Melhor Performance Vocal Feminina, precisamente em "What's Love Got to Do With It". Foi mais ou menos nesta altura que Tina Turner surgiu com um visual muito próximo daquele por que veio a ser reconhecida, com um cabelo espetado, em pé, e saltos enormes.
A carreira de Tina prolongou-se, recheada de êxitos, até início dos anos 2000. "All the Best", de 2004, uma coletânea de êxitos, foi o último grande disco de Tina, com vendas astronómicas. Em 2009, Tina parou de cantar. Não voltou a dar espetáculos, foi viver para a Suíça e abandonou o mediatismo, reservando-se em casa junto da família e amigos. Em 2018, recebeu um Grammy Lifetime pela sua carreira e em 2021 vendeu todos os direitos da sua música à BMG Rights Management por um total de 50 milhões de dólares.
No discurso final após ter recebido o Grammy de carreira, Tina resumiu assim a sua vida: "Se ainda me dão prémios aos 81 anos, devo ter feito alguma coisa bem". E fez. Para muitos, será sempre "Simply The Best".