É bem provável que tenha uma ideia desta história, mesmo que vaga: está em todos os livros escolares. No reinado de Henrique VIII, que subiu ao poder após a morte do irmão mais velho, Artur, em 1509, o rei inglês vivia um matrimónio atribulado. Depois de casar com Catarina de Aragão, viúva do irmão, o casal deparava-se com a dificuldade de ter um herdeiro homem. Da relação nasceu uma única criança, Maria I — que, naquela época, não "servia" para reinar.

Naquela altura, o rei Henrique VIII estava perdido de amores por uma dama de companhia da rainha, Ana Bolena. Irritado com a situação em que se encontrava, o rei decidiu fazer algo inédito: pedir o divórcio de Catarina. Assim poderia casar com Ana Bolena e ter o tão desejado herdeiro.

Problema: não havia divórcios no século XVI. Contra a opinião dos seus conselheiros, porém, Henrique VIII foi em frente com a sua decisão, defendendo que o seu casamento com Catarina era contra a lei divina, uma vez que a mulher era viúva de Artur. Além disso, o facto de Catarina de Aragão ter tido tantos abortos só podia significar que estavam de facto a cometer uma transgressão divina.

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Em 1533, Henrique VIII casou com Ana Bolena. Só que o Papa Clemente VII recusou-se a aceitar o divórcio, e ainda declarou Catarina de Aragão como rainha de Inglaterra. O rei não se deixou ficar, e declarou-se como o chefe da Igreja no seu reino. A religião oficial seguida em Inglaterra passou então a ficar conhecida como Reforma Anglicana.

Retrato idealizado de Henrique VIII, Joana Seymour e Eduardo V
Retrato idealizado de Henrique VIII, Joana Seymour e Eduardo V

Já estamos quase a terminar a aula de História — que também poderia ser perfeitamente o enredo de uma novela da Globo. É que os meandros desta narrativa caótica continuam, uma vez que Ana Bolena só teve uma filha, a futura Isabel I. Já Henrique VIII apaixonou-se (outra vez) por uma dama de companhia da nova mulher, Joana Seymour. Basicamente, tinha voltado à estaca zero.

Só que estávamos no século XVI. Apesar do adultério ter sido cometido pelo rei, foi Ana quem acabou por ser acusada de incesto e de alta traição. Considerada culpada, pouco tempo depois, foi executada. O rei casou-se com Joana, que finalmente deu à luz um rapaz, Eduardo V. Seymour morreu na sequência de complicações no parto.

Até à sua morte, em 1547, aos 55 anos, Henrique VIII casaria mais três vezes.

Parece óbvio que o rei tinha alguma dificuldade em manter relacionamentos exclusivos. No entanto, nos mais de 500 anos de história que nos separam desta época, quem ficou com a má fama foi Ana Bolena. Ao longo dos séculos, os historiadores continuaram a descrevê-la como uma sedutora, sedenta de poder, uma bruxa de seis dedos que encantou o rei.

E nem precisamos de procurar nos livros de história. No cinema, Natalie Portman interpreta Bolena como uma sedutora intrigante em "Duas Irmãs, Um Rei". Na minissérie "Wolf Hall", a Ana Bolena de Claire Foy vem de uma família ambiciosa que está disposta a tudo para subir socialmente.

Nada disto faz sentido para a historiadora Hayley Nolan, autora do novo livro "Anne Boleyn: 500 Years of Lies", publicado a 1 de dezembro (ainda sem data prevista para chegar a Portugal). A obra, parte biografia e parte exposição histórica, desafia as fontes convencionais utilizadas frequentemente para explorar a vida de Bolena, e destaca os esforços humanitários, religiosos e políticos da rainha.

Os historiadores que reconhecem isto dizem que foi uma tática calculada e uma chantagem sexual — o verdadeiro exemplo de que quando uma rapariga diz que não, na realidade quer dizer sim"

"Mesmo que as pessoas tentem dizer que era uma época diferente, não, não foi diferente. Estamos sempre a tentar desacreditar a vítima quando na realidade precisamos de defendê-la", diz Hayley Nolan à revista "Time". "É por isso que não podemos descartar a romantização da história de Ana. Filtra-se e tem efeito".

Uma mentira que perdurou mais de 500 anos

Ana Bolena é descrita como uma mulher intrigante, sedutora, com um lado negro e que conseguiu enfeitiçar o pobre e influenciável rei Henrique VIII. Por amor, Henrique fez o sacrifício final de acabar com o seu casamento para poder ficar com Ana. Esta teoria é sobretudo assente nas cartas de amor que Henrique escreveu para Bolena.

Uma leitura mais cuidada, porém, deixa claro que o rei já andava a informar-se sobre como poderia divorciar-se de Catarina de Aragão anos antes de Bolena entrar em cena. Mais: para a historiadora não há dúvidas de que Bolena resistiu aos avanços do rei, tanto que fugiu no verão de 1526.

As cartas de amor parecem abranger o momento em que Ana esteve ausente da corte, distanciando-se dos avanços do rei. "Os historiadores que reconhecem isto dizem que foi uma tática calculada e uma chantagem sexual — o verdadeiro exemplo de que quando uma rapariga diz que não, na realidade quer dizer sim", explica Hayley Nolan.

Um retrato de Ana Bolena
Um retrato de Ana Bolena

Outros historiadores, porém, interpretam aquelas cartas como assédio. Hayley é da mesma opinião: "Peço desculpa, mas a maneira como um homem mata uma mulher não prova o seu amor por ela. Se acaba em decapitação, nunca foi amor", diz, referindo-se ao facto de Henrique VIII ter consciência de que a relação iria colocar a vida de Bolena em risco.

Ana foi presa juntamente com cinco homens, com quem foi acusada de cometer adultério — um deles era o seu próprio irmão, George. Estávamos em maio de 1536. Ela foi julgada primeiro e considerada culpada de adultério, incesto e alta traição, uma vez que supostamente estaria a conspirar matar o rei para fugir com o amante. Só que nessa altura Henrique já estava profundamente apaixonado pela sua própria amante, Joana Seymour — tanto que no dia seguinte à execução de Bolena, ficaram comprometidos.

Hayley Nolan é da opinião que estas acusações não fazem sentido — e que, em último caso, podem mesmo ter sido totalmente fabricadas por Thomas Cromwell, um dos conselheiros do rei. A historiadora salienta que a falta de privacidade da rainha e as suas crenças profundamente religiosas dificultariam a infidelidade, ainda para mais com vários homens.

Uma sedutora cruel ou uma ativista que queria acabar com a pobreza?

Dois meses antes da sua execução, Bolena estava profundamente envolvida na aprovação de uma legislação nacional intitulada Lei dos Pobres, que defendia que as autoridades locais deveriam ajudar os desempregados a encontrar trabalho. A lei implicava a criação de um novo conselho de governo que iria rivalizar com o liderado por Thomas Cromwell, o conselheiro do rei.

A historiadora Hayley Nolan
A historiadora Hayley Nolan

"De repente, temos uma razão muito mais devastadora para explicar porque é que Cromwell se sentia imensamente ameaçado pela rainha", diz Nolan. "Ela não era uma valente ou sedutora cruel. Na realidade, ela era uma trabalhadora política que morreu a tentar promover esta lei radical contra a pobreza através do parlamento."

Embora a criação da lei tenha sido atribuída a Cromwell, o envolvimento de Bolena foi reconhecido em novembro deste ano durante a Semana do Parlamento no Reino Unido.

Para a historiadora, não há dúvidas de que a interpretação da história de Ana Bolena baseou-se em fontes pouco fidedignas. Os registos do embaixador espanhol Eustace Chapuys são um exemplo disso — muito se extrapolou da sua opinião, mas ele era um defensor de Catarina de Aragão. Além disso, as pessoas que mantinham registos no século XVI eram predominantemente homens. Para Nolan, eles fizeram subsistir até aos dias de hoje a ideia de que as mulheres só alcançam o poder através de "truques".

"Enviamos uma mensagem perigosa ao mundo quando dizemos aos leitores e espectadores que as mulheres só querem poder por razões egoístas e frívolas". E remata: "A sua história é mais relevante agora do que nunca, porque ela foi uma política que foi derrubada. Isso continua a acontecer, e é por isso que precisamos de saber o que realmente aconteceu para garantir que a história não se repete".