Imagine o seguinte cenário: em cima de um palco, um homem baixa as calças e simula tocar música com o pénis. O público? Divide-se entre gargalhadas e aplausos sem a mínima noção de que está diante do próximo presidente da Ucrânia, que enfrenta agora, em pleno 2022, um conflito armado contra a Rússia, com Vladimir Putin no comando do ataque.
Falamos de Volodymyr Zelensky, o homem que, antes de ser o atual presidente da Ucrânia, era um ator/comediante que se fazia passar por um. E que, antes de assumir qualquer cargo político, já tinha sofrido as consequências de um conflito armado: a Segunda Guerra Mundial.
No primeiro discurso à nação, depois da "operação militar especial" desencadeada pelo Kremlin, o presidente ucraniano comparou a Rússia de Putin à Alemanha de Hitler. "A Rússia atacou o nosso estado (...) da mesma forma que a Alemanha nazi o fez durante a II Guerra Mundial. A partir de hoje, os nossos países estão em lados opostos. A Rússia está do lado do Mal", disse.
Para muitos, a evocação da Segunda Guerra Mundial foi interpretada exclusivamente com base nas semelhanças históricas. No entanto, quem conhece a história de Zelensky sabe que foi mais do que isso.
Em Jerusalém, em 2020, Zelensky tinha contado a sua própria história ao, à data, primeiro-ministro israelita, Benjamin Netanyahu. Três irmãos do avô foram vítimas do Holocausto, executados pelos ocupantes alemães, mas o seu avô sobreviveu à Segunda Guerra Mundial, tendo contribuído "para a vitória sobre o nazismo e a sua ideologia odiosa", como cita o "Observador".
"Dois anos depois da guerra, o seu filho nasceu. E o seu neto [falando de si próprio] nasceu 31 anos depois", disse. "40 anos depois, o seu neto tornou-se presidente. E hoje está perante si", acrescentou. Agora, Zelensky enfrenta Putin num conflito armado em que todos saem a perder.
À data do primeiro dia de ataques, Putin pediu a desmilitarização e desnazificação da Ucrânia. "Pode um povo que perdeu oito milhões de vidas na batalha contra o nazismo apoiar o nazismo?", disse. "Como posso ser nazi? Explique isso ao meu avô, que passou a guerra na infantaria soviética e que morreu coronel numa Ucrânia independente" foi a resposta de Zelenskiy.
Putin já se estreava na política quando Zelensky ainda só fazia rir os colegas de turma
Após o colapso da União Soviética, em 1991, Vladimir Putin arrumou o fato de agente da KGB (principal organização de serviços secretos da União Soviética) e enveredou pelo universo político. Mas, à data, Volodymyr Zelensky, com 13 anos, ainda só fazia rir os colegas de turma, confirma o "Diário de Notícias". O "espião" e o "palhaço" estão agora frente a frente, mas o percurso do presidente da Ucrânia é, no mínimo, inusitado.
Em 1975, no seio de uma família judia, Volodymyr nasceu em Kryvyi Rih, na Ucrânia. Segundo o jornal "Observador", os pais nada tinham que ver com o meio artístico: já que o pai, Oleksandr Zelensky, era um matemático e professor responsável pelo departamento de cibernética do Instituto de Economia de Kryvyi Rih e a mãe, Rimma, era engenheira.
Na mesma região, um centro industrial com cerca de 600 mil habitantes, nasceu também Olena Zelenska. Foram colegas de escola, mas só mais tarde, em 2003, os destinos se cruzaram e resultaram mesmo em casamento. Atualmente, têm dois filhos, Aleksandra Zelenskaya, com 17 anos, e Kiril Zelenskiy, com 9.
Da comédia à política, a ficção tornou-se real
Se, há quatro anos, perguntasse ao povo da Ucrânia quem era Volodymyr Zelensky, a resposta seria, no mínimo, surpreendente – e oscilaria entre "ator", "comediante" e o "rei da sátira política". Parece mentira, mas não é e, na vida de Zelensky, a realidade imitou mesmo a ficção.
Volodymyr Zelensky venceu as eleições presidenciais ucranianas depois de protagonizar a série "O Servo do Povo", onde, por mero acaso, se tornou presidente. Tornou-se na personagem a que dava vida, mas nem os escritores da série poderiam adivinhar que se tornaria o líder de um país atacado pela Rússia.
"Trump da Ucrânia"
Na ficção, Zelensky era Vasily Goloborodko, um professor de História irritado com a corrupção no seu país que, um dia, acordou e, quase sem aviso prévio, era presidente da Ucrânia.O que é facto é que a série cómica tornou-se um fenómeno na Ucrânia, depois de estrear no canal 1+1, em outubro de 2015. E entre a comédia e a sátira política chegou a ser exibida na Bielorrúsia e até no canal russo TNT, apesar de alvo de censura, quando se falava de Vladimir Putin, avança a "Visão", que acrescenta que chegou mesmo a resultar num filme.
Volodymyr acabou por consolidar a sua carreira como ator com a participação em vários filmes, como "8 First Dates", em que a própria filha, Aleksandra Zelenskaya, também participou, quando teria apenas 10 anos.
Ze, como era conhecido pelos apoiantes, acabou por cativar o público e protagonizar uma campanha política bem sucedida, embora polémica, financiada por um oligarca ucraniano investigado por fraude nos EUA.
"1 de abril, que dia fantástico para vencer. Afinal sou um palhaço!", afirmou numa entrevista ao jornal "Ukrayinska Pravda", em plena campanha, em 2019.
Segundo avança o "Diário de Notícias", num país que ainda não esquecera os acontecimentos de 2014, quando o presidente pró-russo Viktor Ianukovich foi derrubado pelos protestos de rua pró-ocidentais, a campanha leve de Zelensky convenceu os eleitores de que o presidente que viam no ecrã a fazer piadas era mesmo o melhor para ocupar a chefia do país.
E a verdade é que a popularidade de Zelensky teve reflexos também no número de votos que angariou. À data da eleição, com 41 anos de idade e, ficção à parte, zero de experiência política.
Logo na primeira volta, com 30% dos votos, vencia o, à data, presidente do país, Petro Poroshenko (com 18,5%). E afastava-se de Yulia Timoshenko (com 14%), antiga primeira-ministra, que cumpriu dois anos de uma pena de prisão de sete, por abuso de poder, avança o "Observador".
No entanto, só na segunda volta, a 21 de abril de 2019, a vitória foi confirmada e Zelensky tomou posse como presidente da Ucrânia a 3 de junho.
Na altura, chamaram-lhe "o Trump da Ucrânia" face à sua inexperiência política, mas a opinião do público foi mudando ao longo do tempo. Ainda assim, seria mesmo Zelensky a causar um escândalo internacional que envolveria, precisamente, Trump: já que o primeiro discurso do antigo presidente norte-americano aconteceu mesmo depois de uma chamada entre Trump e Zelensky, em 2019, em que Trump tentava convencer o ucraniano a investigar os negócios de Biden no país de leste, lê-se na mesma publicação.
Visto como uma personalidade movida mais pela fama do que pela ganância ou ambição, mesmo antes do atual conflito, Zelensky continuava a ser um dos políticos mais populares. Sendo que, em julho de 2021, segundo o "Observador", 30% dos eleitores diziam que votariam de novo no comediante feito político. Entretanto, deu-se a revelação do envolvimento de Zelensky nos Panama Papers, um caso que conta com documentos que mostram a sua presença numa companhia offshore, que alegadamente foi transferida para um amigo semanas, antes da eleição.
"A minha família é o alvo número dois"
Agora, enfrenta uma invasão russa, naquele que já é o terceira dia de conflito. Uma analista política ucraniana citada pelo "New York Times", Maria Zolkina, assegura que Zelensky não é "presidente de guerra", mas que, desde que se tornou claro a extensão do ataque, "age exatamente como um presidente deveria agir durante tempos de guerra".
Zelensky continua em Kiev, mesmo depois de os Estados Unidos oferecerem ajuda para o resgatar em segurança. O presidente da Ucrânia garante que é o "inimigo número 1" da Rússia, que tem a cabeça a prémio e a "família é o alvo número dois".