O secretário-geral das Nações Unidas, António Guterreses, viajou esta terça-feira, 26 de abril, para Moscovo, onde se reuniu com o presidente russo, Vladimir Putin, e o ministro dos Negócios Estrangeiros, Sergei Lavrov. Fê-lo no papel de "mensageiro da paz", palavras do próprio, e conseguiu efetivamente que a esperança de resultados positivos voltasse a discussão. Ainda assim, a reunião ficou marcada por Guterres a esclarecer o que se tem vindo a passar na Ucrânia e pelo Kremlin a defender as intenções russas.
Ainda antes da reunião com Putin, a tensão fez-se sentir entre Guterres e Lavrov. Numa conferência de imprensa em que o secretário-geral das Nações Unidas e o ministro russo estavam lado a lado, Guterres fez questão de interromper Lavrov para esclarecer quem está no comando do ataque e que território tem vindo a ser invadido desde o arranque da guerra.
"Há uma coisa que é verdade e óbvia, algo que nenhum argumento pode mudar: não há tropas ucranianas no território da Federação Russa, mas há tropas russas no território da Ucrânia", rematou, em declarações citadas pelo jornal "Observador", em que "existem duas posições diferentes sobre o que está a acontecer na Ucrânia".
Correção a que Lavrov reagiu apenas com uma resposta breve — "isto é verdade, posso confirmar". Posteriormente, em resposta a uma outra pergunta, o ministro dos Negócios Estrangeiros comentou ainda em que ponto estariam as negociações pela paz e alegou que a equipa de Zelensky não entregou ao presidente ucraniano a proposta de paz redigida pela Rússia, sabotando assim as negociações em causa.
Neste tópico ainda, disse que a Rússia rejeitou a proposta da Ucrânia de realizar negociações de paz na cidade portuária. Não se demorou nos comentários à situação de Mariupol, mas Putin teve uma postura diferente, apesar de defender as intenções russas contra qualquer crítica de Guterres.
O presidente russo reconheceu que situação de Mariupol é "trágica", mas garantiu estar aberto a negociações e disse esperar resultados positivos. Ainda assim, voltou a acusar Kiev de não querer facilitar a organização de corredores humanitários e, ainda, de ter encenado o massacre de Bucha.
Confrontado com o atual cenário da Ucrânia, o líder russo garantiu que se trata de uma "operação especial" e que a Rússia foi "forçada a fazer isto", referindo-se à invasão do país vizinho, mas Guterres não se ficou e fez questão de corrigir o presidente russo.
Trata-se de uma "invasão", não de uma "operação militar especial"
O frente-a-frente entre o líder do Kremlin e o secretário-geral da ONU deu-se em Moscovo, na já conhecida mesa de seis metros de comprimento, decorada em folha de ouro, onde o líder russo já recebeu outros chefes de estado, como o presidente francês, Emmanuel Macron.
Numa discussão pautada por momentos de tensos e de discordância, Putin começou por descrever a situação como uma "operação militar especial" — expressão que tem vindo a utilizar desde o arranque da guerra, há dois meses — levando Guterres a manifestar-se no sentido de esclarecer o que está em causa. Para o secretário-geral das Nações Unidas, trata-se de uma "invasão".
"Acreditamos firmemente que a violação da integridade territorial de qualquer país não está de forma alguma em linha com a Carta das Nações Unidas. Estamos profundamente preocupados com o que está a acontecer agora. Consideramos que aquilo que aconteceu foi uma invasão em território ucraniano", esclareceu.
A Rússia foi "forçada a fazer isto", diz Putin
Confrontado com a questão de se tratar de uma "invasão" ao território ucraniano, Vladimir Putin disse, em declarações citadas pelo jornal "Observador", que a Rússia foi "forçada a fazer isto" — a invadir a Ucrânia — por causa do "genocídio" em curso contra a população ucraniana e da falha no cumprimento dos acordos de Minsk. No caso, por parte de Kiev.
Na sua ótica, no cerne da tensão entre a Rússia e a Ucrânia está Euromaidan, o "golpe de estado", como o rotulou, que se deu em 2014. "A partir daí, recebemos pedidos de independência da Crimeia e do leste da Ucrânia", avançou Putin, alegando que a intervenção do seu país se destinou a proteger pessoas das que autoproclamaram a sua independência.
No entanto, António Guterres respondeu que as preocupações da Rússia "devem ser resolvidas através das ferramentas sugeridas pela carta das Nações Unidas". "Conheço muito bem os documentos do Tribunal Internacional da ONU, que diz que a autodeterminação de um Estado não o obriga a pedir autorização do poder central para proclamar a sua independência", rematou Putin.
O presidente russo deixou claro que está aberto a negociações, mas esclareceu que não vai abdicar da Crimeia como território russo e voltou a acusar a Ucrânia de encenar cenários para pintar a situação de forma ainda mais grave. Segundo conta, o alegado massacre de Bucha, na Ucrânia, foi uma "encenação".
Putin reconhece que a situação de Mariupol é "trágica"
Segundo o presidente russo, à semelhança do que aconteceu em Bucha, também em Mariupol a situação é diferente da retratada pela comunicação ucraniana. Segundo diz, a Ucrânia está a utilizar a população como "escudos humanos", à semelhança do que é praticado em grupos terroristas. "Ouvimos, pelas autoridades ucranianas, que há civis lá. Nesse caso, os militares do exército ucraniano devem libertá-los, ou estão a agir como terroristas em muitos países, como o ISIS na Síria", disse.
Putin admite que a situação é "complicada" e "até trágica" em Mariupol, mas garante que já não há mais combates, que estes "acabaram", e que quem quer sair daquele território específico é livre para o fazer. No mesmo discurso, desafiou ainda Nações Unidas e a Cruz Vermelha a deslocarem-se ao local para ver "o que realmente se passa".
Guterres comentou a eficácia dos corredores humanitários e Putin reagiu. "Mentiram-lhe"
Em reunião com Putin, com a situação de Mariupol como um dos pontos de discussão, António Guterres avançou o compromisso da ONU em mobilizar recursos logísticos e humanos para evacuar civis da cidade de Mariupol. "Vai ser um processo mais longo, temos de estabelecer mais formas de cooperação mas estamos mesmo interessados nisto", frisou, em declarações citadas pelo jornal "Expresso".
Guterres prontifica-se a ajudar, em nome da ONU, mas Putin rejeita a ideia de que os corredores humanitários não sejam eficazes. "Está a falar dos corredores humanitários russos não estarem a funcionar. [Os ucranianos] mentiram-lhe. Estão a funcionar, com a nossa assistência mais de 100.000 pessoas saíram de Mariupol".
Ainda assim, não descartou a hipótese de, "em princípio", aceitar o envolvimento das Nações Unidas e do Comité Internacional da Cruz Vermelha na retirada de civis de Azovstal, em Mariupol.
Neste sentido, Guterres, que se deslocou a Moscovo com o objetivo principal de "salvar vidas e reduzir o sofrimento", sugeriu ainda a criação de um "grupo de contacto humanitário", que reunisse as forças da ONU, da Rússia e da Ucrânia em prol da vida de civis, com o principal objetivo de garantir a abertura e bom funcionamento de corredores humanitários.