A CP - Comboios de Portugal, a Fundação Museu Nacional Ferroviário e o empresário Eduardo Lopes, mais conhecido como chef Chakall, estão a ser processados pela LOHAD, empresa cujo CEO é o empreendedor português Gonçalo Castel-Branco, fundador de conceitos como o Chefs on Fire, entre outros, que exige 2 milhões de euros pela usurpação ilegal e destruição do projeto The Presidential Train.

A polémica estalou em novembro de 2023, quando a CP, a Fundação Museu Nacional Ferroviário e o chef Chakall anunciaram o novo projeto Comboio Presidencial que, à data, referiram ser uma nova versão do projeto idealizado e concretizado por Gonçalo Castel-Branco e pela sua empresa desde 2015. Na viagem de apresentação deste novo conceito, Pedro Moreira, presidente da CP, referia aos jornalistas presentes no evento que este proporcionava "uma experiência completamente diferente da anterior", como é referido pela "Time Out".

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"Quisemos que fosse muito mais democrática, com maior envolvimento da região. O que existia não tinha um envolvimento tão grande. Havia um acordo com uma quinta, nós temos um acordo com dez quintas e com vários restaurantes da região”, disse o presidente da CP a 15 de novembro do ano passado, citado pela mesma revista.

No dia seguinte, a 16 do mesmo mês, a LOHAD anunciava, em comunicado, a intenção de processar todos os intervenientes: a CP, a Fundação e o chef Chakall. Até porque, e tal como referido por Pedro Moreira na viagem de apresentação, "todos entram com uma parte do negócio, todos entram com risco, e vai existir uma chave de distribuição de receita em função da participação de cada um dos três neste projeto", escrevia o "Expresso".

"A LOHAD, empresa detentora do multipremiado projeto 'The Presidential Train', vem por este meio clarificar todos os seus clientes e os consumidores em geral que não tem qualquer participação no formato ontem [15 de novembro de 2023] lançado pela CP, FMNF e Chakall, que vem utilizar de forma não autorizada o património intelectual da empresa e o reconhecimento mundial do projeto, causando-lhe danos reputacionais elevados", referia o comunicado da empresa de Gonçalo Castel-Branco.

A mesma comunicação salientava ainda que se o projeto inovador "conquistou os prémios e a reputação internacional que todos lhe reconhecem é, em grande medida, porque sempre recusou trocar chefs conceituados por meras estrelas televisivas e profissionais por curiosos, e sempre preferiu a qualidade do projeto e o seu contributo para o prestígio internacional do turismo português ao lucro rápido".

"Fazemos esta comunicado por considerarmos que os consumidores merecem ser esclarecidos, uma vez que esta iniciativa da CP/FMNF/Chakall apresenta, intencionalmente, uma confundibilidade estratégica com o projeto desenvolvido durante anos pela LOHAD. Assim, este assunto estará, a partir de hoje, entregue às instâncias judiciais competentes, nacionais e europeias, para que seja dirimido em sede própria", referiam no mesmo comunicado.

O que nos leva a 31 de julho de 2024, dia em que a LOHAD avança que deu entrada com um processo legal contra os três intervenientes acima referidos e que "perseguirá todos os meios legais para ver ressarcidos não só os prejuízos reputacionais como os lucros cessantes, num valor de 2 milhões de euros - valor que naturalmente deverá crescer caso o projecto CP/Museu/Chakall tenha continuidade", referem em comunicado.

Mas, afinal, como é que chegámos aqui? Quem criou o projeto, quem se apoderou ilegalmente do mesmo e de que moldes e o que está em causa? Perceba a polémica em seis pontos fulcrais.

1. Quem criou o projeto do “The Presidential Train”?

A resposta é simples: Gonçalo Castel-Branco, CEO da LOHAD e fundador de outros conceitos de sucesso, como o Chefs on Fire.

Para contar esta história precisamos regressar a 2105, quando Gonçalo Castel-Branco visitou o Museu Nacional Ferroviário, no Entroncamento, e aí encontrou o Comboio Presidencial, uma autêntica joia da coroa do património ferroviário português, construído em 1890. Outrora apelidado de Comboio Real, ganhou a designação de Comboio Presidencial no início do século XX, e transportou reis, papas e inúmeros chefes de estado portugueses e não só — incluindo o Papa Paulo VI e a rainha Isabel II. Retirado de circulação no início da década de 70, o comboio transportou o corpo de António Salazar de Lisboa até Santa Comba Dão, naquela que foi a sua última viagem oficial.

Desde essa altura — tendo sofrido uma renovação em 2010 que manteve todas as carruagens com os materiais originais, à exceção de estofos, por exemplo, embora tenham sido usados tecidos iguais aos anteriores —que o Comboio Presidencial ficou parado no museu do Entroncamento, até à visita de Gonçalo Castel-Branco.

"Fiquei apaixonado pelo comboio e logo com a ideia de que tinha de conseguir fazer algo. Depois de visitar o museu, estava a jantar com a minha família, a contar-lhes o que tinha visto e que ideia podia nascer, quando a minha filha de 10 anos, na altura, a comer, disse: 'porque é que não fazemos um restaurante?", contou-nos o curador executivo do The Presidential Train em setembro de 2022, quando a MAGG participou de uma das viagens da última edição do projeto.

De uma conversa de família, a ideia começou a passar para o papel com o intuito de criar "viagens que celebrassem o melhor do nosso País e cultura, convidando os melhores chefs nacionais a preparar um menu sustentado por produtos e marcas regionais, harmonizado por vinhos exclusivamente portugueses, numa viagem pela linha do Douro", recorda a LOHAD no comunicado enviado esta quarta-feira, 31 de julho, que anuncia o processo legal.

"Apesar da quase inexistência do segmento turismo ferroviário no nosso País, o empresário (através das suas empresas T&M e, mais tarde, LOHAD) trabalhou durante oito anos na criação do que é, até hoje, o mais bem sucedido projecto do género no nosso País", acrescentam.

2. O projeto foi bem sucedido?

Muito. O projeto do "The Presidential Train" ganhou vários prémios, sendo de destacar o prémio de Melhor Evento Público do Mundo em 2017, em que a T&M/Lohad e a FMNF foram os únicos portugueses a ganhar, entre 300 candidatos de 27 países.

Falando de números, o projeto teve um retorno estimado de mais de 18 milhões de euros para Portugal e para a ferrovia nacional, e 493 mil euros para a Fundação Museu Nacional Ferroviário (FMNF), devido ao impacto direto promocional (dados da CISION).

Nesta altura, a T&M (agora LOHAD) tinha assumido uma parceria com a FMNF e a CP para a realização do projecto, "no qual  a T&M/Lohad assumia a totalidade do investimento do mesmo", refere a empresa em comunicado.

Tudo isto porque, em 2015, e depois de a T&M/Lohad tentar o aluguer do Comboio Presidencial para a realização do projeto — e após o Comboio Presidencial Português ter sido alvo de uma recuperação em 2010 no valor de 1,2 milhões de euros suportada pelo apoio financeiro Portugal 2020, que obrigava a que o comboio fosse usado fora do Museu em atividades de promoção, turísticas e em parcerias com entidades privadas —, a empresa de Gonçalo Castel-Branco foi confrontada com a situação financeira da FMNF  e com a realidade que o "comboio não poderia ser alugado porque o Museu não conseguia sequer assegurar financeiramente as manutenções e inspeções do mesmo".

"No sentido de não deixar morrer a ideia, que era considerada por todos como meritória (e bem, como se veio a confirmar), a T&M/Lohad, FMNF e CP assumiram uma parceria para a realização do projeto, no qual a na qual a T&M/Lohad assumia a totalidade do investimento do mesmo. O sucesso dessa primeira edição levou a que as instituições quisessem continuar o projeto, e foi sugestão da Fundação que, para sublinhar ainda mais os seus interesses, que a T&M assumisse um conjunto de serviços de consultoria e comunicação (a área de especialidade da T&M), com entregáveis concretos e reconhecidos. Assim aconteceu", acrescentam em comunicado.

3. O que causou o fim do "The Presidential Train"?

O sucesso do projeto era tal que a LOHAD começou a desenvolver um segundo, focado também na ferrovia. "De nome 'The Vintage Train', pretendia recuperar carruagens Shindler abandonadas para fazer o primeiro comboio hotel em Portugal, com o aval e participação da CP, que chegou inclusive, depois de meses e dezenas de milhares de euros de investimento da empresa, a confirmar (por escrito e pela mão do conselho de administração) a venda das carruagens para esse efeito", refere a LOHAD em comunicado.

No entanto, a empresa divulga agora que, paralelamente ao sucesso do "The Presidential Train", "a relação entre os stakeholders do projecto foi pautada por uma cultura de abuso recorrente por parte das empresas ferroviárias", referem.

"A subida de preços em mais de 1200% ao longo do projeto; a incapacidade na gestão e falta de transparência pública no negócio que a própria Fundação desenhou contra a vontade expressa da LOHAD; a atribuição das carruagens Schindler para o projecto comboio hotel, no qual gastámos dezenas de milhares de euros em desenvolvimento, para depois nos serem retiradas pelo novo ministro com a justificação de 'necessitar delas para serviço regular'- apenas para depois as lançar como comboio turístico Miradouro, em clara concorrência desleal ao Presidential; e uma crescente cultura de prepotência (ilustrada em momentos como as quatro vezes em cinco anos em que a CP, contratada para operar o seu próprio comboio, o danificou em marcha, ainda assim enviando à LOHAD a contas das reparações feitas pela própria CP) parecem ter como único objectivo desencorajar o privado a continuar com o projeto, o que seria inexplicável pelo sucesso do mesmo, não fosse o momento atual tornar bem claras as motivações", salientam em comunicado.

A LOHAD manteve o interesse no projeto, "consciente da sua realidade — de que os custos de inspeção, manutenção, reparações e operações ferroviárias, num comboio histórico limitado na sua quilometragem e sem possibilidade de adaptações, tornavam-no praticamente inviável, razão pela qual até à T&M/LOHAD nenhum outro empresário se atreveu a apostar num projeto deste tipo", dado que acreditavam nos resultados a longo prazo, algo alcançado em 2023.

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"O projeto atingiu finalmente o lucro, razão pela qual a LOHAD fez questão de apresentar à Fundação um novo modelo de parceria, que não só partilhava o lucro com o Museu, como passava a ter um dia gratuito exclusivo para Ferroviários (...) Prova cabal da nossa aposta de longo prazo surge precisamente no ano de 2023, o último ano do nosso projeto, em fomos surpreendidos com uma conta de 60 mil euros relativos a 50% de uma manutenção de meia vida que permitiria ao comboio ser usado durante mais uma década, alimentando assim a nossa pretensão de continuação do projeto pelo menos durante mais cinco anos", referem.

Mas o caso mudou drasticamente de figura dado que, ao mesmo tempo que a LOHAD pretendia continuar com o projeto, outros planos já estavam em marcha. "Nessa altura, os nossos parceiros encontravam-se a preparar uma cópia do projeto com outros parceiros, iniciando um processo intencional de usurpação ilegal da ideia, marca e processos criados e afinados pelo promotor original e, ironicamente, aproveitando para tal o investimento que a LOHAD era forçada a fazer para garantir uma década de manutenção - investimento esse que, a partir dessa realização, nos recusámos a custear", completam em comunicado.

4. O que era o Comboio Presidencial?

Divulgado em novembro do ano passado, o Comboio Presidencial era uma nova abordagem ao projeto, com o chef Chakall a lidera a experiência gastronómica, para além de ser sócio desta nova versão. Apesar das claras semelhanças com o projeto anterior, Pedro Moreira, presidente da CP, salientava que esta nova versão proporcionava "uma experiência completamente diferente da anterior", escrevia a "Time Out".

"O que é facto é que, apesar da troca dos melhores chefs do País por uma celebridade sem credibilidade gastronómica, o projeto novo mantinha o mesmo conceito, nome, preço, trajecto e know how (para o qual os novos intervenientes contactaram vários dos fornecedores do projeto anterior, know how esse propriedade da LOHAD). Mais grave ainda é que para tentar atingir os níveis de sucesso que o próprio presidente da CP estabeleceu publicamente, a CP apostou então numa estratégia clara e premeditada de confundibilidade, ludibriando o público nacional e internacional para depois entregar um produto medíocre que naturalmente danificou o bom nome do empresário Gonçalo Castel-Branco e da LOHAD, empresa reconhecida internacionalmente pelos seus produtos de luxo de qualidade superior", salienta a LOHAD em comunicado.

A empresa de Gonçalo Castel-Branco, na comunicação enviada esta quarta-feira, 31 de julho, anexa fotografias e materiais promocionais onde são visíveis as semelhanças, com o intuito de confundir o público.

Vejas as imagens cedidas pela LOHAD, que comprovam as semelhanças.

"As provas incluídas no processo são várias e vão desde a criação de um site cópia do original, em que menus, textos e até fotos são reproduzidas em detalhe para confundir o visitante, à utilização repetida, quer por parte dos próprios quer dos seus convidados, da marca, logotipo e tags digitais do projecto anterior, chegando até à partilha de posts promocionais da própria CP em que promoviam o seu projecto não só usando fotos do projeto anterior, como fotos do próprio empresário Gonçalo Castel-Branco", referem, salientando que a empresa recebeu, e recebe até à data, "contatos de clientes e parceiros que se demonstram confusos sobre se o projeto agora em curso é o mesmo, ou pior, boquiabertos com a falta de qualidade desta nova versão, complemente contrária aos valores e critérios que tanto demorámos a estabelecer".

5. A nova versão teve sucesso?

No evento de apresentação do novo projeto, a parceria entre a CP, a Fundação Museu Nacional Ferroviário e Chakall, o presidente da CP, Pedro Moreira, não adiantou o montante do investimento total, mas avançou que, para garantir a rentabilidade do projeto, o mesmo teria de ter uma lotação próxima de 70% (o comboio tem 72 lugares), sendo que este valor poderia ser ajustado em função das reservas e do tipo de ocupantes, como famílias, amigos ou empresas.

De acordo com a LOHAD, "tendo a CP decidido operar a venda de bilhetes na sua plataforma pública, que permitia a qualquer momento consultar os lugares vagos em cada sessão, foi totalmente público o falhanço total do projeto, falhanço esse que obrigou a cancelamento de mais de metade das viagens".

A empresa responsável por conceitos de sucesso como o Chefs on Fire reforça ainda, no mesmo comunicado, que mesmo face à "transparência (e previsibilidade) desse falhanço, a CP mais uma vez demonstrou a sua má fé e falta de honestidade declarando o seu presidente  que os cancelamentos de viagens foram relativos a 'condições climatéricas' (apesar de a LOHAD ter operado o Presidential Train com todos os tipos de clima e sempre com sucesso), e concluindo ainda que o projeto foi 'um sucesso' e que, afinal, a lotação mínima viável era de '55%'". Mais: a LOHAD acusa a CP de mentir quando declara que atingiram uma ocupação de 65% nas primeiras viagens, "segundo as palavras do próprio presidente da CP no lançamento do projeto".

Mesmo assim, e tendo em conta que este falhanço, a ser comprovado, pode ter resultado num buraco financeiro de centenas de milhares de euros de dinheiros públicos, a CP anunciou a continuação do projeto por mais três épocas.

6. O que pretende a LOHAD?

Para além de uma indemnização de 2 milhões de euros pelos prejuízos reputacionais à empresa e à credibilidade do CEO, como uma compensação dos lucros cessantes devido à usurpação ilegal e destruição do projecto “The Presidential Train” pela CP, a Fundação Museu Nacional Ferroviário e o empresário Eduardo Lopes, a LOHAD pretende que seja provado em tribunal que existiu uma violação do direito de propriedade industrial e concorrência desleal, bem como responsabilidade pré-contratual por violação de deveres comerciais.