É um dos rostos mais conhecidos do panorama nacional e uma figura que estamos habituados a ver na televisão portuguesa há 27 anos. Mas Catarina Furtado, 46 anos, é muito mais do que a mulher bonita que nos entra em casa com vestidos deslumbrantes na apresentação de uma qualquer gala ou programa.
Mãe de de dois filhos, apresentadora e atriz, combina o entretenimento com a produção de séries documentais como o "Príncipes do Nada", exibido na RTP. É ainda Embaixadora da Boa Vontade do Fundo das Nações Unidas para a População (UNFPA), papel que desempenha há 19 anos, e diretora da associação Corações com Coroa, fundada em 2012, projeto esse que a deixa "mesmo orgulhosa".
Mas Catarina também escreve e é aos jovens que dedica o seu terceiro livro, “Adolescer é fácil, #só que não”, editado pela Porto Editora, e apresentado oficialmente no dia 16 de maio no Liceu Passos Manuel, em Lisboa, onde a apresentadora da RTP andou do 7º ao 12º ano.
Com dias sempre cheios, Catarina Furtado encontrou nas madrugadas o seu espaço para escrever este livro. "Foi uma aventura deliciosa, mas com muito, muito trabalho", conta à MAGG nesta entrevista, onde fala desta "ferramenta", como gosta de chamar a este projeto literário, mas também de bullying, das desigualdades sociais e dos números de violência em Portugal.
“Adolescer é fácil, #só que não” é o seu terceiro livro, mas o primeiro dedicado a este público, os adolescentes.
Sim, diria que o primeiro, “Os Meus Olhos de Afonso”, foi mesmo para as crianças mais pequenas, foi um livro cujos lucros reverteram para a Fundação do Gil e tinha histórias para crianças. O segundo, “O Que Vejo e Não Esqueço”, teve a ver com a minha partilha, enquanto voluntária e cidadã, de tudo aquilo que tenho vivido enquanto embaixadora da Boa Vontade do Fundo das Nações Unidas para a População e também como presidente e fundadora da Corações com Coroa. E também tem muitas histórias das reportagens que faço dos “Príncipes do Nada”.
E agora este, cujo alvo está muito bem identificado. Foi feito para jovens, eu diria que a partir dos 10 anos. Neste livro, trago muitos relatos de jovens de diferentes idades, até porque os sintomas da adolescência podem dar-se em diferentes fases deste diferente período — a Organização Mundial da Saúde define a adolescência entre os 10 e os 15, as Nações Unidas dizem que é entre os 10 e os 24 anos.
O que é que a fez escrever este livro?
O convite veio da Porto Editora, que achou que eu tinha uma espécie de armazenamento de experiências junto dos jovens. E a verdade é que quando eles me convidaram comecei por recusar, por estar já envolvida em tanta coisa. Mas o assunto ficou na minha cabeça e comecei a pensar que se calhar fazia mesmo algum sentido, que de facto não era mal pensado. Eu tenho 19 anos de experiência enquanto embaixadora, já viajei por muitos países diferentes uns dos outros, sobretudo de expressão portuguesa e em desenvolvimento. Também uma das temáticas que o Fundo das Nações Unidas para as Populações aborda são as temáticas da juventude, portanto tenho essa recolha de material, e a Corações com Coroa tem vários projetos com jovens.
Todas estas experiências, a juntar ao facto de que nunca a humanidade teve tantos jovens — temos a maior geração de jovens de sempre desde que existimos — , fez-me pensar que era um projeto que devia agarrar. E também vou ser sincera, acaba por ser uma espécie de trabalho de casa que já estou a fazer para os meus filhos que têm 11 e 12 anos. De alguma forma, quero contribuir para que os jovens se sintam melhor, com algumas das dicas que escrevo aqui, com algumas das relativizações, para que percebam que são uns privilegiados e que entendam que nem tudo é um drama. Mas também é para os pais.
Então também é dirigido aos adultos?
Sim, é para os educadores. É muito giro porque eu já tenho mensagens de professores a falar sobre o livro e a agradecerem, e eu é que fico muito agradecida. Isto quer dizer que o livro é uma ferramenta que pode, como era o meu sonho, encurtar a generation gap, e fico mesmo feliz. Desde que o livro saiu, já recebi imensas mensagens e estou mesmo muito contente. Também tenho que dizer que a maior parte foram de pais e professores. Eu sabia que os primeiros a contactar-me não seriam os adolescentes, mas acho que tem a ver com um trajeto que o livro vai ter que fazer, da livraria para a mesinha de cabeceira dos pais e depois para a dos filhos — mas vai lá chegar.
Mais do que um livro, é quase um guia prático para lidar com esta fase da vida?
É engraçado, Catarina, porque a Porto Editora quando me convidou, convidou-me para fazer precisamente um guia e eu disse que não tinha autoridade para o fazer. Disse-lhes que não era isso que queria e desafiei-os a fazer outra coisa, uma espécie de mix disso tudo. Ou seja, tem dicas, tem dedos na ferida, tem "sabias que", tem muita informação e muitas estatísticas, mas misturadas com muita coisa. O Ricardo Araújo Pereira, no prefácio, diz isso mesmo, que mistura informação com inspiração, mas num tom que chega aos jovens. Mas é importante também falar para os pais, para que ambos consigam comunicar.
Essa comunicação é vital?
De facto, as redes sociais, hoje em dia, têm coisas maravilhosas, mas também têm a capacidade de retirar tempo, que é uma coisa que não há, e conseguem retirar ainda mais tempo aos pais e aos filhos, bem como a capacidade de comunicação. E isto claro que afasta, porque hoje vemos pais a almoçarem ou a jantarem de telemóvel na mão, não são só os jovens. Há aqui uma série de coisas que temos de aprender a mudar uns com os outros, e sobretudo não criar uma cristalização de certos assuntos, onde não se vai lá escarafunchar porque aquilo é capaz de ser chato e desconfortável. Não, há que falar das questões da sexualidade, dos nossos sonhos, da mente, do corpo, dos afetos. Os afetos têm de ser falados para poderem ser bem exercidos.
"Não há nenhuma filha ou filho do mundo, acho eu, que conte exatamente tudo ao pai ou à mãe"
Já falámos que foi o Ricardo Araújo Pereira que escreveu o prefácio, onde diz que a Catarina escreve quase como se fosse uma amiga dos adolescentes. É assim que quer que eles a vejam?
Ele até fala que eu sou uma espécie de irmã mais velha, não é? Mas essa é uma boa pergunta porque, na verdade, há quem afirme que os pais não devem ser amigos dos filhos, há quem não concorde, e existem ainda pais que dizem que querem ser os melhores amigos dos seus filhos e que estes lhe contem tudo.
É mentira. Não há nenhuma filha ou filho do mundo, acho eu, que conte exatamente tudo ao pai ou à mãe. Há aqueles que contam mais do que outros, há quem não conte nada e ainda aqueles que contam quase tudo — mas tudo mesmo, não acredito. Eu tive uma relação extraordinária com os meus pais, mas atenção: não contei tudo. Há coisas que não se contam, e eu não sou a melhor amiga dos meus filhos.
Nem quer?
Não. Quero ser uma perfeita confidente. Quero ser, para eles, aquela pessoa que, se eles quiserem falar, estão confortáveis para o fazer. Porque o problema é esse: muitas vezes, os pais querem o melhor para os filhos, mas não conseguem ultrapassar algumas barreiras que vêm do seu passado, da sua educação, e não conseguem criar terreno para que os miúdos se sintam à vontade. E atenção que isto não tem nada a ver com amor.
A Catarina fala frequentemente para imensos jovens, principalmente em escolas. Recorda-se qual foi a pergunta mais marcante feita por um desses jovens?
De cor não sei, mas partilho muitas no livro, desde confidências a desabafos. Mas posso-lhe dizer que os temas mais transversais discutidos com os jovens têm a ver com questões sobre a orientação sexual e com as violências em geral, coisas que até podem não saber identificar, mas que sentem que algo não está bem.
Também fala muito de bullying.
Sim, eu falo muito sobre isso, especialmente nesta faixa etária dos adolescentes. Mas o bullying também existe nos adultos e é importante isso saber-se. E se for trabalhado previamente, certamente que os próximos adultos serão pessoas melhor preparadas, mais atentas.
É engraçado porque agora estava-me a lembrar que ontem a minha enteada mandou-me uma frase muito gira. É uma frase do Howard Zinn, que diz: “E se de facto agirmos, ainda que os nossos atos nos pareçam insignificantes, não teremos de aguardar por um grande futuro utópico. O futuro é uma sucessão infinita de presentes e viver no presente da forma que achamos mais correta, desafiando toda a maldade que nos rodeia, é por si só uma maravilhosa vitória”. Eu encaro verdadeiramente a vida assim.
No livro, recorda um episódio onde lhe perguntaram a sua opinião sobre a despenalização do aborto numa escola em Braga, cidade muito católica, e partilhou que votou a favor nos referendos sobre o tema. Nunca teve medo de dar as suas opiniões sobre estes temas, num País ainda algo conservador como o nosso?
Tive imenso medo Catarina, tenho que assumir isso. Comecei a fazer televisão com 19 anos e queria muito ser aceite, que é o que todas as pessoas e todos os adolescentes querem. E pronto, como queria ser aceite, não queria ferir suscetibilidades.
Não queria enganar ninguém, no sentido em que queria mostrar aquilo que eu era, mas eu ainda estava em construção. E sendo assim, estava sempre um bocadinho de pé atrás, e pensava: “Se calhar não vão gostar de mim se eu disser exatamente aquilo que penso”. No entanto, o que é que eu fui fazendo? Fui guardando as coisas que sabia serem mais controversas para mim, e aprendi a ter jogo de cintura e diplomacia — e ainda bem que foi assim, no início.
Mas apesar de, em alguns momentos, não dizer aquilo que pensava, também nunca disse aquilo que não pensava. Até que chegou a altura de o dizer, na época do referendo do aborto. Falo disso no livro, e fui muito criticada, mas vi muita realidade, muita injustiça com as raparigas e com as mulheres. Mulheres presas por terem feito um aborto, quando nenhuma mulher que eu conheci neste mundo, até agora, gostou de fazer um aborto — e já conheci muitas. Há inclusive mulheres que morrem por terem feito o procedimento em condições miseráveis e indignas por ser proibido. Eu não sou, de todo, a favor do aborto, mas não consigo imaginar uma mulher que, por condições adversas da vida dela, seja forçada a fazê-lo, e seja ainda condenada. E isto é controverso porque eu sou católica.
Por falar neste tema, um assunto que tem marcado a atualidade foi a proibição do aborto no estado do Alabama, Estados Unidos, a qualquer momento da gestação, e mesmo em casos de violação. Qual é a sua opinião sobre isto?
Isso é tão preocupante. E dava pano para mangas, não é? Em alguns aspetos é muito preocupante, algumas coisas que estão a acontecer em relação à promoção dos direitos humanos. Acho que em algumas coisas estamos a regredir, acho que muito tem a ver necessariamente com medo, com desinformação, com desconfiança.
E aqui quando digo desinformação é mesmo desinformação, é não haver informação cuidada, muitas vezes, que permita um melhor conhecimento das realidades e das consequências. Acho que os populismos estão a ser dramáticos, e a crescer. O que me leva a entender que não se pode baixar os braços, não se pode desistir e a atuação que mais certeira será junto daquela população que ainda está em fase de barro, que são os adolescentes.
É muito engraçado perguntar-me isso porque um dos argumentos que eu arranjei para mim própria para escrever o livro, no meio de tantas coisas na minha vida, foi ter uma ferramenta. O Ricardo Araújo Pereira, na apresentação do livro, falou que havia generosidade neste projeto. Mas o livro também é feito por convicta preocupação. Eu tenho que tocar nestes jovens para que o futuro seja bastante mais justo e equilibrado, tolerante, onde os direitos humanos sejam promovidos. O mundo está tão terrível que o único escape é sermos empáticos. A empatia é a única salvação do mundo.
"Há políticos cuja ambição é fazer apenas politiquice, e há políticos que têm a verdadeira vocação"
Escreve no livro que lhe faz muita impressão quando ouve os jovens dizer que não ligam à política. Acha que os adolescentes portugueses estão muito alheados desta esfera?
Custa-me muito que se diga que os políticos são todos iguais. É uma frase que nos desresponsabiliza totalmente. Então, quem são os políticos? São uns E.T.’s que vêm lá de cima de um planeta qualquer e que aterram aqui e são todos iguais? Os políticos são as pessoas, por isso não podem ser todos iguais, porque as pessoas não são todas iguais. Há políticos cuja ambição é fazer apenas politiquice, e há políticos que têm a verdadeira vocação, vontade e convicção de que vão mudar alguma coisa, e que vão deixar uma marca dentro das áreas que eles acreditam.
Por isso, cada vez que vou a uma palestra, repito isto, que não são todos iguais. Não vou fazer aqui um branqueamento aos políticos: eu própria tenho alturas, como todos nós, que penso “como é que é possível?”. Mas também temos tido outros, ao longo dos anos, que marcam uma diferença. Quero muito que os jovens percebam o que faz um bom político, quais são as características, no meu entender, de um bom e de um mau político. E que sejam eles um dia a ocupar o lugar de um ministro, de um primeiro-ministro, e quem me dera a mim que um dia ainda possa ver uma presidente da República mulher. Quero inspirá-los, quero incentivá-los a perceber que a política precisa de pessoas sérias e que esta próxima geração é a deles. Precisamos deles como pão para a boca.
Acha que os adolescentes portugueses têm noção de como são privilegiados, tendo em conta tudo o que se passa no mundo?
Não, acho que de uma maneira geral não têm. Mas, também de uma maneira geral, acho que também não têm que ter, porque as dores são deles. Quando digo a um filho meu que está a fazer um disparate, que não está a valorizar qualquer coisa, porque acabei de vir de um país em desenvolvimento ou mesmo de um bairro social em Portugal, eles dizem-me “está bem, mas”. Há sempre aqui um mas — e são os meus filhos, que posso garantir que têm muita noção do mundo que os rodeia.
O que eu acho, e essa foi a minha estratégia, é que eles têm de partir para a comparação e para a relativização para que cheguem à valorização daquilo que têm e do privilégio que é estar numa sociedade onde não há, por exemplo, censura ou onde as meninas podem ir à escola. Porque há milhares e milhares de meninas que não vão à escola porque têm período, mas não há pensos higiénicos — é uma coisa insana.
Também relata no livro uma viagem que fez com os seus dois filhos ao Senegal, onde tiveram contacto com uma realidade muito diferente. Acha que todos os jovens beneficiariam de perceber mais e melhor as diferentes realidades que existem no mundo?
Vou ser muito franca: acho que há coisas que deveriam estar no currículo da escola. Mesmo. Francamente, com toda a imodéstia, digo que o currículo escolar devia abranger, de uma forma muito mais atual, estas questões que têm a ver com a composição daquilo que será a identidade das pessoas. Não podemos ensinar história e geografia sem ensinar que, naqueles países que eles estão a estudar, há uma série de desigualdades sociais, onde os direitos humanos são violados todos os dias. Eu encaro o conhecimento de uma forma muito mais interligada.
O tema da violência no namoro é muito abordado por si, também aqui neste livro.
As estatísticas em Portugal envergonham-nos [56% dos jovens portugueses já sofreram, pelo menos, um ato de violência no namoro]. São os próprios jovens, na primeira pessoa, que dizem que acham normal — por isso é que a letra que eu escrevi, com a música do Tiago Bettencourt e com a voz da Daniela Melchior, diz “O que é ser normal? Apontar o dedo ao mal”. Eles acham que é normal controlar quando se é namorado ou namorada, acham que é normal ter ciúmes doentios porque são propriedade do outro — mas as pessoas não são propriedade de ninguém. Estes são logo conceitos que, à partida, estão errados ou mal-entendidos, que se têm de baralhar e voltar a distribuir com o sentido certo.
As redes sociais intensificam isso e dá uma carga ainda mais dramática, potenciam a chantagem, o controle, e a violência no namoro é algo que vai, verdadeiramente, aumentar uma das nossas maiores vergonhas, que é a violência doméstica. Se nós não fizermos já um atalho, daqui a uns anos vamos ter números superiores a 15 mulheres mortas em meses, vamos mesmo.
As raparigas precisam de entender que não é por já terem feito sexo com o namorado que têm de o fazer sempre, se não o desejarem? Que mesmo que seja o namorado, sexo sem consentimento é violação?
Não é não. E o não tem um poder transformador. Isto para mim é muito comovente porque já falei com muitas meninas que não sabiam sequer que podiam dizer não. Eu dou muitas vezes o meu exemplo, em situações muito particulares, em que o não foi libertador, foi transformador. E foi ao não que eu me agarrei para poder um dia dizer sim.
Aquilo que eu tento é apetrechar as raparigas, valorizando-as e, no final do dia, que entendam que estamos cá, e que por mais que andem por aí a dizer que não queremos saber umas das outras, eu quero muito saber de vocês, mulheres, e acredito muito em vocês, mulheres. Sendo que, para atingirmos alguma igualdade, temos de ter os nossos homens ao lado, têm que ser eles a quererem também, porque eles fazem parte dos decisores — e se estão a decidir, têm de decidir que as mulheres podem ter as mesmas oportunidades.
Hoje, na apresentação do livro, o Diogo Faro falou do conceito de feminista, e este é um conceito onde há muita contra-informação: as pessoas pensam que feminista é o contrário de machista, mas não é. Machista tem uma implicação negativa e prejudicial à vida da mulher. Um feminista ou uma feminista é aquele que ambiciona a igualdade de oportunidades, mais nada. É tão simples. Não é mais nada, não há cá sutiãs queimados, é mentira isso tudo. Apoiar uma mulher é apoiar uma família, é apoiar uma comunidade, é apoiar um país. Todos ficamos a ganhar com isto.