Parece que não mas o mundo continua a girar. Se for à padaria, há pão. Se for à farmácia, há Ben-u-ron (uma embalagem por pessoa, mas há). Se for ao supermercado, há bananas. Se partir o queixo, há um enfermeiro para lhe dar pontos. Se cometer um crime, algum polícia o levará preso.

O mundo continua a girar, os ritmos é que são diferentes. Quem fica em casa vê o relógio andar devagar até ser outro dia. Já quem está na rua, o relógio corre para o fim do dia. Mas na maioria dos casos, ninguém está na rua porque quer. O padeiro que faz o pão, o farmacêutico que lhe entrega o Ben-u-ron, o empregado de supermercado que recebe o dinheiro das bananas, o enfermeiro que lhe dá os pontos e o polícia que — no limite —o levam preso, só queriam era estar em casa. Mas não estão porque, ainda que a um ritmo diferente, o mundo tem que girar.

Podia dizer que a MAGG saiu à rua para falar com quem dela ainda não saiu, mas não. Todas as conversas aconteceram por telefone, porque somos cumpridores nisto do teletrabalho. Falámos com enfermeiros, médicos, empregados de supermercados, farmacêuticos, assistentes de bordo e polícias. Estas são profissões consideradas de primeira necessidade, ainda que quem esteja por trás de cada uma delas não seja um super herói. Ataques de pânico, máscaras que aceleram a respiração, luvas que dão alergias, horas e horas em pé. Mas, ao mesmo tempo, um dever cívico que sentem que tem que ser cumprido. É como diz o comissário Sérgio Veloso, um dos entrevistados: Estou cá para servir o meu País e é isso que o País espera de mim"

Iolanda Rosendo, 33 anos, gerente de um supermercado.
"As pessoas queixam-se do isolamento, mas eu dava tudo para estar em casa"

Logo no início de Março, Iolanda e a família, donos de um supermercado em Paredes, notaram uma afluência à loja acima do normal. "Na altura, ainda longe de saber de que forma isto ia escalar, associamos a ser início do mês. Mas a partir de segunda-feira, dia 9, percebeu que algo de diferente se passava. "As pessoas começaram a comprar por atacado. Eram quilos e quilos de arroz e, de facto, muito papel higiénico", conta, ainda que, acredita, as pessoas levassem tudo isso não com medo do vírus, mas com medo do fim do stock dos supermercados.

E, ainda que tivessem avisado que os produtos não acabariam, a verdade e que acabaram ou, numa hipótese também menos feliz, aumentaram de preço. "E as pessoas não percebem que não somos nós que ditamos os valores, são os fornecedores. Há produtos em que a nossa margem é muito baixa, para não prejudicar ainda mais o cliente".

Durante a semana, as vendas intensificaram-se e o caos também. "Era difícil fazer as pessoas esperar a sua vez e houve até quem fizesse birra por ter que ficar cá fora", conta. E, de facto, aquele primeiro sábado de alerta, dia 14 de março, as vendas dispararam. "Vendemos mais do que em qualquer Natal". E estamos a falar de uma casa aberta há 28 anos.

Reforçaram a equipa, que trabalha das 9h às 12 horas e das 14h às 19h30. "Mas ainda ontem cheguei eram quase 21 horas", garante. Isto porque, sempre que o dia acaba, depara-se com prateleiras vazias a precisar de reposição. "Não podemos deixar que falhe o essencial às pessoas", refere, principalmente agora que percebeu que são um sítio de confiança. "Temos muitos clientes novos e muitos que preferem agora comprar local do que ir a grandes superfícies, principalmente por questões de segurança".

A parte do lucro é boa, não há como negar isso, mas Iolanda nem sequer consegue ouvir as pessoas a queixarem-se de estar em casa. "As pessoas queixam-se do isolamento, mas eu dava tudo para estar em casa. É muito difícil trabalhar com medo".

Iolanda tenta tapar o medo com uma bata, umas luvas e uma máscara que usa para trabalhar, e com os banhos diários e as desinfeções que faz sempre que chega a casa, onde está o marido e o filho de dois anos. "O meu maior medo é trazer o vírus para casa e, por isso, tenho todos os cuidados". O chegar a casa é difícil e envolve uma grande logística de higiene, mas o mais difícil, admite é mesmo sair. "Ainda hoje acordei a pensar: 'Não acredito que tenho que aguentar mais um dia assim'".

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Marlene Costa, 34 anos, enfermeira
"Acordei a meio da noite a chorar descontroladamente e a pensar 'Isto vai ser uma catástrofe"

Não apanhámos Marlene num dia bom. Tinha acabado de saber que, em Abril, vai ter que passar 15 dias dentro da unidade de cuidados continuados na qual trabalha, para evitar a contaminação dos que lá estão internados. Isto depois de três semanas durante as quais, ainda que em liberdade, se tenha sentido mais sufocada do que nunca.

"Todos os meus passos são pensados ao pormenor", conta à MAGG. Senão veja. Tem um calçado para estar no carro, outro para ir do carro para casa, outro para andar em casa e outro para estar dentro do hospital. Em casa, tem uma casa de banho só para si, onde delimitou o espaço onde deita a roupa do dia, que vai imediatamente para lavar a altas temperaturas. Come à mesa com os pais mas deixa sempre uma distância, e ninguém toca na sua loiça nem ela entra nas tarefas domésticas habituais. Antes de lavar as mãos ao chegar a casa adopta "a posição de cirurgião", como descreve, que é aquela em que as mãos andam junto ao corpo sem tocar em nada.

Ainda assim, e com todos os cuidados, vive obcecada com a hipótese de contagiar com quem se cruza. "O gel e o álcool desinfetam-me por fora, mas e as gotículas que saem do nosso organismo a falar, a comer e a tossir?", questiona, ainda que saiba que a resposta não vai chegar.

Ainda que não esteja na linha da frente, fala diariamente com colegas que trabalham em urgências, o que a ajuda a perceber a realidade e a ter noção de que não está sozinha neste sentimento de impotência. Ainda assim, a semana passada passou uma noite em claro a chorar, depois de ter tido aquilo que acredita ter sido um ataque de pânico. "Por uns segundos, esqueci-me do vírus e abracei os meus pais como já não fazia há semanas. No meio disto tudo eu só pedia para eu ficar infetada, mas que mais ninguém à minha volta ficasse", conta à MAGG.

No trabalho, depois da dificuldade que foi fazer entender às famílias que não podiam visitar os familiares internados, ajuda-os a colmatar as saudades com videochamadas. "Eles adoram", conta. E, ainda que apenas ligados ao exterior pela televisão, estão atentos ao que se passa. "Ainda ontem uma senhora de 97 anos me dizia: "Já viu que anda este vírus na rua, vocês enfermeiros com todos os cuidados, e esta gente continua a ir para a rua? Não há direito".

Inês Rodrigues, 27 anos, farmacêutica
"No fim de oito horas com a máscara posta, sinto que corri a maratona"

Inês está frustrada. Não é só pelas oito horas que passa de pé sem um segundo para se sentar, nem pela máscara que lhe tira o fôlego. Inês está frustrada porque não vê o trabalho do seu setor ser valorizado como esperava. "Toda a gente fala do trabalho dos médicos e enfermeiros que, atenção, é de louvar. Mas e nós? Nós que estamos na linha da frente e que fazemos a primeira triagem? É que os pacientes deixaram de ir às urgências mas nunca deixaram de ir às farmácias", conta à MAGG.

Sem horários especiais para ir ao supermercado nem sequer pequenos-almoços grátis na Padaria Portuguesa — "tentamos ir no outro dia mas, lá está, era só para médicos ou enfermeiros" — Inês  lida todos os dias com o dobro dos utentes que a farmácia na qual trabalha, em Carnaxide, costuma ter.

Usa luvas e máscara todos os dias e já sente na pele, literalmente, o efeito desta prática. "Tenho as mãos quase em sangue de tanto lavar e a hiperventilação que a máscara provoca, faz com que acabe o dia muito cansada", garante, "é como se tivesse corrido a maratona". E, de facto, uma colega de Inês, que usa um smartwatch que mede pulsações e calorias gastas, contou-lhe que nos últimos dias é ver esses números disparar.

Sem números oficiais, dispara com estatísticas: "Sei que tenho 80% de hipóteses de ser infetada". É que por muitas luvas que use e lhes esteja sempre a passar desinfetante, os clientes continuam a pagar com dinheiro e a trazer receitas na mão. Além disso, lidam também com encomendas vindas do exterior e com fornecedores, alguns deles já contaminados.

Fica na farmácia o tempo que for preciso para que ninguém fique sem atendimento e, ainda assim, tem que lidar com quem não percebe que a culpa não está nas farmácias. "As pessoas estão frustradas e deitam essa frustração em cima de nós", garante. Principalmente quando veem os preços das máscaras a aumentar. "São os fornecedores que sobem os valores. Nós estamos a ter zero margem de lucro. Ainda assim, a culpa cai sobre nós".

Sara, 32 anos, médica
"Eu entro no hospital e nunca sei a que horas vou sair"

Sara atende o telefone ao meio-dia, depois de 15 horas no hospital, num turno que já deixou de ter prazos. "Eu entro no hospital e nunca sei a que horas vou sair", conta à MAGG. É assim há quase três semanas e, ainda que trabalhe num hospital no Alentejo, uma das zonas do país com menos casos confirmados, sabe que o pior ainda está para vir. "Tenho a certeza que vamos ter infetados, e não falta muito para que isso aconteça".

Até lá, há que preparar todo o hospital e adaptar-se às estratégias que, naturalmente, se alteram consoante a realidade. São novos circuitos de entrada do doente e novas abordagens do doente na urgência que todos os profissionais devem saber de cor, para evitar falhas. A isto juntar ainda a escassez de material. "Ainda que os doentes fiquem sob vigilância ativa, não há kits para testar toda a gente e temos que racionar o material — máscaras, por exemplo —, para que não falhem no futuro", explica.

Além disso, e tal como faz questão de lembrar, "as pessoas não deixam de ter AVC, ataques cardíacos nem deixam de ter apendicites". É preciso ter espaço para tratar todas as áreas, acrescentando estruturas físicas e humanas ligadas ao COVID-19. "Tudo isto com o mesmo número de profissionais, que só ficam de quarentena se tiverem sintomas", situação que para a médica é polémica. A direção-geral de Saúde anunciou que, atualmente, para um profissional de saúde ir para casa, não basta estar em contacto com um infetado, tem que apresentar sintomas. "Temos que ter equipamento de proteção individual, caso contrário, vai acontecer o que já aconteceu em Itália: serviços e hospitais com altas taxas de contaminação".

O clima é de tensão, não só pelo facto de trabalharem num ambiente de risco, mas porque sabem que podem levar esse risco para casa. Sara é do Porto e sabe que nos próximos quatro meses não vai fazer qualquer viagem para ver pais, amigos e namorado, e também já os proibiu de rumarem a sul. "Por um lado, tenho sorte de viver sozinha. Tenho colegas que dormem em quartos separados dos maridos e não abraçam os filhos há semanas", refere.

O apoio psicológico já está a ser dado a doentes e médicos e Sara garante que esse vai ser um recurso precioso. "Estou no hospital o mais que posso, venho a casa para ver notícias, estudar e dormir um bocadinho, o que nunca acontece por mais do que três horas. Depois é voltar ao trabalho", garante. Por outro lado, garante que nunca viu as equipas médicas tão unidas como agora. Deixou de haver internistas, pneumologistas, enfermeiros ou auxiliares. Somos todos médicos, enfermeiros e auxiliares", salienta. Isto porque, o mais importante é minimizar o contacto com o doente e também o gasto de recursos. "Se o médico vai ver o doente, dá-lhe a medicação mas também pode trazer o lixo, se o enfermeiro vai ver os sinais vitais, também lhe vai dar de comer".

Sara fala rápido, porque o corpo está em alerta e não permite descansos. "Isto é muito pior do que as pessoas pensam, e não estou a dramatizar". Dá um exemplo: "O vírus fica horas num fio de cabelo. Basta aquele gesto automático de pôr o cabelo atrás da orelha e depois coçar o olho para se ficar infetado". E se ficar infetado, pode tudo correr bem e o doente sair sem sequelas, como lembra Sara, mas pode tudo correr mal. "E quando corre mal, corre mesmo muito mal".

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Raquel, 23 anos, assistente bordo
"Estou apavorada com a hipótese de ser chamada para voar"

Ainda que muito reduzidos, os voos não param. Raquel não foi chamada nos últimos dias, mas ainda na semana passada voou para Paris e Frankfurt. E cada vez que o faz, é a medo.

"Vejo pessoas a tossirem para a mão ou a usarem máscara mas a tirá-la para falar comigo", descreve à MAGG. E quando todos pedem mais de dois metros de distância, Raquel sabe que num avião isso é impossível. "Dou por mim a dar passos para trás, discretamente, sempre que alguém se dirige a mim".

A logística agora obriga a desinfetação antes de entrar no avião, calçar luvas e desinfetá-las também várias vezes ao longo do voo. "Basta um passageiro pedir um copo de água para ter que desinfetar as mãos antes e depois".

Ao chegar a casa, e por viver com outros assistentes de bordo, sabe que o risco continua elevado. Ainda assim, não toca em nada até se desinfetar, desinfetar o casaco, pôr a roupa a lavar, tomar banho e lavar o cabelo. "Eu fui das que não ligou muito no inicio, que desvalorizou todo o alarme, mas quando me apercebi da dimensão de tudo isto, passei a tomar todas as precauções".

A viver a mais de 400 quilómetros da família, sabe que não os vai ver nos próximos meses. Não só porque o pai faz parte de um grupo de risco, mas porque isso implicava enfiar-se num autocarro, comboio ou, claro, num avião. E esta é uma experiência que quer evitar ao máximo, ainda que esteja à espera do telefonema que dite a próxima viagem. "Estou apavorada com a hipótese de ser chamada para voar", admite.

Sérgio Soares, 37 anos, comissário da PSP
"Fizemos um juramento. Se for preciso, damos a vida pelo nosso País"

Das poucas vezes que sai à rua — esperamos nós que sejam poucas — deve ter reparado que se vêm muitos mais policias nas ruas. Não é por acaso. Houve mesmo um reforço no patrulhamento e o comissário Sérgio Soares é um dos que está no grupo dos que alertam a população para o risco de contaminação.

Dia sim, dia não, — é desta forma que a polícia se organizou — sai à rua para avisar a população que o lugar mais seguro é em casa. Ainda que a grande maioria acate as recomendações e até agradeça, há sempre quem não queira aceitar as novas regras. "Principalmente os estabelecimentos que continuam a vender álcool e os clientes que continuam a consumi-lo", explica à MAGG.

O comissário faz parte da terceira divisão de Lisboa, responsável pelo policiamento nas freguesias de Campolide, São Domingos de Benfica, Santa Clara, Lumiar e Carnide. "É um terço da cidade", refere.

Nessas zonas, o trabalho da polícia é direcionado a quatro grupos: os cidadãos em confinamento obrigatório, os cidadãos com mais de 75 anos ou com doença crónica, os cidadãos com dever de recolhimento mas que sai apenas para básico e o encerramento de estabelecimentos que não comercializem bens essenciais.

Sempre com dois metros de distância, mandam parar carros e pessoas para que justifiquem a saída à rua e aproveitam sempre para reforçar a ideia de que as saídas devem ser limitadas. "Tentamos sempre ser pedagógicos", refere, o que já não evitou algumas multas.

Mas o pior para o comissário não é o trabalho nas ruas. É, sim, a chegada a casa. "Há duas semanas que não abraço os meus filhos", conta. Agora, o cumprimento é feito com o cotovelo, "e eles até acham piada".

Casado com uma enfermeira, sabe que juntam debaixo do mesmo teto um sem número de riscos e, por isso, todo o cuidado é pouco. "Deixo a farda no gabinete e, antes de sair, lavo as mãos. Ao chegar a casa deixo os sapatos à entrada, lavo-me novamente e, ainda assim, evito qualquer contacto mais próximo", explica. No trabalho, também deixaram de se cumprimentar e, antes de entrarem ao serviço, a primeira tarefa passa por limpar com lixívia tudo o que no carro possa ser superfície de contágio: volante, manete das mudanças e porta-luvas, por exemplo.

Apesar do esforço, só equaciona ficar em casa caso se for necessário ficar com os filhos. "Caso contrário, estarei na rua. Estou cá para servir o meu País e é isso que o País espera de mim", refere. E lembra: "Fizemos um juramento. Se for preciso, damos a vida pelo nosso País."