Quer seja no campo de batalha em "Mosquito" ou de frente para o passado colonizador de Portugal em "Equador", o ator Filipe Duarte marcou a sua carreira pela consistência de criar personagens que não fossem unidimensionais. Que, tal como a vida, tivessem camadas: um lado sereno e um lado caótico, um lado bom e o outro lado mau. Que agarrassem o espectador ao ecrã e que deixassem, em que o viu representar, a sensação de que se esteve presente a um enorme trabalho exímio de construção e desconstrução de personagem.
Filipe Duarte morreu esta sexta-feira, 17 de abril, aos 46 anos. E o legado que deixa é potenciado pelas personagens que criou em vida e que ainda hoje são impossíveis de esquecer.
E se em "Belmonte", o ator tratou de dar corpo e alma a um homem que, de repente, se vê na frente do negócio do pai depois de este ser vítima das ações depravadas de um dos seus filhos, em "Variações" teve a árdua tarefa de interpretar Fernando Ataíde — um dos amantes de António Variações, construindo a personagem a partir daquilo que se sabe de Fernando e dos relatos daqueles que lhe eram próximos.
Mostramos-lhe os 4 grandes papéis de Filipe Duarte que marcaram a televisão e o cinema português.
1. João Belmonte, em "Belmonte
Uma das personagens por que ficará sempre conhecida será a de João Belmonte, da novela "Belmonte" da TVI, que se manteve em emissão entre setembro de 2013 e setembro de 2014. A história passa-se no concelho de Estremoz, no Alentejo, e acompanha a vida de cinco irmãos que, filhos de Emílio Belmonte (interpretado por António Capelo), estão responsáveis por gerir o grupo empresarial da família — que detém empresas especializadas na produção de azeite, exploração de mármore, turismo e investimento imobiliário.
Filipe Duarte deu vida a João Belmonte, um dos filhos, é responsável por uma das áreas de negócio da família que depressa se vê sem o pai quando este é emboscado por um dos filhos e assassinado. Nas várias entrevistas que deu, Filipe Duarte revelou sempre que as maiores dificuldades na criação da personagem foi a de "tentar manter a família unida e com boa energia" perante a realidade que o assolava.
"O grande desafio do João foi de procurar a paz de que ele tanto precisava. Depois de o pai morrer, tem uma grande responsabilidade e é o pilar da família naquele momento", explicou em entrevista à TVI.
E continua: "É uma personagens muito desafiante porque se trata de realismo puro, coisa que nunca tinha tido oportunidade de fazer. E há um aspeto curioso nele: é que embora o João seja ateu, é maus católico deles todos." A personagem de João Belmonte ganhou com o dinamismo que só Filipe Duarte seria capaz de entregar, mas mantendo sempre uma atitude estoica e serena face às adversidades.
2. Fernando Ataíde, "Variações"
Num filme que pretendeu contar uma época em que António ainda não era Variações, o filme de João Maia conta, apesar de tudo, com prestações fantásticas. E uma delas é de Filipe Duarte enquanto Fernando Ataíde — um dos grandes amigos de António Variações, seu amante e dono da discoteca Trumps.
A relação entre ambos é uma das partes fundamentais do filme já que mostra o reatar dos laços entre os dois quando Variações, recém chegado a Lisboa, decide querer viver da música. A amizade entre os dois, explica Rosa Maria, era "profunda e desafiava qualquer convenção social.
"Eu sabia que o António e o Fernando tinham vivido muitos anos juntos, 10 ou 11 anos, que os dois tinham sido amigos especiais e que o António era uma pessoa muito importante para o Fernando. Também sabia que o António tinha ido para a Holanda, sempre com aquele sonho, à procura da liberdade. A história deles não era uma coisa que me incomodasse. Eu tinha vivido na África do Sul e na Austrália. Vinha de outro ambiente. Conheci o António quando ele voltou da Holanda. Ele entrou no restaurante onde costumávamos ir, o Bota Alta, e houve muitos abraços e beijinhos", conta a mesma ao "Vida Extra".
No filme, Filipe Duarte faz uso da sua experiência de ator para dar corpo a uma personagem complexa (talvez das personagens secundárias mais interessantes do filme) que olha para o regresso do amante com um misto de sensações dúbias mas assentes na base do amor e da proximidade com alguém que, pela maneira de ser e estar, viria a mudar para sempre a história da música portuguesa.
3. Luís Bernardo, "Equador"
Foi noutra novela da TVI que Filipe Duarte se destacou ao dar corpo a Luís Bernardo Valença. Falamos de "Equador", a novela que acompanha a figura de Luís Bernardo, um homem de 37 anos, empresário lisboeta que, no início do século XX que, depois de se aperceber que as potências internacionais pretendem eliminar os produtores portugueses de cacau sob pretexto de que esta indústria se move através do trabalho de escravos, denuncia a situação.
A vida muda quando é convidado pelo rei D. Carlos a ocupar o lugar de governador das ilhas de S. Tomé e Príncipe durante três anos. O objetivo? Desvendar se há ou não mão de obra ilegal na colónia e convencer os responsáveis de que o trabalho de escravos em Portugal já foi abolido.
Ao obrigar a um processo de construção de personagem de extrema dificuldade, já que Luís Bernardo deixa a sua vida confortável de Lisboa, Filipe Duarte criou uma figura de várias camadas, tão complexa como a vida — onde a vertente histórica se mistura com o lado pessoal e que coloca Luís Bernardo numa encruzilhada que envolve o amor, o sentido de dever e a desconstrução interior daquilo que está certo e do que está errado.
4. Tenente Coelho, "Mosquito"
Um dos recentes projetos de Filipe Duarte foi em "Mosquito", o filme de João Nuno Pinto, que se passa durante a Primeira Mundial e que tem como foco um soldado português: Zacarias, um jovem português que, cego pela vontade de deixar o seu nome na História, procura ser o protagonista heróico de várias aventuras durante o primeiro grande conflito armado.
Enviado para Moçambique, onde a guerra se vai desenrolando longe do mediatismo e dos olhares atentos do mundo, os problemas começam a surgir quando o solado se vê abandonado pelo pelotão que o acompanhava desde o início, e é obrigado a descobrir sozinho aquele novo universo que julgava impossível de existir.
O filme, que abriu o Festival Internacional de Cinema de Roterdão, nos Países Baixos, é baseado na história real do avô do realizador que, tal como Zacarias, se viu obrigado a enfrentar o desconhecido sozinho em África durante a Primeira Guerra Mundial.
A personagem de Filipe Duarte chama-se Tenente Coelho, um militar experiente que está na guerra e em Moçambique há muito tempo e que, devido aos horrores que presenciou, já abraçou a loucura que assola qualquer um no campo de batalha. Apesar disso, "no tenente Coelho há ainda uns resquícios dos valores da metrópole e dos valores europeus."
"Por isso mesmo, o tenente Coelho vive como um pequeno rei. E ainda se passa isso hoje em dia: há uma anedota moçambicana que diz que o trolha português, entra no avião da TAP, e sai como engenheiro em Maputo. Existe essa atitude em muitas pessoas quando chegam lá, de portarem-se como pequenos reizinhos", explicou o realizador em entrevista.
É só um dos grandes papéis de Filipe Duarte que, quer na televisão ou no cinema, mostrou sempre a capacidade de se adaptar a qualquer que fosse a personagem e o contexto.