14h30 desta terça-feira, 20 de julho. Quando pegamos no telefone, do outro lado da linha são 22h30 e a voz é de João Pedro Mendonça, jornalista e editor da RTP, líder da equipa destacada para cobrir os Jogos Olímpicos em Tóquio, no Japão. No momento em que a distância entre Portugal e Japão se encurta através de uma chamada via WhatsApp, João e a restante equipa estão há quatro dias isolados no hotel — desde que chegaram ao país, portanto — e sem a possibilidade de trabalhar na rua, embora todos tenham viajado com as devidas documentações e autorizações oficiais para o desempenho da profissão que é a de informar.

A conversa dura cerca de meia hora. E ainda que as histórias se comecem pelo princípio, é pelo final que arrancamos.

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É que antes de a chamada se desligar, João garante-nos que quarta-feira, 21, será o último dia em que a equipa aceitará estar isolada no hotel sem poder trabalhar. Afinal, a documentação está em concordância com aquelas que são as exigências das autoridades japonesas e a sua missão de informar não pode ser atropelada por questões burocráticas.

Desligamos a chamada e desejamos "boa sorte", "paciência" e todas essas coisas que, sabemos, são relativamente fúteis quando a frustração começa a acumular. Cinco minutos depois, o telefone volta a tocar.

Era João Pedro Mendonça. "Se calhar, devíamos ter falado mais cedo", diz-nos, diretamente de Tóquio. Entre o momento em que a primeira chamada começou e terminou, as autoridades japonesas tinham — depois de inúmeras reclamações — autorizado a equipa da RTP, até aqui sujeita a reportagens via videoconferência do quarto de hotel — a sair à rua para trabalhar. Quatro dias depois, houve autorização para sair da clausura.

Fechada num hotel, mas direito a refeições. Como a equipa da RTP esteve isolada em Tóquio
João Pedro Mendonça, o jornalista da RTP destacado no Japão créditos: RTP

Mas o processo foi moroso. E os problemas começaram "muito, muito cedo, em Lisboa", tal como recorda João Pedro Mendonça.

"Antes de partir, até por sermos detentores de direitos, tivemos de cumprir uma data de formalismos extra", diz. Um deles, continua, passava por apresentar "um plano de atividades que explicasse, detalhadamente, a que sítios Olímpicos [a equipa da RTP só poderia deslocar-se a estes locais durante os primeiros 14 dias], é que precisaríamos de acesso."

Das autorizações negadas à troca de hotel na chegada a Tóquio

"E ao invés de fazermos quarentena absoluta nos primeiros três dias, havia a possibilidade de pedirmos uma autorização para que pudéssemos começar a trabalhar logo no dia zero." Na véspera da chegada a Tóquio, tanto o plano de atividades como a possibilidade de trabalhar a partir do dia zero foram autorizados. Mas quando chegaram, e além de terem apresentado testes negativos à COVID-19 com a devida antecedência (e validados na aplicação promovida e usada pelas autoridades de saúde japonesas), foram conduzidos ao hotel.

"Quando chegámos cá, deram o dito por não dito e rejeitaram-nos a autorização para trabalhar a partir do dia zero. Protestámos, mas acatámos, mesmo que tivéssemos de ficar isolados durante três dias". A saída do hotel, explica, só era permitida durante 15 minutos para a compra de comida. É que ainda que toda a equipa estivesse num "hotel oficial", ou seja, um empreendimento usado pela organização dos Jogos Olímpicos para alocar a imprensa internacional, estes não serviam refeições.

Fechada num hotel, mas direito a refeições. Como a equipa da RTP esteve isolada em Tóquio
O quarto e local de trabalho de João Pedro Mendonça que também é o seu local de refeições créditos: João Pedro Mendonça

"O hotel tem restaurante, mas não serve refeições", reforça. E mesmo o hotel foi mudado à chegada da equipa da RTP a Tóquio porque aquele que, inicialmente, tinha sido indicado como um "oficial" para a imprensa, "de repente, deixou de estar", o que nos obrigou a ir para outro lado.

Fazendo as contas, o jornalista enumera as exigências feitas à equipa da RTP: "Disseram-nos para fazer três dias de isolamento e fizemos. Disseram-nos para fazer testes [à COVID-19] e submetê-los na aplicação, e fizemos. E mesmo assim, até ao final do quarto dia não nos libertaram. Criaram tantas camadas de defesas contra a COVID, em termos administrativos e burocráticos, que mesmo sendo um país organizado e metódico, não estão a saber lidar com as suas próprias ferramentas", explica.

Obrigados ao isolamento, valeu à equipa da RTP "as interações através de aplicações", como o Zoom ou similares, para fazer entrevistas. Mas também a boa vontade dos atletas. "Tive uma entrevista às 21h30 com a Telma Monteiro que se privou do seu descanso porque os próprios atletas têm a perceção de que, efetivamente, vamos ter de nos ajudar uns aos outros", refere.

Autoridades japonesas incentivam população a denunciar jornalistas

Neste ponto do texto, já sabe que João Pedro Mendonça e restante equipa foi autorizada a trabalhar no terreno. Mas durante a primeira chamada, o jornalista dizia, calmamente, que quarta-feira seria a data limite "para aceitar esta condição inaceitável de ter cumprir tudo e ver as autoridades a não cumprirem a sua parte".

Na prática, isso traduzir-se-ia no romper do isolamento. "O serviço público de televisão em Portugal não é rico ao ponto de mandar jornalistas cobrir os Jogos Olímpicos através de um quarto de hotel. Temos responsabilidades profissionais, mas também com o público. Se não entendem isso, vamos ter de os fazer entender à força", dizia-nos, prevendo que, quarta-feira chegaria e, do lado das autoridades japonesas, só receberiam silêncio.

Mas esta situação, explica-nos, não era exclusiva à RTP. Ressalvando o facto de haver "desfasamento de datas de chegada" e, portanto, "de situações", João Pedro Mendonça diz que todos os jornalistas que conhece "reportam muitas dificuldades em ter algum retorno em relação ao cumprimento das regras por partes das autoridades japonesas".

Fechada num hotel, mas direito a refeições. Como a equipa da RTP esteve isolada em Tóquio
No momento em que João Pedro Mendonça falou com a MAGG, tinha acabado de entrevista Telma Monteiro por videoconferência créditos: João Pedro Mendonça

"Haverá casos mais ou menos graves. Estamos todos obrigados a apresentar o plano de atividades para os primeiros 14 dias de cobertura e, em muitos casos, há quem não tenha obtido resposta a tempo. Do que conheço, há um relativo caos na forma como os próprios japoneses estão a fazer o tratamento das próprias regras", refere. E há quem, nesta fase, não aceite compactuar mais com a situação.

É o caso de uma equipa de reportagem alemã. "Todos sabemos como os alemães são conhecidos pela forma como cumprem com as regras e o regulamento, mas esta equipa está a sair do hotel apesar de as autoridades não autorizarem. E fazem muito bem em sair."

Quanto às consequências de incumprimento, são duras. "Vai desde a cassação da carteira profissional de jornalista até à expulsão do Japão. Mas há pormenores tortuosos. Como temos de nos sujeitar ao confinamento no hotel, as autoridades incentivam a população a fotografar-nos na rua e a expor-nos nas redes sociais se, ao verem-nos, acharem que estamos em incumprimento", revela.

As motivações para o pânico burocrático

"Uau, não é?", diz-nos do outro lado. "Chegámos a um ponto em que o medo atingiu o ridículo", diz. Apesar disso, nunca foi fotografado quando saía à rua para comprar comida e o jornalista recusa-se a "julgar um povo por uma atitude burocrática", até porque fala dos japoneses como "pessoas extremamente afáveis, disponíveis para receber bem".

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"Todos nós somos muito mais do que uma atitude burocrática. Mas permite julgar o pânico que está a gerir a organização do evento". A chave para compreender o caos que envolve a imprensa destacada para cobrir os Jogos Olímpicos, cuja cerimónia de abertura arranca a 23 de julho, passa pelo medo de que o evento seja sinónimo de novas cadeias de transmissão de COVID-19 numa altura em que, nesta fase, apenas 22.5% da população do Japão está vacinada.

"Talvez devido ao estado de vacinação tão calamitoso, eles estejam naquela fase do pavor em que nós também já estivemos. E consigo respeitar isso. Não posso é deixar que isso atropele a minha missão de informação. Se há coisa que tivemos tempo para fazer, foi queixas, reclamações e pedidos de informação. Das mil que fizemos, alguma virá", referiu na primeira chamada.

Quase como que profetizando o que viria, a resposta chegou cinco minutos depois e a equipa da RTP estará, a partir desta quarta-feira, 21, no terreno a cobrir os Jogos. "Isto vai parecer uma frase motivacional, mas se fosse fácil não era para nós. E se há algo que espero que as pessoas retirem das reportagens que fomos fazendo no quarto, é que não nos fecham com essa facilidade toda."