“De que é que falámos na aula passada?”, pergunta a professora Marília Pereira. “Da desigualdade de género”, atira, do fundo da sala, um aluno do 9.º ano da Escola Básica Damião de Góis. A resposta certa seria “igualdade de género”, mas, pensando melhor, também está bem assim.

É isso. Estamos sentados ao fundo da sala A19 desta escola em Lisboa a assistir a uma aula de de Educação para a Cidadania e Desenvolvimento, disciplina que, de acordo com a Direcção-Geral da Educação, "visa contribuir para a formação de pessoas responsáveis, autónomas, solidárias, que conhecem e exercem os seus direitos e deveres em diálogo e no respeito pelos outros, com espírito democrático, pluralista, crítico e criativo, tendo como referência os valores dos direitos humanos."

Apesar das boas intenções, a disciplina caiu numa polémica forçada por um baixo assinado por várias personalidades da Direita  — incluindo Anibal Cavaco Silva, antigo Presidente da República, Pedro Passos Coelho, ex-dirigente do PSD e ex-Primeiro-Ministro, ou o cardeal patriarca de Lisboa, D. Manuel Clemente. Neste documento defendeu-se a objeção de consciência para os pais que não querem que os filhos frequentem esta aula, a propósito do caso dos dois alunos de Famalicão que foram chumbados por faltas, depois de os educadores optarem por não deixar que os miúdos frequentassem esta disciplina. Em causa estaria uma alegada doutrinação dos jovens, por meio destas lições. Será verdade?

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Quisemos ver por nós. Entramos, já com grande parte dos alunos daquela turma de 9.º ano sentados. De máscaras postas, não vemos bem os rostos dos 20 adolescentes, mas observamos a sua disposição: não está cada aluno na carteira, estão antes organizados em duas longas filas, cada uma numa extremidade da sala. É aí que ficam os computadores e isso interessa porque também estamos numa aula de Tecnologias da Informação e Comunicação (TIC).

É um casamento que faz sentido. “Não usem só o Powerpoint. Tentem fazer coisas diferentes”, alerta o professor de TIC Bernardo Monteiro, responsável por guiar a primeira parta da sessão. Deixa várias sugestões: o Canva para criar uma banda desenhada, usar o Audacity para editar um podcast, utilizar o Photoshop para fazer cartazes, criar quizzes. É partir nestas plataformas que os alunos vão desenvolver um trabalho em grupos de dois ou três, no máximo, sobre a igualdade de género, um dos dois temas incluídos no programa de Educação para a Cidadania que nesta turma se debatem.

Marília Gonçalves esteve em silêncio até então. Mas fechado o tema dos variados softwares, atravessa a sala e assume a moderação da conversa. Sim, conversa. É o modelo de aula que aqui se segue e, mais tarde, a também professora de Geografia explica-nos que é o que faz mais sentido. Pôr os miúdos “a passar do quadro” não faria cumprir o propósito que vê para estas aulas: pô-los a pensar.

Bernardo Monteiro está atrás do computador e começa a criar aquilo que virá a ser um mapa de conceitos. No centro desta espécie de aranha está a expressão “igualdade de género”. As múltiplas patas mostram a complexidade do assunto e vão surgindo à medida que os miúdos vão atirando as palavras sintomáticas do problema social.

Não o fazem com a convicção de quem está politizado, com a crença inabalável de quem se deixou dogmatizar. São adolescentes. A política, os dogmas e os problemas sociais ainda não lhes tiram o sono. Fazem-no, antes, com a hesitação de quem está a recordar as aulas anteriores, com a incerteza de quem pensa enquanto fala.

“Machismo”, diz um aluno. “Feminismo”, diz outro. “Feminismo” com 'i' ou com 'e'?", aproveita para perguntar Bernardo Monteiro. Entretanto, entra o tema das profissões. Para esta noção de que há “trabalhos de homem e trabalhos de mulher” é mais difícil definir um termo e, assim, começa o brainstorming.

“Já devem ter reparado que há profissões em que só há homens e outras em que só há mulheres”, lembram os professores. Além do exército ou da política, o desporto é uma das áreas mais destacadas e fala-se no futebol feminino, modalidade em que se tem feito um grande esforço para o aumento da representação das equipas de mulheres. Mas ainda há a “desigualdade salarial”, lembram.

“Como é que vamos chamar a isto de haver profissões para homens e para mulheres?”. A palavra que vai entrar no mapa de conceitos fica decidida: "perfis profissionais”. A professora Marília Pereira aproveita para explicar o termo “preconceito”, chamando a atenção para o prefixo. “Pre-conceito”, diz. É uma ideia que já vem feita. E também entra no mapa.

Os professores continuam a puxar pela cabeça dos alunos, tendo por vezes de fazer aquilo que se faz em todas as aulas: por fim aos típicos picos de agitação, às ondas de burburinho, que se formam desde que existe escola. Observando de fora, e com o olhar de quem também já foi uma aluna insuportavelmente conversadora, concluímos que estão sossegados e participativos.

Entramos noutro ponto importante e começam a chover mais palavras. “Violência”, “agressão”, “abuso”. Há uma aluna que é mais específica: “Aquela coisa de se dizer que, por ter um decote, se pôs a jeito”. Todas estas palavras começam a ser apontadas no mapa, mas Bernardo e Marília querem que os adolescentes encontrem o termo que está por detrás destes problemas. Eles chegam lá: “desrespeito” e “poder”. Também se fala em “estupidez”. Certíssimo.

“Falta alguma coisa aqui?”, pergunta o professor. “Népia”. O mapa cresceu e constitui agora uma importante ferramenta para relacionar conceitos, fazer pontes e ligações. Está repleto de palavras e pronto para servir de base para os trabalhos que os alunos vão começar a preparar. Mas, antes disso, têm de formar grupos de dois ou três elementos, observar a aranha e escolher um tema — ou, antes, um dos termos.

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Um grupo de rapazes agarra-se, de imediato, à desigualdade no desporto. Um grupo de miúdas quer tratar o machismo e outras querem não um, mas três conceitos: “Abuso, violência e preconceito”.

Já há seis grupos e já todos têm tema. Eles sabem que se aproxima o final da aula. E nós também sabemos que eles sabem, porque lhes lemos a inquietação nos corpos. Os professores deixam os últimos alertas: toda a gente tem de criar um novo acesso ao Teams, plataforma de comunicação e colaboração, que já no ano letivo passada havia sido utilizada, quando as aulas decorriam em regime remoto. É que, como isto anda em termos pandémicos, ninguém sabe o que vai acontecer.

Professores desvalorizam polémica

Os alunos já saíram da sala. Estamos só nós e a dupla de professores. A conversa é breve, porque Marília vai dar aula em cinco minutos e Bernardo já terminou o dia. Mas fica o essencial: os professores desvalorizam absolutamente a polémica em torno da cidadania. Afirmam que essa é uma questão que não é das escolas, que não é dos professores, que nem sequer é dos alunos.  Ela existe nos media, e é criada a pensar em interesses políticos, ligados à “agenda da extrema-direita”.

De resto, o impacto destas aulas, pensam, é positivo, indo ao encontro dos objetivos descritos no programa. “Puxa pelo raciocínio, pela sensibilidade, como seres sociais", diz a professora de Geografia. “Ajuda-os a pensar. Põe-nos a refletir”, diz Bernardo. Bem embrulhado, é isto: pensamento crítico. Será que faz mal a alguém?