Manuel Paiva Brandão, 26 anos, pediu uma licença sem vencimento de três meses à Deloitte, onde trabalha, para concretizar um sonho. Sozinho e com uma mochila às costas, viajou 4800 quilómetros à boleia – 25 boleias, para sermos mais precisos – das British Columbia, no sul/oeste do Canadá, até ao Alasca, nos Estados Unidos da América.

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Saiu de Portugal a 3 de julho e regressou a 29 de agosto e garante que esta foi "a melhor" coisa que fez em toda a sua vida, apesar das dificuldades que enfrentou, como a solidão, a incerteza da viagem, a segurança posta em causa.

À MAGG, revela como foi passar dez dias completamente sozinho nas montanhas, como conseguiu manter a sua saúde mental, o que aprendeu com esta viagem e se já tem planos para a próxima.

Leia a entrevista.

Como surgiu a ideia desta viagem?
Isto é um plano de vários anos, desde os 5/6 anos que eu via programas do David Attenborough, do Bear Grylls. Acho que qualquer rapaz dos 6/7 anos até aos 10/12 identifica-se sempre com um bocadinho de Bear Grylls, acha sempre que ele próprio é um Bear Grylls. E muitos dos cenários são do Ártico, do Alasca, zonas de extrema natureza e remoteness (“estar afastado de tudo”, em português). E acho que foi desde aí que esta vontade de conhecer o Ártico e esta zona, que é extremamente inóspita, foi despertando. Eventualmente, quando fiquei mais velho, não morreu, antes pelo contrário. Eu sabia que o Alasca era um destino a que eu tinha de ir eventualmente, não sabia se ia ser aos 30 ou aos 40 anos, mas sabia que eventualmente tinha de acontecer.

O ano passado ganhei coragem e pensei: ‘vai ser no próximo ano, vai ser em 2024’. A viagem foi um bocadinho maior do que estava a contar no início, porque tinha muito interesse pelo Alasca e pelo norte do Canadá, mas British Columbia também era uma zona pela qual sou completamente apaixonado, tem trilhos lindos e zonas absolutamente incríveis e, às tantas, pensei: ‘porque não juntar os dois? Porque não começar em British Columbia, no sul e no oeste do Canadá, e ir até lá cima?’. Foi uma junção de um interesse muito grande que eu tinha por várias zonas daquele lado do mundo.

Como é que a sua família reagiu quando partilhou que ia viver esta aventura?
A minha mãe proibiu-me logo (risos). A primeira coisa que a minha mãe disse foi: ‘não vais’. E eu: ‘mãe, tenho 25 anos, não é assim. Isto é o meu sonho, é o meu plano, isto é a minha aventura’. E ela disse: ‘tudo bem, mas vives em minha casa e não vais’. Portanto, foi um processo demorado e foi preciso alguma paciência para convencer a minha família, ou seja, a minha mãe, convencê-la de: ‘calma, eu não vou morrer, isto vai acontecer e está tudo bem, tenho um comunicador por satélite – que não é propriamente um telefone, porque num telefone dá para falar, aqui a única coisa que consigo é mandar uma mensagem a dizer que estou vivo, não morri e a minha localização é esta’. Mas de facto isso chegou para, quando estava no meio do Ártico, dos esquimós, tranquilizar um bocadinho a minha família.

Como é que se preparou para a viagem?
Do ponto de vista físico, eu tinha alguma segurança, porque faço triatlo há dois/três anos e treino muitas horas por semana. Eu sabia que ia haver partes da viagem que iam ser muito físicas, outras que iam ser muito mentais, de estar à espera, boleias. Eu não sabia muito bem o que esperar, na verdade, e é muito difícil prepararmo-nos para uma coisa que é uma página em branco. E isto era literalmente uma página em branco, não há uma solução chave na mão para este tipo de viagens, de ir de British Columbia até ao Alasca, não há autocarros, não há comboios, não conseguia alugar um carro em Vancouver, na cidade onde comecei, e ir até ao Alasca.

É muito difícil preparar a 100% uma viagem que nem nós sabemos o que vai ser, em que moldes vai ser, o formato em que vai ser. A única coisa que eu sabia era que estava bem preparado fisicamente, e isso dava imensa segurança, e que, do ponto de vista emocional, tinha de estar aberto a tudo, ao extremo desconforto de não haver trilhos, da navegação ser muito difícil, que foi, e de ficar horas à espera de uma boleia, que tive de ficar.

O que levou na mochila para dois meses de viagem sozinho?
As coisas mais importantes que eu levava na minha mochila eram o saco-cama e a minha tenda, que se partiu no fim da viagem mas ainda assim foi fundamental em 90% dos dias em que eu de facto precisava dela, uma esteira, portanto um colchão insuflável e power banks.

Nas montanhas, obviamente, não consigo carregar nada, portanto tinha de arranjar uma solução para isso e acabou por ser levar duas power banks muito grandes, foram quase dois quilos de power banks só para garantir que nem que fosse só o comunicador por satélite estava operacional, porque isso sim era o mais importante. O telemóvel também era importante, porque era lá que tinha os mapas, mas também tinha mapas físicos. Sem dúvida alguma que o comunicador por satélite era o mais importante, porque era a minha garantia de que se do nada apanhasse um urso, um puma, se torcesse um pé ou se apanhasse um wildfire (“incêndio”, em português) – como houve wildfires muito grandes em British Columbia uma semana depois de eu ter estado lá, o que foi uma sorte enorme do meu lado – eu conseguia chamar um helicóptero, porque tem um botão de SOS em que eu consigo comunicar.

Depois disso, algumas coisas essenciais, como o meu bear canister, que é o meu contentor para ursos e é lá que tinha de pôr a comida toda quando ia dormir, porque a dormir estou completamente desprotegido, não estou alerta, e a regra número um é: não pode haver um único cheiro dentro da tenda, seja comida, pasta de dentes, café, desodorizante, tudo o que tenha cheiros intensos.

Este foi um dos maiores desafios que tive, do ponto de vista logístico. Como é que eu ia encaixar dez dias de comida num contentor pequeno? A verdade é que o fiz de forma a passar fome, não havia outra opção. O top de coisas essenciais que eu levei foram: bear canister, tenda, saco-cama e bear spray, que era a minha salvação se eu visse, de facto, um urso, além da mochila, obviamente.

Relatou nas redes sociais que passou dez dias nas Rocky Mountains do Canadá sozinho, sem acesso a nada e que os guardas-florestais lhe disseram que “ninguém ia para aquela parte das montanhas”. O facto de não saber bem ao que ia não o assustou?
Assustou-me imenso, porque como é o início da viagem eu ainda não provei que consigo. A meio da viagem já tinha conseguido provar que, ok, este modelo funciona. Por mais difícil que seja, posso esperar mais meia hora ou menos meia hora, posso ter de me desviar um bocadinho, mas sei que este modelo funciona.

No início da viagem não sabemos absolutamente nada, portanto foi, sem dúvida alguma, muito intimidante falar com as pessoas que, teoricamente, são as que mais sabem e que mais me poderiam ajudar e elas dizerem: ‘esse lado do parque, esse lado de British Columbia, nós não conhecemos, ninguém vai para lá. Estás um bocadinho por ti, não sabemos se as águas estão altas’. Nós temos de passar os rios a pé, não há pontes, e se tivermos de passar outro rio e não conseguirmos, andamos para trás e o primeiro rio pode ter subido e estamos encurralados entre dois rios, obviamente sem trilhos para ir ter a uma cidade ou a uma estrada que seja.

Isto é um tema muito grande e era o maior tema que eu tinha na cabeça, perceber se os rios estavam passáveis ou não, se as águas estavam altas ou não, se era fazível, porque era muito perigoso levar com a corrente. Estamos a falar de rios com água a 5/6ºC, muito fria, gelada, que vem dos glaciares, e pode ter um resultado desastroso eu cair dentro de água com uma mochila e ter um choque térmico, sem ninguém e ter de me desenrascar sozinho numa situação dessas. Perguntei isso e, como não tive resposta, fui para a tenda pensar muito bem no que queria fazer. Depois lá ganhei coragem e fiz-me à vida, fiz-me ao trilho, fiz-me às montanhas e pensei: ‘isto é dia a dia’. E a verdade é que consegui, com muita, muita, muita dificuldade.

Esses dez dias foram, possivelmente, os dez dias mais difíceis que eu tive em toda a minha vida. Não só pela parte da solidão, de não ter ninguém para trabalhar comigo as partes difíceis, de rir-se comigo quando as coisas estavam más. É mais fácil relativizar uma coisa má quando estamos com alguém, podemo-nos rir dessa situação, desse desconforto. Quando estamos sozinhos parece que as coisas ganham outra dimensão, outro peso. Nestes dez dias, ainda por cima como foi no início, não estava propriamente habituado.

"A verdade é que, sozinho, muitas coisas vêm à nossa cabeça, pomos tudo em causa: a nossa vida, as nossas decisões"

Apesar de terem sido “os dez dias mais difíceis”, disse que foram “a melhor” coisa que fez em toda a sua vida. Porquê?
Eu acho que as duas coisas andam muito de mãos dadas. Muitas vezes, os dias mais duros são os que nos trazem as maiores lições e, quando estamos nessa altura de dificuldade, não percebemos que aquilo nos vai trazer coisas boas e giras, mas eu acredito que é na adversidade que todos crescemos, e é a fazer coisas extremamente difíceis que etas se tornam vagas, mundanas, relativamente fáceis.

Aqui, não tenho a mais pequena dúvida de que subi o meu nível de tolerância ao desconforto, ao desconhecido, ao medo, ao pânico de ter de lidar com as coisas sozinhos. Eu não faço ideia do que estava do outro lado de uma curva. Além das paisagens absurdas que vi, dos ursos que vi, dos alces... Se eu retirar toda a parte da dificuldade e conseguir só focar-me nas outras coisas, isto foi uma experiência para a vida. Só esses dez dias foram uma experiência para a vida. Estava no meio das Rocky Montains do Canadá, não vi ninguém e é uma experiência tão absorvente, eu estava tão nas montanhas, que eu era as montanhas, eu tornei-me nas montanhas e as montanhas tornaram-se eu, éramos um só. Esta experiência foi, sem dúvida alguma, dos melhores momentos da minha vida.

Como lidou com a solidão nestes dias e como conseguiu manter a sua saúde mental nestas condições?
Uma das formas para conseguir manter a saúde mental foi a filmar, tenho horas e horas e horas gravadas em que o propósito era: ‘eu vou gravar, porque pelo menos a gravar ouço a minha voz. Não quer dizer que tenho companhia, mas consigo partilhar as minhas ideias, as minhas emoções e sei que isso não vai ficar no ar, porque está gravado’. Isso, curiosamente, ajuda bastante a trabalhar a solidão. Para além de gravar, tive momentos incríveis de solitude. Acho que em inglês existem dois termos que nós não temos: solitude e loneliness. E a solitude é uma coisa incrível em que estamos em paz, a absorver as montanhas, o nosso cérebro está a fazer a sua própria viagem, algo que acontece quando não temos distrações nem outras pessoas para conversar. A verdade é que, sozinho, muitas coisas vêm à nossa cabeça, pomos tudo em causa: a nossa vida, as nossas decisões, os fantasmas que temos no armário saem do armário e tudo se torna real e vivo, inseguranças que tínhamos há uns anos, temas que enterrámos e achávamos que estavam bem resolvidos.

É extraordinário este processo de estar tanto tempo sozinho, em que o nosso cérebro simplesmente vai buscar tudo, vai tentar resolver tudo e tudo fica à flor da pele. Muito interessante mesmo, nunca tinha estado tanto tempo sozinho e, honestamente, acho que é uma experiência que toda a gente devia ter. Eu saio desta viagem a dizer que qualquer pessoa devia ter uma semana sem ver ninguém, por muito maluco que isto possa parecer. Eu prometo que não estou maluco, prometo (risos). A verdade é que é extraordinário ter de trabalhar os momentos aborrecidos, não ter ninguém, que também é muito aborrecido, trabalhar o tédio, que é fundamental. Às vezes via uma montanha giríssima e dizia: ‘quem me dera que os meus amigos estivessem aqui’. Tive muitos desses momentos de ‘quem me dera que estivesse alguém aqui a ver’, porque não está aqui ninguém sem ser eu e tinha muita pena disso, muita tristeza, muita pena de não ver a minha família há tanto tempo, sabia que tinham imensas saudades minhas e eu deles.

Havia um momento muito difícil no meu dia, principalmente no Ártico. No norte do Alasca, num parque chamado Gates of the Artic, foi, se calhar, onde me senti mais sozinho, porque as paisagens são tão vastas que vemos muitos quilómetros de nada mesmo. Aí percebemos, claramente, que estamos sozinhos, muito sozinhos. Enquanto nas montanhas de British Columbia eu também estava sozinho e também tive momentos em que senti isso, mas as montanhas são altas, há muitas florestas, às vezes há trilho, que é uma marca humana apesar de não estar ali ninguém, e isso ajuda-nos. No Ártico não havia nada, por isso eu sinto que a solidão foi lá que bateu mais.

A altura do dia em que batia mais era, sem dúvida alguma às 15 horas, mais ou menos, que era quando a minha mãe ia dormir e me mandava uma mensagem pelo comunicador por satélite a dizer: ‘vou dormir, até amanhã, falamos amanhã’. Não é que eu falasse com a minha mãe durante o dia por este comunicador, porque não é fácil de comunicar, é um tamagoshi mínimo que a única coisa que podemos dizer é se estamos vivos ou não. Mas só dizer que estamos vivos e saber que do outro lado alguém recebeu a mensagem tranquiliza-nos e eu sabia que a partir das 15 horas até quando me fosse deitar, à meia-noite/23 horas, a minha família estava toda a dormir.

Sentiu-se mesmo em perigo alguma vez?
Perigo, perigo nunca tive. Tive confronto com animais, mas longe. Confronto, confronto não, na verdade. A primeira vez que tive com um grizzly bear (“urso-pardo”, em português) estava no meio das montanhas, num trilho, sabia a minha direção e faço uma curva, saio de umas árvores e vejo uma fêmea grizzly com dois filhos. E este é o cenário mais perigoso. Um grizzly sozinho, à partida, não nos vai querer fazer nada, nós damos imenso trabalho e o urso é um bicho preguiçoso. Há, sim, uma situação diferente, que é quando temos uma mãe com duas crias, porque aí há um instinto de proteção dos filhos. Eu sabia que era a situação mais perigosa, retrocedi, voltei para as árvores, observei os ursos de longe, percebi que eles não estavam a ir para o meu trilho, se bem que estavam perto, e fiz um desvio gigante. Cheguei ao outro lado do trilho passado uma hora ou duas, mas já bastante longe dos ursos. Esta é sempre a solução a fazer: vemos um urso, fazemos um desvio enorme para garantir que não nos cruzamos no trilho.

Vi muitas pegadas, que assustam, apesar de não os vermos, muitos barulhos à noite, coisas que claramente não são esquilos (risos). Houve uma noite em que achei que ia morrer. Estava na minha tenda a acampar no meio das montanhas e comecei a ouvir passos e ramos a partirem ao meu lado. Eu acordei com isto, obviamente, e não fiz barulho, não queria dar incentivos a qualquer animal que estivesse ali, queria parecer uma rocha o mais possível. Mas a verdade é que eu ouvi esses barulhos a aproximarem-se cada vez mais, passos a aproximarem-se e era um barulho gigante, era ou um alce ou um urso. Às tantas ouvi o barulho tão próximo que pensei que pudesse dar mesmo para o torto, por isso ligo o comunicador por satélite, este faz barulho e ouvi o animal a voar pelas montanhas a fugir. Acho que, de alguma maneira, tive sorte.

Depois destes dias, viajou de boleia em boleia até ao Alasca. Como é que as pessoas o recebiam? Sentiu a sua segurança posta em causa alguma vez?
Durante as boleias nunca vi a minha segurança posta em causa. A única altura em que tive um bocadinho mais de medo foi em Gates of the Artic, no meio do Ártico e das montanhas, na primeira noite, e uns esquimós passam por mim e, claramente, não estavam assim tão bem intencionados. Até aqui tinha tido experiências extraordinárias com os esquimós, estive numa vila dois dias numa aldeia de esquimós e eu era o único turista. Mas estes esquimós não eram assim. Eu estava no meio das montanhas e ali as regras são um bocadinho diferentes. Ele começa a perguntar-me: ‘o que é que estás a fazer nas minhas montanhas?’, e com armas, porque são caçadores. E eu a tentar tranquilizá-lo: ‘desculpa, montei a tenda aqui, não sabia que isto poderia ser desrespeitoso, se é eu posso sair daqui, não te quero de maneira alguma desrespeitar’. E ele: ‘há ursos aqui, se houver ursos não te vou ajudar, estás por tua conta’. Depois, quando se ia embora, vira-se para trás e diz: ‘o meu amigo vai tratar de ti’, e foi-se embora. Felizmente, o amigo dele não tratou de mim, mas eu não sei o que isso era, se era uma coisa boa ou má. Essa foi a altura em que me senti mais vulnerável até, mais do que medo. Eu estou nas montanhas e não posso fugir para lado nenhum, eles sabem isto, é a casa deles.

Em termos de boleias, tudo o melhor possível. Em termos de esperas, houve alturas muito difíceis. Apanhei boleias tão diferentes, pessoas incríveis, apanhei pessoas nativas do Alasca, que quase não falavam mas a experiência em si foi extraordinária, pessoas que me iam dar boleia de meia hora e acabaram por me dar boleia durante três dias, adotaram-me e fiquei com eles três dias numa van (“carrinha”, em português). Cada boleia era uma vida nova. É tão interessante entrarmos num carro e termos, de facto, de conversar, porque não vou estar ao telefone por uma questão de educação, e ele está a guiar, por isso também não está ao telefone. Então é uma bolha em que passamos várias horas e, de facto, conhecemos alguém de uma forma mesmo profunda. Conheces muito mais a pessoa assim do que se a tivesses encontrado no café. Nunca tive nenhuma má experiência com boleias, antes pelo contrário, extraordinárias. As pessoas do Alasca e do Canadá são estupidamente simpáticas e bondosas, de alguma maneira. Foi uma experiência muito, muito interessante, só pelo facto de ter andado às boleias.

"Acho que na vida não há destino, há a viagem"

Como é que descreve então esta experiência? O que aprendeu com ela?
Eu acho que tive três viagens diferentes, paralelas. Uma viagem externa, de ver a beleza da natureza do Ártico, que é brutal e a dimensão das coisas. Eu acho que o Ártico é o último sítio do mundo onde a natureza ainda é maior que o Homem. África tem muita natureza, mas o Homem domina a natureza, a América do Sul e a Ásia a mesma coisa, mas sinto que o Ártico ainda é aquele sítio preservado e tão vasto, tão grande e com tanto desinteresse comercial, é muito difícil viver lá. A questão é essa: é tão difícil viver ali, que a natureza ainda é maior que o Homem e o Homem ainda se dobra perante a natureza. Ver isto com os meus olhos pela primeira vez, as montanhas, os rios, os vales, os animais, foi uma das viagens que fiz.

Paralelamente, as pessoas que conheci, foram outra viagem. As perspetivas que tinham, a maneira de ver o mundo, o mindset das pessoas que me davam boleia e que eu ia conhecendo foi outra viagem completamente diferente e linda. E a terceira viagem foi a viagem interna, da minha cabeça com a minha própria cabeça, de 56 dias dos quais muitos deles estive sozinho e a minha cabeça viajou, a verdade é essa. Às vezes de uma forma um bocadinho mais dura, mas, no fim do dia, mesmo esses momentos mais duros, todos eles tiveram um balanço positivo, porque aprendemos sempre muito estando sozinhos.

Aprendi muito. Fui aprendendo algumas coisas interessantes. Comprei um livro de poemas e li um poema num dos dias que às tantas dizia: ‘It isn’t the gold that i’m wanting. So much as just finding the gold’, portanto: ‘não é do ouro que estou à procura, é da procura pelo ouro’. E isto, não sei, ali no meio das montanhas bateu-me mesmo, fez-me imenso sentido. Não quer dizer que tenha aprendido, mas torna-se mais real. Eu acho que na vida não há destino, há a viagem, há o que se aprende com a viagem, há as pessoas que se conhece com a viagem, há os momentos difíceis da viagem. Isto foi, sem dúvida, uma das coisas que, não sei se aprendi, mas que se tornou óbvia nesta viagem. Outra talvez tenha sido que todos os projetos maus acabam, uma das coisas que me foi dita pelo meu irmão quando eu comecei a trabalhar e que eu repeti ao longo desta viagem nos momentos duros. Estou no meio de uma estrada sem ver absolutamente ninguém, tenho 200 quilómetros para fazer e ninguém me dá boleia, estou desesperado, tenho fome e não tenho comida, mas calma, todos os projetos maus acabam. Aprendi mesmo muito sobre mim, sobre como gerir o pânico, sobre dizer parvoíces a mim próprio, gerar felicidade, fazer humor comigo próprio para me divertir.

Disse que o seu objetivo era conhecer-se e saber quem é “quando ninguém está a ver”. Conseguiu?
Uma das perguntas que eu queria resolver em mim próprio e eu escrevi isto no meu caderno era: ‘quem é o Manel?’. Eu queria chegar ao final da viagem e responder a esta pergunta. E a verdade é que não o consegui fazer, antes pelo contrário, ainda gerei mais dúvidas, mais dificuldades em responder. A minha cabeça viajou para tantos sítios, tanta coisa foi posta em causa, tantas coisas novas que comecei a ponderar e a pensar que é mesmo difícil responder.

Ainda assim, consegui responder a: ‘quem é o Manel quando ninguém está a ver?’. E eu adorei o Manel quando ninguém está a ver. É um Manel genuíno, que não tem pressão da sociedade. Eu acredito que nós – e isto não é uma crítica de maneira alguma – acabamos por ser o resultado daquilo que as pessoas esperam de nós, a nossa personalidade molda-se um bocadinho com o que as pessoas esperam de nós em sociedade, tanto no trabalho, como em casa, como com os nossos amigos. Eu falo por mim, sou um bocadinho diferente quando estou com a minha avó, quando estou a trabalhar, quando estou com os meus amigos, a responder à mesma pergunta dou respostas diferentes. Aqui, quando estou nas montanhas ou nas aldeias, ninguém espera nada de mim, porque ninguém me conhece. Portanto, quem é o Manel quando ninguém está a ver? É um Manel extraordinário, vou ser honesto. No início intimidante, mas depois, aos poucos, quando comecei a ficar confortável com esse Manel, adorei-o.

Foi partilhando a sua aventura nas redes sociais. Que feedback foi recebendo?
Para lá do que alguma vez imaginei. Eu partilhei, porque acredito que é na partilha que se aprende, é quase um devolver daquilo que eu aprendi em sites, bloques, livros, páginas de Instagram e de Youtube. A verdade é que isto tomou proporções desumanas, não estava nada à espera. Recebia dezenas de mensagens por dia de pessoas a dizer: ‘Manel, eu acordo de manhã ansioso por ir ao Instagram ver o que é que viveste hoje, eu estou a viver esta viagem contigo, obrigada’. Esta foi a mensagem que eu mais recebi: ‘obrigado por nos deixares viajar contigo’. Obviamente que no início não, porque não sabia que ia ser assim, mas às tantas isto tornou-se numa das minhas missões da viagem. Se calhar esta viagem teve quatro viagens, que é também a partilha. Receber estas mensagens é lindo, quando estamos nos momentos mais difíceis ou não, quando estamos ótimos. O feedback que recebi foi incrível, não recebi hate (“ódio”, em português) nenhum, que é uma coisa boa também. Não posso deixar de agradecer o carinho todo que fui recebendo ao longo destas semanas, foi para lá do que alguma vez imaginei.

Entretanto, já regressou a Portugal. Como está a ser voltar à normalidade?
Adorava dizer que está a ser muito fácil, incrível, mas sendo honesto tive de trabalhar um bocadinho uma depressão pós-viagem. Cheguei quinta-feira [29 de agosto] e quinta e sexta-feira foram dias muito baralhados, além do jet lag tive quase um jet lag emocional. Voltar e ver que a minha cama está no mesmo sítio, o meu carro, os meus amigos fizeram o que eu faço sempre no verão e, mais uma vez, isto não é uma crítica à sociedade. São 60 dias, ninguém vai mudar em 60 dias, mas fez-me alguma confusão eu ir quase para outro universo em que nada é igual e em que tudo é posto em causa na minha cabeça e, de repente, volto para Portugal e está tudo exatamente igual, as ruas são as mesmas...

Uma das mensagens que eu quis transmitir, também para eu próprio acreditar nela, foi que é perigoso viajar para fugir, é perigoso usar a viagem para um escape à nossa realidade e ao facto da vida ser difícil e monótona. Usar uma viagem tão grande e tão estruturante como esta para fugir ao facto de eu ser descontente na minha realidade, na minha bolha, acho perigoso, porque volto e a vida não muda. Portanto, voltei, tinha isto muito assente na cabeça, mas estes primeiros dias foram um bocadinho difíceis de habituar. Por outro lado, extraordinário, estou com a minha família, com os meus amigos, posso contar estas aventuras.

Pretende fazer algo com esta viagem, com os registos que tem?
Acho que ainda é muito cedo, quero absorver tudo e, eventualmente, se ganhar coragem, um livro não está fora de hipótese.

Já tem um próximo desafio em mente?
Tenho muitas aventuras em mente, umas muito difíceis e outras mais fáceis e só giras e divertidas, tenho que perceber o que quero fazer, se quero usar os meus verões para me aventurar e para fazer coisas completamente fora da caixa. Quero usar o facto de ter uma capacidade de endurance (“resistência”, em português) bastante alta devido aos meus treinos, já fiz três Iron Man’s e faço triatlos, não sei se quero usar isso para juntar desafios muito difíceis fisíca e psicologicamente. Há muitas portas que agora gostava de explorar e de abrir, do ponto de vista de aventura só. Tenho de perceber o que quero fazer, mas para o ano só, agora preciso é de assentar e de voltar à minha vida. Mas a resposta é que sem dúvida alguma que vai haver mais aventuras e que isto vai fazer parte da minha vida como sempre fez. Esta não foi a minha primeira viagem, já fiz a Madeira a pé com um amigo meu, com uma tenda às coisas, o rio Douro de kayak também, já fui para os alpes fazer backpackings giríssimos, portanto isto sempre fez parte da minha vida.

Há muitos países no mundo que eu gostava de visitar: a Mongólia, sou completamente apaixonado pela Mongólia, o facto de ser inóspito e da natureza ainda ser maior que o homem. Tenho só de perceber o que quero fazer. Duas coisas são certas: vou querer fazer aventuras para o resto da minha vida e vou querer ir para o Ártico muitas vezes. Adorei aquela zona do globo, apesar dos mosquitos, do frio, há tanto por explorar ali.

Espreite os registos de Manuel na viagem.