"O grande senhor do fado português", "a voz que me fez amar ao fado!". É desta forma que muitos recordam Carlos do Carmo, o fadista que morreu esta sexta-feira, 1 de janeiro, vítima de um aneurisma. Tinha 81 anos e 58 de carreira, que começara em 1964.
O Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, já se pronunciou sobre a morte de Carlos do Carmo, que considera "uma perda nacional, é indiscutível", disse em entrevista à TVI24. "É uma entrada muito triste em 2021. Carlos do Carmo não era apenas a voz do fado. Foi essencial em termos de afirmação do fado como Património Imaterial da Humanidade, mas era também uma voz de Portugal", afirma o presidente.
A elevação do fado a Património Imaterial da Humanidade aconteceu em 2011 e Carlos do Carmo foi escolhido pelo presidente da câmara de Lisboa na altura, Pedro Santana Lopes, para, ao lado de Mariza, ser embaixador da candidatura.
Para Marcelo Rebelo de Sousa, o fadista Carlos do Carmo foi a voz de um período de resistência à ditadura e de construção da democracia. "Foi uma voz de resistência pela liberdade e democracia, primeiro, e depois uma voz sempre pelo povo e por aqueles com quem mais se identificava. Aqueles que mais sofriam, mais davam", disse o Presidente, reconhecendo ainda que por essa razão o fadista nunca quis abandonar o contacto com os portugueses.
"Foi impressionante a sua capacidade de resistência e de dádiva. Várias vezes foi considerado como muito perto do limite físico, mas ultrapassou sempre esses limites. E ultrapassava na base da sua juventude de espirito e daquilo que sentia. Tinha um grande coração, gostava de partilhar esse coração", diz o Presidente da República. Carlos do Carmo deu a voz a muitos escritores, mas sobretudo, termina Marcelo Rebelo de Sousa, "à voz das pessoas". Já numa nota no site da Presidência da República, Marcelo dá os sentimentos à "família, e em particular à tão amada companheira de uma vida, Maria Judite".
Tendo em conta o notável percurso, o trabalho de Carlos do Carmo foi reconhecido pelo Presidente da República em 2016 através da atribuição do grau honorífico Grande-Oficial da Ordem do Mérito, gratificação que se juntou à de Comendador da Ordem do Infante Dom Henrique, que recebera em 1997 pelo presidente da altura Jorge Sampaio.
O fadista nasceu a 21 de dezembro de 1939 e começou a atuar na juventude para os amigos e clientes mais frequentes da casa de fados O Faia, cujos proprietários eram os pais — a fadista Lucília do Carmo e o livreiro Alfredo Almeida. Só em 1964 dedicou-se à carreira artística, construindo um legado no fado com várias canções emblemáticas.
“Lisboa, menina e moça”, letra de letra de Ary dos Santos, Joaquim Pessoa e Fernando Tordo, e música de Paulo de Carvalho, e “Os putos”, são duas das canções mais emblemáticas do fadista, que marcaram das gerações mais velhas às mais novas. Outras interpretações também contribuíram para o sucesso de carreira de mais de 50 anos, como “Canoas do Tejo”, de 1972, um dos clássicos do fado, bem como "Por morrer uma andorinha", "Bairro Alto" e "Um homem na cidade".
Carlos do Carmo foi também um dos rostos do fado lá fora: representou Portugal no Festival Europeu da Canção, na Holanda, em 1976, e em 2014 tornou-se o primeiro artista português a receber o prestigiado prémio Grammy Latino de Carreira.
Fazendo referência ao Grammy, o primeiro-ministro, António Costa, lembrou o cantor no Twitter. "Carlos do Carmo não era só um notável fadista, que o público, a crítica e um Grammy consagraram. Um dos seus maiores contributos para a cultura portuguesa foi a forma como militantemente renovou o fado e o preparou para o futuro", disse num primeiro tweet.
Noutro, fez uso da canção “Fado da Saudade” para se despedir do fadista a quem se refere como "amigo".
Também através do Twitter, a ministra da Cultura, Graça Fonseca, recorda o homem que "mostrou sempre uma especial preocupação com a divulgação desta forma de música".
Outra das figuras da política que lamentou a morte do artista foi presidente da Assembleia da República, Ferro Rodrigues. "Carlos do Carmo é, inquestionavelmente, um nome ímpar do fado e figura incontornável do meio artístico e da canção portuguesa, numa carreira de décadas que perdurará na memória de todos nós", disse em comunicado, de acordo com a TSF, que cita a agência Lusa.
Um ano antes da distinção do Grammy Latino de Carreira, o grande nome do fado completou 50 anos de carreira, data que marcou com a edição do álbum "Fado é amor", para o qual convidou vários fadistas de destaque em Portugal. É o caso de Camané, Mariza, Raquel Tavares, Ricardo Ribeiro e Marco Rodrigues.
O músico Camané já se pronunciou sobre a perda do embaixador do fado e amigo de longa data. "Foi um choque muito grande. Conheço o Carlos do Carmo desde sempre, somos muito amigos. É difícil de lidar, é uma grande referência do fado e continua a ser. Vai ser sempre uma das pessoas mais importantes do fado. Foi uma pessoa que acreditou em mim", afirmou em entrevista à RTP.
Já o guitarrista António Chaínho revelou ter "o coração todo partido" após saber da morte do fadista, que o acompanhou durante 25 anos (até 1991). António Chaínho lembra, de acordo com o "Diário de Notícias", que cita a agência Lusa, "o bom gosto musical" e "o cuidado com a escolha de repertório" — características que faziam de Carlos do Carmo "um grande profissional".
Outros nomes do mundo da música afirmam que "a cidade e o país estão às escuras" com esta perda, disse o maestro António Vitorino de Almeida, enquanto José Cid lembra que conheceu Carlos do Carmo nas festas da Batalha, quando lhe emprestou uma aparelhagem, já que a do fadista avariara devido à chuva, contou à TSF.
Já pelas redes sociais, Herman José, Gonçalo Diniz, Diogo Infante, Tânia Ribas de Oliveira, Rita Ferro Rodrigues, Manuel Luís Goucha e Daniel Oliveira, prestam homenagem ao fadista.
Carlos do Carmo despediu-se dos palcos a 9 de novembro de 2019 no coliseu dos Recreios, em Lisboa, depois de passar pelo Coliseu do Porto a 2 de novembro. "É o ano em que vou fazer 80 anos. Há pessoas que têm uma grande capacidade de durar até aos 90, 100 anos. Eu não tenho. Este é o ano da despedida. Sem amarguras, sem azedumes", disse na altura num vídeo divulgado pela Universal Music Portugal.
Mas nem mesmo depois de pôr fim à carreira Carlos do Carmo deixou de ser premiado. No ano passado, o fadista recebeu o Prémio Vasco Graça Moura — Cidadania Cultural 2020 pelo seu contributo para o fado.
"Desde cedo que a sua voz soube quebrar fronteiras, atravessar gerações, tornando o fado uma manifestação artística de expressão universal. Essa expressão universal foi determinante para a Candidatura do Fado a Património Imaterial da Humanidade, de que Carlos do Carmo foi um dos embaixadores", escreveu o júri do prémio.
Segunda-feira, 4 de janeiro, será dia de luto nacional, conforme decretado esta sexta-feira, 1 de janeiro, pelo Governo, através de uma nota do gabinete do primeiro-ministro, António Costa, de acordo com a TSF. Foi ainda proposta a atribuição da Ordem da Liberdade, a título póstumo, "pelo determinante papel que Carlos do Carmo teve na renovação do fado, atribuição que, de resto, já estava prevista".