Ihor Homeniuk, 40 anos, nacionalidade ucraniana, pai de família. Desembarcou a 10 de março no Aeroporto Humberto Delgado, em Lisboa, vindo de Istambul, na Turquia, com um visto de turista. Não lhe foi autorizada a entrada em Portugal. Recusando-se duas vezes a regressar ao país de origem, o cidadão ucraniano passou a maior parte do tempo no Centro de Instalação Temporária do aeroporto de Lisboa, o último local que viu com vida: dois dias depois de ter aterrado, a 12 de março, o seu óbito foi declarado às 18h40. A causa: as brutais agressões que três inspectores do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF) lhe terão infligido.
A Polícia Judiciária já investigou e o Ministério Público já acusou formalmente os três inspetores. O relatório do procurador dá conta dos contornos das agressões, e deixa clara a tentativa de ocultação dos factos por parte daqueles que levaram a cabo os atos que terão tirado a vida ao cidadão ucraniano.
Nove meses depois, instaurados processos disciplinares, requeridas auditorias, a diretora nacional do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF) demite-se e Eduardo Cabrita, Ministro da Administração Interna, está sobre pressão.
De março a dezembro, e em 17 momentos chave, saiba tudo o que aconteceu no trágico caso de Ihor Homeniuk.
10 de março
Foi o dia em que o ucraniano Ihor Homeniuk chegou ao aeroporto de Lisboa. Vindo de Istambul, desembarcou pelas 11 horas. Foi intercetado por um inspetor do SEF na primeira linha de controlo, sendo, pelas 19h30, entrevistado por outro funcionário. É depois desta entrevista que Paulo Reis, inspetor-chefe, lhe recusa a entrada em Portugal. As razões, diz o relatório do Ministério Público (MP), citado pela revista "Sábado", não foram apuradas, "uma vez que o SEF não esclareceu o motivo da recusa."
Dois inspetores do SEF transportam Homeniuk para o Hospital de Santa Maria, onde foi submetido a vários exames de diagnóstico depois de, relata o relatório do MP, se ter queixado de "dores nos membros inferiores e no flanco esquerdo do abdómen". Aqui incluiu-se uma "tomografia axial computorizada crânio encefálica, não lhe sendo observado qualquer alteração, tampouco confirmado a ocorrência de qualquer convulsão decorrente de ataque epilético", como havia sido considerado.
11 de março
Homeniuk recebeu alta médica a 11 de março, regressando ao Centro de Instalação do Aeroporto de Lisboa. Tinha voo de regresso marcado para Istambul às 15h28. Só que Homeniuk, por motivos que o MP desconhece, recusou-se a embarcar. Escoltado por dois inspetores do SEF, voltou ao Centro de Instalação Temporária.
Pelas 23h49 "elementos do SEF fecharam Ihor Homeniuk na sala dos Médicos do Mundo, isolando-o dos restantes passageiros estrangeiros que se encontravam instalados no citado centro". Poucas horas depois, às 1h06, "por motivos não esclarecidos", deslocam-se à sala dois inspetores e um enfermeiro e uma assistente da Cruz Vermelha Portuguesa. Esse enfermeiro, "sem habilitações para tal e sem prescrição médica, terá administrado a Ihor Homeniuk o fármaco Diazepam, que o acalmou por alguns momentos".
Na mesma madrugada, diz o MP, o homem voltou a dar sinais de agitação. Na sequência disto, dois vigilantes da empresa de segurança imobilizaram-no, "colocando-lhe fita adesiva à volta dos tornozelos". Chamaram os inspetores do SEF ao local, que chegaram pelas 4h41m e, depois de falarem com Homeniuk, sairam às 4h52m.
12 de março
É nesta manhã que ocorrem as agressões que acabam por pôr termo à vida de Ihor Homeniuk. Eram 8h15 quando os inspetores Duarte Laja, Bruno Sousa e Luís Silva, equipados com um bastão extensível e algemas, se juntam ao ucraniano na sala em que este passou a noite. "Atenção, você, não vá colocar aí os nossos nomes, ok?", alertaram a vigilante da receção, responsável por registar entradas e saídas.
Segundo o MP, os inspetores algemaram o ucraniano com as mãos atrás das costas, amarrando-lhe os cotovelos com ligaduras. E iniciam-se as agressões: "Desferiram no corpo do ofendido número indeterminado de socos e pontapés", escreve o MP. "Encontrando-se o ofendido prostrado no chão os três inspetores também com o bastão extensível continuaram a desferir pontapés e bastonadas no corpo daquele, enquanto aos gritos lhe exigiam que permanecesse quieto".
Vigilantes aproximaram-se da sala, que tinha a porta apenas encostada. Duarte Laja mandou-os embora: "Isto aqui é para ninguém ver". 20 minutos depois, os três inspetores abandonaram o local, "deixando Ihor Homeniuk em posição de decúbito ventral, algemado e com os pés atados por ligaduras, sendo que enquanto o faziam, um deles disse aos vigilantes de serviço: 'Agora ele está sossegado'", descreve o procurador do MP. E ainda acrescentou: "Hoje já nem preciso de ir ao ginásio".
No mesmo dia, já durante a tarde, às 16h43 , o inspetor chefe e um inspetor do SEF contavam tentar novamente que o homem embarcasse num voo para Istambul. Mas já era tarde demais, uma vez que este não reagia. Acionaram a Cruz Vermelha, o INEM e uma Viatura Médica de Emergência e Reanimação. O óbito de Ihor Homeniuk foi declarado às 18h40 do mesmo dia.
O corpo seguiu para o Instituto de Medicina Legal, onde numa ficha preenchida pelo inspetor do SEF Ricardo Girante, este tentou ocultar os factos, escrevendo que o cadáver "era proveniente da via pública".
No mesmo dia, em comunicado, o SEF confirmou o óbito do cidadão ucraniano, adiantando que "a ocorrência foi também comunicada à Inspeção Geral da Administração Interna”.
“O SEF está desde o início a colaborar com as autoridades envolvidas na investigação e tomou de imediato as medidas previstas em sede disciplinar”, continuou.
14 de março
O resultado da autópsia — que levou a que só aí Polícia Judiciária fosse acionada, tendo recebido já no correr da investigação uma denuncia anónima — revelou que o homem apresentava "lesões traumáticas, nomeadamente múltiplas equimoses na cabeça, no tronco e membros", fraturas das costelas e hemorragias internas.
As provas não deixavam dúvidas para a situação de extrema violência que terá culminado na morte de Ihor: "As fraturas dos arcos costais associadas às demais lesões contundentes foram provocadas pela aplicação de um peso tal nas costas do ofendido, obrigando o tórax a esmagar-se contra o solo", diz o relatório.
A causa direta da morte foi a asfixia mecânica resultante das agressões e da posição em que a vítima se encontrava: "Os pontapés e pancadas que provocaram a fratura dos arcos costais, potenciados pela imobilização do ofendido, com os braços manietados nas costas, em posição de decúbito ventral, causaram a violenta constrição do tórax, que promoveu a asfixia mecânica que foi causa direta e necessária da morte de Ihor Homeniuk".
30 de março
A PJ anuncia que os três inspetores do SEF, com 42, 43 e 47 anos, foram detidos e presentes a interrogatório judicial que determinou a medida de coação de prisão domiciliária, devido à COVID-19. Caso contrário, teriam sido levados para a cadeia de Évora.
“A Polícia Judiciária, através da Diretoria de Lisboa e Vale do Tejo, com a colaboração do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras, identificou e deteve três homens, de 42, 43 e 47 anos, por fortes indícios da prática de um crime de homicídio”, lê-se num comunicado da PJ. “Os detidos integram os quadros daquele Serviço e a investigação apurou que serão os presumíveis responsáveis pela morte de um homem de nacionalidade ucraniana, de 40 anos, que tentara entrar, ilegalmente, por via aérea, em território nacional, no pretérito dia 10 de março”.
No mesmo dia, a Inspeção-Geral da Administração Interna instaurou processos disciplinares ao diretor e subdiretor de Fronteiras de Lisboa, ao coordenador do Espaço Equiparado a Centro de Instalação Temporária do Aeroporto, assim como aos três inspetores do SEF, que por esta altura já tinham o julgamento marcado.
8 de abril
Eduardo Cabrita, ministro da Administração Interna, é ouvido no Parlamento. Fala em e "negligência grosseira e encobrimento gravíssimo", anunciando ainda o fecho e restruturação do Centro de Instalação Temporária do Aeroporto de Lisboa, que deixa de alojar requerentes de asilo, passando apenas a ser utilizado para cidadãos com recusa de entrada em Portugal.
1 de agosto
É reaberto Centro de Instalação Temporária do Aeroporto de Lisboa, remodelado e com novo regulamento. Entre as alterações, destacam-se as camaratas que passam a ser quartos individuais, cada um com um botão de pânico. O novo regulamento só vem a ser comunicado internamente a todas as unidades orgânicas do SEF muitos meses depois: a 26 de novembro.
26 de setembro
A investigação da PJ concluiu que as agressões dos inspetores do SEF levaram à morte do imigrante, confirmando ainda o não envolvimento dos seguranças que estavam de serviço no Centro de Instalação Temporária, uma vez que lhes foi barrada a entrada para a sala onde ocorreu o crime, o que fez com que não tivessem gravidade da situação que ali fora desencadeada.
30 de setembro
Indicados pelos crime de homicídio qualificado, três inspetores são formalmente acusados pelo Ministério Público de homicídio qualificado, na forma consumada, em coautoria. Estão em prisão domiciliária até à data do julgamento, que terá início em janeiro.
7 de outubro
São enviadas ao Ministério Público as conclusões do inquérito da Inspeção-Geral da Administração Interna que leva à instauração de 12 processos disciplinares. Como resultado, envolvem-se no caso outros nove inspetores que terão contribuído para morte de Ihor Homeniuk, "por acção ou omissão". Aos magistrados do MP, foi inclusivamente dito que Homeniuk teria sido "acometido de doença súbita".
30 de outubro
O Governo anuncia que se será realizada uma auditoria aos procedimentos internos do SEF, com vista a uma avaliação e correção. No início do mesmo mês, é assinado um protocolo entre o Ministério da Administração Interna, o Ministério da Justiça e a Ordem dos Advogados para garantir a assistência jurídica do Estado a cidadãos estrangeiros a quem é recusada a entrada no País.
6 de novembro
A família de Ihor Homenyuk pede uma indemnização ao Estado português de um milhão de euros. O cidadão ucrâniano deixou para trás uma mulher viúva e dois filhos menores, de 14 e 9 anos. Era, segundo o jornal "Público", o sustento da família.
18 de novembro
É apresentado um requerimento, pelo PSD e deputada não inscrita Joacine Katar Moreira, a exigir a audição do ministro da Administração Interna, Eduardo Cabrita, e da então diretora do SEF, Cristina Gatões. O PS pede também uma audição à Provedoria de Justiça Maria Lúcia Amaral, alegando a conduta atentatória dos direitos humanos, o que implica a ativação do o Mecanismo Nacional de Prevenção da Tortura, integrado na Provedoria.
8 de dezembro
Depois de a 1 de dezembro Ana Catarina Mendes, líder parlamentar do PS, ter afirmado que votaria a favor daqueles requerimentos, a 8 de dezembro, Duarte Marques, deputado do PSD faz um apelo ao Ministro da Administração Interna: ou muda a direcção do SEF ou que abandone o Governo.
9 de dezembro
A diretora nacional do SEF, Cristina Gatões, demite-se, sendo, no entanto, a sua saída justificada pela redefinição do "exercício das funções policiais relativas à gestão de fronteiras e ao combate às redes de tráfico humano". Luís do Rosário Barão e Fernando Parreiral da Silva, diretores nacionais adjuntos, passam a estar responsáveis pela direcção do SEF. Segundo a SIC Notícias, a diretora do SEF já tinha recusado a demissão, alegando ao mesmo canal que "quando as coisas estão muito difíceis é aí que devemos estar."
No mesmo dia, Oksana Homenyuk, mulher de Ihor, deu uma entrevista exclusiva à SIC revelando que, nove meses depois do crime, não recebeu algum tipo de apoio por parte do Estado português.
10 de dezembro
Depois de Ana Catarina Mendes ter destacado um "silêncio ensurdecedor" do Ministro da Administração Interna, no Dia dos Direitos Humanos, o gabinete de Eduardo Cabrita lançou um comunicado afirmando que o Ministro da Administração Interna condenou "desde o primeiro momento" o acontecimento que envolveu Ihor Homenyuk: “Os trágicos acontecimentos ocorridos no Espaço Equiparado a Centro de Instalação Temporária do Aeroporto de Lisboa foram, desde a primeira hora, condenados, em várias declarações públicas, pelo Ministro da Administração Interna”.
No mesmo comunicado, o gabinete de Cabrita refere “o seu total empenho no apuramento de toda a verdade e das consequentes responsabilidades criminais e disciplinares”, apontando ainda várias medidas levadas a cabo assim que se teve conhecimento "da natureza criminal dos factos ocorridos".
Entre eles: a "abertura de um inquérito por parte da Inspeção Geral da Administração Interna (IGAI)”; “a abertura de processos disciplinares ao Diretor e Subdiretor de Fronteiras de Lisboa — cujas comissões de serviço foram cessadas no próprio dia — bem como a todos os envolvidos nos factos relativos ao falecimento de um cidadão estrangeiro naquelas instalações”; o encerramento do espaço do Centro de Instalação Temporária, em que permaneceu e faleceu Ihor Homenyuk, de modo a que se procedesse à "reestruturação e introdução de alterações significativas”.
11 de dezembro
Através da embaixada ucraniana Eduardo Cabrita envia uma carta a Oksana Homeniuk, dando-lhe conhecimento da decisão tomada pelo governo no dia anterior de pagar uma indemnização à família de Ihor Homeniuk. Segundo o comunicado enviado pelo gabinete do ministro da Administração Interna, a embaixadora da Ucrânia em Portugal, Inna Ohnivets, ficou ainda a saber dos procedimentos que estão em curso para o apuramento dos factos ocorridos a 12 de março, dia em que o cidadão ucraniano foi morto.
Cabrita reforçou ainda as condolências, que já em abril, diz o comunicado, haviam sido dirigidas à embaixada e à família de Ihor Homeniuk.