“Quando andas de bicicleta tens de assumir que és invisível para os carros." A afirmação até pode soar a exagerada, mas faz com que se jogue pelo seguro. Quem o disse foi Miguel Batista, o nosso bike buddy e um dos dirigentes da MUBI — Associação pela Mobilidade Urbana em Bicicleta, um projeto que visa melhorar as condições para a utilização de bicicletas e que como meio de transporte e que disponibiliza voluntários que acompanham gratuitamente quem quer e tem receio de utilizar este meio de transporte pelas estradas de Lisboa. Era nesse contexto que nos encontrávamos.
Eram cerca das 19 horas quando arrancámos. Estavamos em plena hora de ponta e havia carros apressados a lotarem as artérias principais e secundárias da cidade. Diz-se que quando se aprende a andar de bicicleta é para a vida e não se esquece, mas rapidamente se percebe que a prática e a habituação são mesmo importantes para se dominar o veiculo que será, para muitos, o primeiro que se aprende a guiar. Ironias da vida à parte, as primeiras pedaladas foram tortas, toscas e pouco harmoniosas. É preciso trabalhar o equilíbrio, enquanto se gerem alguns obstáculos psicológicos e físicos impostos pela primeira viagem num contexto urbano, que está longe de ser semelhante ao de outras cidades europeias, como Amesterdão, na Holanda, onde há mais velocípides do que automóveis.
Ainda bem que tudo começou na ciclovia da Avenida Guerra Junqueiro, que liga a Alameda Afonso Henriques à Praça de Londres. Aqui há tempo e espaço para iniciar o processo de adaptação. Optámos por utilizar o serviço da Emel GIRA, o sistema de bike sharing de Lisboa que acaba de fazer um ano e que disponibiliza bicicletas elétricas e clássicas em vários pontos da cidade. Mas não foi fácil. Primeiro problema: não havia nenhuma disponível nas proximidade, no momento em que chegámos, mas, tudo bem, o fluxo mexe-se rápido e em pouco tempo lá estacionou uma. O segundo foi mais grave. Demorámos cerca de 45 minutos a conseguir desbloquear uma, porque a aplicação estava cheia de problemas. Quando tudo parecia perdido, e depois de uma conversa de 15 minutos com um operador de call center, eis que lá aparece o botão que permite iniciar a sua utilização. “Primeira coisa a fazer é confirmar se o banco está na medida certa”, disse Miguel. E assim foi.
Andar de bicicleta na cidade pela primeira vez é como pegar no carro sozinho, depois de se tirar a carta de condução, só que com a consciência de que não há chapas a protegerem-nos, apesar de estudos indicarem que quando maior a prática, menor o risco de acidente. E há outras vantagens: é muito barato, amigo do ambiente, da saúde e da boa forma física. É também leve e portátil portanto, havendo alguma dificuldade, é só pôr os pés no chão e, com segurança, passar para o passeio e levá-la à mão. “Quando começas a sentir adrenalina, o melhor é parar e levar a bicicleta na mão”, avisou o Miguel.
Terminada a ciclovia — num sítio completamente aleatório, como acontece com várias estradas para velocípedes da cidade — iniciou-se o derradeiro desafio: andar na estrada, ao lado dos outros carros. Estávamos na Praça de Londres e o movimento até estava controlado. “Não andes demasiado encostada aos carros estacionados porque podem não te ver e abrir uma porta de repente”, disse Miguel, coordenador do sector audiovisual da Escola Superior de Comunicação Social.
Na Avenida de Roma, enquanto ainda estamos a atinar com as mudanças, num roda-não-roda para acertar com a mais adequada, o cenário torna-se mais agitado. Há duas faixas cheias de carros. Nota-se que o trânsito esteve há pouco tempo no seu auge, portanto a marcha está lenta e ainda se circula aos soluços, no típico para-arranca do final do dia. Há carros em segunda fila e os condutores estão como sempre: stressados e impacientes para chegar a casa. Há buzinadelas, mas isso acontece independentemente do veiculo utilizado, lembrou-nos Miguel. Em hora de ponta e ambientes urbanos a tolerância é zero. Já se sabe.
“Marca a tua posição”, disse. “Se te encostas demasiado à berma os carros não te dão espaço.” Se o mais seguro for ocupar a faixa da direita no centro, então que assim seja. De acordo com a MUBI, “quando um ciclista circula mais ao centro da via, força o condutor do automóvel a efetuar uma ultrapassagem a partir da velocidade do ciclista, sendo assim muito mais segura”, o que resulta em ultrapassagens controladas e menos arriscadas, “devendo naturalmente o ciclista facilitar sempre que possível esta mesma ultrapassagem.”
Apitem e buzinem o que quiserem. O mindset tem de ser este, porque de outra forma esvai-se a calma. Nenhuma lei do código da estrada está a ser infringida. Os veiculos motorizados e as bicicletas têm várias regras em comum. Têm de parar quando está vermelho, arrancar quando está verde. Não podem ultrapassar pela direita, até porque é mais perigoso para o ciclista do que para o condutor que vai a motor. Devem parar nas passadeiras para deixarem os peões passar e sinalizar sempre que há uma mudança de rota, o que implica uma complicada capacidade acrobática, em que uma das mãos tem de largar o volante para fazer o sinal. Com a direita até é fácil, mas com a esquerda a coisa muda de figura, sob o risco de levarmos as rodas na direcção errada. A solução é treinar em locais mais calmos. O corpo tem memória e habitua-se facilmente.
Não se pode utilizar o telefone, a não ser quando se trata de um sistema de mãos livres (um auricular, alta-voz ou microfone) e não se pode conduzir sob a influência de álcool e substâncias psicotropicas. Nas passadeiras a bicicleta só pode andar se o condutor a levar pela mão, a pé. Recentemente, em contexto de cruzamentos e de rotundas, as bicicletas passam a ter os mesmos direitos e a respeitar as mesmas regras que outro tipo de veiculo nas cedências de passagem. Antes, ficavam para último.
Mas também tem particularidades únicas. Por exemplo: os velocípedes não precisam de carta de condução e não existem limites de idade estipulados. Não têm de ter seguro ou matrícula e, não causando perigo, podem circular na via pública lado a lado, em par, excepto nas ciclovias.
Em qualquer mudança de faixa ou de rota, é importante olhar. Só que como não há espelhos retrovisores, o trabalho é do pescoço, que deve girar, por cima do ombro. Manter uma distância de segurança também faz parte das medidas de segurança do ciclista, sobretudo quando o piso está molhado. "A 15 quilómetros por hora um carro parra quase instantaneamente, mas uma bicicleta demora mais um bocado", alerta Miguel.
A cabeça vai sem capacete, porque não é obrigatório em Portugal, como em nenhum outro país da União Europeia. Os estudos não são conclusivos, mas há alguns que demonstraram que nos países onde a sua utilização é imposta, por um lado, há menos ciclistas, o que tem consequências negativas para o ambiente, e, por outro, os próprios condutores correm mais perigo pela falsa sensação de protecção.
O pior são as rotundas. Como explicou Miguel, ao contrário do que acontece com os carros, as bicicletas podem andar sempre na faixa mais próxima das saídas. Só que há o problema dos automóveis que vão sair na primeira, o que os faz bloquearem o caminho, pondo o ciclista em perigo. Para evitar acidentes, o voluntário da MUBI, entra na faixa correta, só que junta-se mais à linha de dentro. Os braços sinalizam a entrada e a saída. É muita coisa ao mesmo tempo. A medo, lá fomos nós atrás.
“Num cruzamento, olha sempre nos olhos do condutor. Se ele não olhar para ti, assume que não te viu”, avisa. “E quando vais para um passeio ou passas em cima de um carril do elétrico, nunca o faças na diagonal, porque a roda pode escorregar.”
Já estamos a pedalar há mais de meia hora. Em trinta minutos o equilíbrio aumentou exponencialmente. O braço direito já sinaliza bem, mas o esquerdo precisa de mais treino. O fluxo de trânsito está mais calmo e os carros já não metem medo.
Lisboa tem sete colinas. Altos e baixos. Estradas pequenas e muitos carros. Mas, como tão bem nos fez notar Miguel, tem sol, pouca chuva e temperaturas perfeitas para que este meio de transporte seja o ideal, sobretudo quando o acesso às elétricas é fácil e barato, através do sistema de bike sharing que utilizámos, apesar de este ainda não estar presente em várias zonas da cidade.
Despedimo-nos do Miguel na Estação Roma-Areeiro, depois de 45 minutos a pedalar entre nas ruas circunscritas entre a Alameda, o Bairro de São Miguel e de Alvalade. Faltava pouco para a luz do dia desaparecer. A maioria das pessoas já jantava e a estrada estava calma. Estávamos a poucos quilómetros de casa e decidimos seguir caminho de bicicleta, agora sem a ajuda de ninguém, mas respeitando as regras que nos tinham sido explicadas na última hora. Enfrentar os medos tem destas coisas. Vão desaparecendo.