Diogo Clemente já compôs para grandes nomes da indústria aa música portuguesa, como Carminho, António Zambujo, Sara Correia e Luís Trigacheiro, mas foi aos 39 anos que lançou o seu primeiro álbum em nome próprio, “Amo-te e Outras Coisas Pra Te Dizer”, que saiu este mês de outubro.

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O disco será acompanhado por um livro de 130 poemas e, à MAGG, revela o que o fez querer dar-lhes voz agora e o porque não se considera um cantor, mas sim um “intérprete de fotografias de uma vida”. Além disso, já que nasceu no fado, como o próprio afirma, abordou as críticas de que a fadista Ana Moura é alvo devido à sua sonoridade atual.

Diogo Clemente tem três filhos, Santiago, 8, Benjamim, 7, e Guilherme, 5 anos, fruto da relação com Carolina Deslandes, de quem se separou em 2020 após cinco anos juntos. Os dois continuam a ser os melhores amigos e, em 2025, vão levar o espetáculo “Eu e Ele” ao Coliseu dos Recreios, em Lisboa, a 24 de janeiro, e ao Coliseu do Porto a 7 de fevereiro.

Leia a entrevista.

“Amo-te e Outras Coisas Pra Te Dizer” é o seu primeiro álbum. Como o descreve?
Ao fim de muitos anos a escrever e de passar uma vida inteira a escrever, não só pelo ato de escrever como pelo ato de escrever para alguém cantar, eu escrevi muito para muitos cantores e fui muito feliz nos intérpretes que cantaram as minhas coisas. Neste mar, eu tinha a perspetiva de um dia fazer um livro e aproximou-se esse tempo. Com a reunião da obra e das coisas que fiz até hoje, consegui um mar de poemas, que, no caso, o livro terá 130 poemas. O livro vai sair no fim de novembro. Entre os poemas, foram surgindo as canções, umas porque são demasiado pessoais e intransmissíveis, outras porque queria que o tempo lhes desse respiração, que não fossem acontecer no momento em que as escrevi, porque eram demasiado marcantes.

Então, somando essas coisas todas agora à distância do tempo, apeteceu-me celebrar assim estes anos todos a escrever. E são poemas de amor todos, são todos à volta do mesmo motivo. São várias faces do amor, são várias formas de olhar para diversos momentos que todos identificamos na nossa vida, todos que entramos no atrevimento de nos apaixonarmos e aquilo ser maior que nós. Algumas histórias não são minhas, mas a grande parte são, naturalmente, poemas da minha vida.

Apesar de ser fadista, este álbum também tem outras sonoridades, correto?
Sim, o álbum é um espelho da parte terra do meu percurso. É um álbum que, naturalmente, tem uma base até de escrita e de composição e de interpretação fadista, porque um fadista nunca conseguirá fugir da sua pele, vai sempre ter esse tempero. Eu sou filho do fado, nasci no fado, portanto é indissociável de mim. Mas nenhum dos temas tem o propósito de ser um fado, a não ser o único fado que há, que é o “Senta-te À Mesa”, que é, no caso, tocado só com viola e voz. Mas tudo o resto são influências sul-americanas, africanas, jazzísticas, canção francesa. São todos os géneros que tive o prazer de crescer com eles e de viver essa cultura, de me influenciarem, de me inflamarem a inspiração sempre. Mas tudo tem essa parte do fado por cima. É, acima de tudo, um álbum todo acústico. Pela crueza dos poemas, eu quis que tudo se mantivesse orgânico. São tudo instrumentos orgânicos, não há instrumentos eletrónicos nem elétricos.

Este saiu na sexta-feira, 11 de outubro. Como está a ser o feedback dos ouvintes?
Está a ser espetacular, porque, naturalmente, eu pertenço a uma comunidade que é magnífica, que são os artistas, e isso é muito especial, ver a reação dos meus semelhantes e as pessoas ficarem contentes por eu, finalmente, ter feito um álbum. Mas, acima de tudo, a reação do público é muito gratificante. A quantidade de mensagens que recebo com pessoas imediatamente a ouvirem canções e a guardarem determinadas canções para a sua vida, pessoas a dizerem-me: ‘é impressionante como esta canção é a descrição absoluta do que estou a viver neste momento’. Isso é a melhor coisa que me podem dar, porque a música é feita para ser um remédio, para ser terapêutica à vida. Se as minhas músicas puderem acalentar e tornar melhor a vida de pessoas, é tudo o que eu quero.

Até então, tocava, produzia e compunha para outros artistas. O que lhe fez querer dar voz aos seus poemas? E porquê agora?
É a conjuntura. Eu não tenho nada que diga: ‘por esta determinada razão planeei’. Foi absolutamente porque me apeteceu, porque podia ter sido há cinco anos atrás, há dez, há 15. Apeteceu-me fazer agora. Há um momento em que apetece beber um whisky, há um momento em que apetece fumar um cigarro, há um momento em que apetece fazer um álbum, é igual. Não tem qualquer premeditação. Olho à minha volta e a conjuntura dos meus amigos, da Sara Correia, com quem trabalho, a Manuela Marques, que é a minha mulher e que me dá muito apoio aqui na parte da imagem do álbum, da estética do que é o “Amo-te e Outras Coisas Pra Te Dizer”, do João Melo, o designer do livro. São todos meus amigos, pessoas que acompanham a minha obra, e acho que é o momento em que estou, em que já tenho uma distância do conteúdo do livro e do disco. Tenho uma distância saudável para poder ir revisitar tudo, reunir e poder trabalhar sobre as coisas. Já não é uma distância que esteja inflamada pela obra, estou só a gozar dela. Então agora posso fazê-la. Agora apetece-me fazer. E isso é ótimo.

Não se considera cantor, mas sim “intérprete de fotografias de uma vida”. Porque faz essa distinção?
Ser-se cantor é um determinado lugar muito específico. Eu tenho tido o prazer de trabalhar com os melhores cantores portugueses e grandes cantores do mundo, e tenho a noção do que é essa dimensão. E claro que um cantor é um intérprete também, mas um intérprete não tem que ser um cantor. E eu, apesar de gostar de cantar e gostar muito de me ouvir, acima de tudo gosto muito de me ouvir na parte em que estou a interpretar a honestidade do que estou a dizer. Não tem a ver com as notas que cante ou a impecabilidade ou a técnica do canto. Para produzir a Sara Correia, que é um fenómeno de cantora em qualquer parte do mundo, eu vou-me preocupar com a interpretação dela. A interpretação vai ser sempre muito mais valiosa. O corpo do que o artista está a fazer é a interpretação. Se a somar a isso for um grande cantor, é incrível. Eu considero-me um intérprete, porque ser um grande cantor é um outro lugar que não este. Gosto muito de contar as minhas histórias com notas, isso é muito bom.

Apesar de ter vencido a Grande Noite do Fado do Porto com 14 anos, afastou-se deste lado até agora. Porquê?
Nós, na adolescência, somos cavalos bravos criativos. Queremos um mundo. Eu comecei a tocar com 12 anos, aos 14 estava no conservatório. Quer dizer, nasci no fado e conheço o fado como conheço beber água. Nasci cá, não tenho um momento da minha vida que eu diga que vim. Então, quando comecei a tocar viola, comecei imediatamente a tocar fado. Comecei a tocar imediatamente na noite e, aos 15 anos, estava a tocar em estruturas profissionais, aos 16 fazia concertos com a Ana Moura no primeiro álbum, no princípio, fiz concertos com o Carlos do Carmo, a seguir vem o primeiro álbum da Raquel Tavares, em que eu já estava a coproduzir. E vem a escrita ao mesmo tempo, ou seja, são tudo coisas que eram muito fascinantes.

Acima de tudo, há uma coisa que eu gosto muito: eu gosto muito de curtir na minha solidão. O maior prazer que eu tenho não é ir o para o palco interpretar o que quer que seja. O maior prazer que eu tenho, o maior, não quer dizer que eu não tenha prazer de ir para o palco, mas o meu maior prazer é criar. O meu maior prazer é criar incessantemente, estar dentro de um estúdio ou estar dentro de um espaço em que me sinta confortável de escrever e compor e arranjar e gravar. Criar o novo. Todas estas áreas fazem muito mais criar o novo, sempre. E eu tinha muita necessidade disso. Isso ganhou uma predominância, porque depois a vida correu-me muito bem, fui muito feliz. Tive um percurso até hoje que posso considerar-me orgulhoso dele e isso é muito bom. O meu nome é ser transversal aqui nestes 15 anos últimos, ao momento que o fado atravessa, deixa-me muito feliz. E não trocaria o percurso que fiz até hoje por nada. Se voltasse atrás, iria repetir o tudo exatamente igual. Também não iria fazer um álbum meu, iria voltar a fazer aos 39 [anos].

Como costuma ser o seu processo criativo na escrita de poemas? É algo orgânico?
Isso não tem muito método. No entanto, houve um dia em que criei método. Até certa altura não tinha, mas depois, no Rio de Janeiro, a conversar com o Chico Buarque, que é um Deus para mim e que, a determinada altura da minha vida, tive a felicidade não só de conhecê-lo mas de poder trabalhar com ele, o Chico disse uma coisa que foi: ‘eu tenho uma melodia, mas depois escrever é uma arquitetura’. Pensei: ‘uau’. Pensei que aquilo tinha sido um momento de inspiração, que Deus tinha entrado no corpo e saído e que ele tinha escrito aquilo. Não, foi pensado, foi estruturado. As formas mais fadistas eu não premedito. As formas mais fadistas, no bom sentido, são vómitos. Eu preciso mandar isso para fora, mas em determinadas canções que têm estruturas, que têm refrões, que têm narrativas e desenhos, eu gosto muito de arquitetar. São dois métodos diferentes e gosto tanto de um como de outro.

Já compôs para artistas como Sara Correia, Carolina Deslandes, Carminho, Luís Trigacheiro. Como é ver estes nomes inconfundíveis da música portuguesa a interpretar as suas composições?
Sabes que é muito orgânico, esse é que é um processo muito orgânico. Acho que não me lembro de ter um momento na minha vida em que eu dissesse que uma determinada canção é cantada por alguém que está longe de mim. Por norma, são sempre pessoas perto, todas as pessoas de que possas falar que cantaram a minha obra, e que eu muito feliz fico, são tudo pessoas com quem eu trabalhava, com quem eu até produzia e fazia a direção musical. Por norma, as coisas estão sempre muito envolvidas, eu também sou aquele projeto.

Eu sou muito aranha dentro de todas as circunstâncias aonde estive e para onde compus e escrevi. Carminho, Raquel Tavares, Sara Correia, Marisa, a Carolina Deslandes, o Luís Trigacheiro, que produzi o álbum também. São tudo circunstâncias. Depois, pontualmente, dou um tema ou outro. Dei um tema que gosto muito ao Buba Espinho, ao Marco Rodrigues, mas são pessoas minhas, são pessoas minhas também. Eu gosto muito do Buba, é meu amigo, gosto muito do Marco Rodrigues. São pessoas próximas de mim, até porque os meus poemas são muito pessoais, eu tenho muito carinho por eles. Não me despego assim, é como partilhar com um amigo uma coisa que é minha.

Pretende continuar a conjugar estes vários lados, o de intérprete, compositor, produtor?
Eu estou sempre no meu lugar e o meu lugar é muito feliz. Eu, na verdade, nunca deixei de ser intérprete estando onde estou. Não está é a cara à frente, mas é uma coisa muito feliz de se estar. Sou muito feliz no percurso que tenho feito, vou continuar nele, mas sim, abri aqui esta porta e é uma porta que eu quero viver. Quero fazer concertos e receber as pessoas, poder falar-lhes da minha música, falar-lhes do meu percurso, as pessoas também poderem falar comigo, porque, por norma, estou sempre atrás. Recebo muitas mensagens nesse sentido: ‘queria falar mais consigo e não consigo’. Estou aqui e quero poder falar com as pessoas e ter contacto direto, vai haver essa hipótese. Quero fazer concertos por Portugal e em formatos confortáveis em que toda a gente possa sentir-se confortável no meu espaço, serem bem-vindos onde eu esteja.

"O fado não é uma música que prende, é uma música que liberta"

Falou da Ana Moura, que é criticada pela reinvenção que tem dado ao fado. O que pensa disso, já que nasceu no fado como disse?
Isto é muito importante que fique esclarecido entre toda a gente e entre os portugueses. O fado não é uma música que prende, é uma música que liberta. Imagina que é como uma família em que uma mãe dá vários filhos. Esses filhos vão ser todos diferentes, até vão ter somas de apelidos, não é? É isso que fazemos na música. O fado tradicional não mudou nem vai mudar, aquilo que acontece dentro das casas de fado, e aí sim é a mãe do fado. É igual. Os fados tradicionais são a educação musical, a mãe musical, aquilo que nos dá uma matriz, uma identidade. E é muito importante que a comunidade fadista proteja e tenha noção da velocidade da informação dos tempos de hoje e da invasão, porque as catedrais, onde são as missas, são as casas de fado. É onde o fado vive e é uma tradição oral, não há outra forma, têm que ser preservadas sempre. Tudo o que acontece, todos os resultados que acontecem fora disso, são variações, são tudo coisas maravilhosas e muito bem-vindas, porque são inspirações. O fado inspira, o fado dá gasolina e liberta nesse sentido. Toma lá uma linguagem musical e agora mistura-a com o mundo, mistura-a com a tua vida, mistura-a com as tuas influências.

Um ótimo exemplo é a Ana Moura. Em 2002, eu tocava com a Ana Moura. 2002 foi há 22 anos. A Ana Moura tem 22 anos de fado e teve muitas noites de casas de fado, tem muitas noites de respirar de fado e é das maiores fadistas da história. Aquilo que faz, é uma absoluta identificação da Ana Moura. Eu conheço a Ana há muitos anos, a Ana é fadista, mas é afro, mas é gingada e conseguiu encontrar uma linguagem em que conseguiu somar tudo. Isso é lindo, é uma peça única. Nós não somos proletariado de uma única empresa. Nós somos donos, nós somos os CEO’s da nossa obra, nós somos os CEO’s da nossa identidade. E ela encontrou essa identidade, como a Sara, como a Carminho, como a Marisa, como o António Zambujo.

O António Zambujo foi absolutamente disruptivo. Eu fico muito feliz por ver e acompanhar de perto a liberdade com que os fadistas – pois na sua matriz todos os fadistas cantam um fado com uma beleza tamanha –, com uma viola, uma guitarra e um baixo, entram numa casa de fado, cantam e são sublimes e são grandes fadistas. A sua obra artística, aquilo que é a soma com outras coisas e com outros géneros e outras influências, são o 100% daquilo que a pessoa é artisticamente e isso é outro lugar. Era muito importante ir-se ver os vídeos do Alejandro Sanz a cantar flamenco e a tocar flamenco, é um flamenquista de mão cheia, dos melhores flamenquistas que Espanha tem. O Pablo Alborán é um flamenquista assustador. A Concha Buika... São artistas espanhóis que, apesar de na sua matriz serem grandes flamenquistas, depois vão seguir o seu caminho e vão criar a sua ilha. Inspirado naquele continente, criaram a sua ilha. Não deixam de fazer parte do país, mas têm a sua ilha e devemos aplaudir e dar força.

No próximo ano, vai dar dois espetáculos com Carolina Deslandes, “Eu e Ele”. Porque decidiram repetir o que aconteceu há sete anos?
Por isso mesmo, porque o “Eu e Ele” foi o princípio de tudo. Fizemos “A Vida Toda” e, depois d’ “A Vida Toda”, fazemos o “Casa” e o “Casa” é um boom. Mas, antes do “Casa”, houve estas kitchen sessions que nós fazíamos e foi uma explosão de datas em espaços muito pequenos. Foi o momento de acontecer a Carolina para o País, para o país orgânico, para o Portugal português, o Portugal fora do digital, o Portugal das pessoas dos 8 aos 80. Isso foi muito bonito de viver e, a partir daí, voou e tem sido o percurso da maior criativa portuguesa da história. E depois de passar por tudo isto e de umas dezenas de ouros e platinas, nomeações para Grammys e tudo mais, olhámos um para o outro e eu disse: e se fôssemos fazer outra vez aquilo com que tudo começou mas no Coliseu? E pronto, vamos fazer o Coliseu de Lisboa no dia 24 de janeiro e 7 de fevereiro no Porto. Estamos muito contentes por preparar esse concerto, ainda ninguém sabe o que vai acontecer, mas vai ser especial de certeza, como eram aquelas noites. Foram noites magníficas.

Vocês estiveram casados alguns anos, têm 3 filhos em comum e separaram-se em 2020. Como é que conseguiram tornar-se “melhores amigos” e parceiros de trabalho?
Acho que é o contrário. Não sei porque é que isso não pode acontecer. É a minha melhor amiga, eu sou o melhor amigo dela. Ou seja, eu nem tenho resposta, porque é muito natural. Preservamos uma família com uma proteção enorme, temos a cumplicidade artística que temos e, depois, é uma pessoa extremamente importante para mim, é a minha melhor amiga e é uma pessoa que me ajuda muito e eu ajudo-a a ela, como todas as pessoas que são os melhores amigos. Se serve de exemplo, que bom, porque é estranho quando não é assim. Não consigo imaginar não ser assim.