Quando alguém vier a este restaurante e pedir um rissol de berbigão para entrada, não está apenas a pedir um rissol de berbigão. Nem a rabanada com gelado de cardamomo é apenas uma sobremesa.
Cada um destes pratos é um passo em frente no caminho de quem o cozinha e o serve. É que todos eles têm um traço em comum: já viveram na rua e para lá não querem voltar.
Alexandra tem 40 anos, mas não se lembra ao certo que idade tinha quando começou a consumir. Já as datas positivas, essas não esquece. "Estive dez anos limpa e, desde a minha última recaída, já lá vão oito meses", conta à MAGG.
Trabalhava numa instituição de apoio a pessoas com paralisia cerebral na mesma altura em que vivia na rua, na zona de Santa Apolónia. Mas nunca ninguém no seu trabalho soube. Fez questão de se arranjar sempre bem e muniu-se dos mais variados truques para que nunca lhe pedissem a morada ou a levassem a casa. Isto tudo com uma bebé de pouco mais de um ano.
O ter-se cruzado com a Crescer — associação que trabalha na inclusão na comunidade para grupos em situação de maior vulnerabilidade e exclusão — foi a sorte grande. Passou da rua para um quarto — e em breve passa para uma casa — e dessa instituição para um restaurante, onde faz de tudo, desde cozinhar a servir à mesa.
O difícil é, aliás, conseguir cinco minutos para falar com Alexandra. É solicitada na cozinha, chamam-na da sala e nota-se a destreza no manusear dos pratos e o cuidado no trato que tem com quem serve.
À parte do que lhe é natural, Alexandra aprendeu tudo o que sabe no mês que passou na Escola de Hotelaria e, depois, com os chefs que lideram o É um Restaurante, o primeiro do País no qual só trabalham pessoas sem abrigo.
"Este percurso é apenas o início de uma nova vida", explica Américo Nave, diretor da Crescer, que adianta ainda que cada uma dessas pessoas passa seis meses no restaurante, sempre com acompanhamento de uma psicóloga, e, a partir daí, estarão prontos para entrar no mundo do trabalho.
A ideia aqui é "quebrar mitos", como faz questão de lembrar. "As pessoas sem-abrigo não são todas consumidoras de droga, não são todas doentes mentais, não são preguiçosas, nem estão na rua porque querem estar", lembra. Paulo Martins ouve atentamente esta espécie de mentor e abana com a cabeça, em sinal de concordância. Com 41 anos, este alentejano ficou desempregado e sem dinheiro para pagar, primeiro, a casa e, depois, nem sequer um quarto numa pensão. Viveu na rua, na zona dos Olivais, cerca de um mês e diz-nos: "Acredite em mim menina. Ninguém esta na rua porque quer".
Mas o que se vai poder comer aqui?
O chef Nuno Bergonse fez mais de cem entrevistas até chegar aos 14 nomes finais que compõem uma equipa que se divide, todos os dias, em dois. É que mesmo que, para já, o restaurante só sirva jantares, o trabalho começa cedo e, por isso, conta com a ajuda do chef David Jesus. "Temos duas equipas, uma vem de manhã tratar da preparação e outra, à tarde, para o serviço", conta.
Ainda que a sua área seja a cozinha, o chef, que já trabalhou no Eleven e foi jurado no Masterchef português, participou em todas as etapas, desde a decoração à arquitetura do espaço. Não esquecer que Nuno Bergonse tem-se dedicado, nos últimos anos, a causas sociais, e está à frente de projetos como o Marhaba, no qual trabalham apenas refugiados da Síria, Palestina e Eritreia a viver em Lisboa.
A carta foi pensada para ser de partilha, e a comida é, segundo explica, "de conforto, portuguesa, mas sem ser conservadora". Dela fazem parte batata brava (4,50€), sopa de castanha e funcho (4,50€), rissol de berbigão (5€) ou salada de beterraba com laranja e sésamo (6€), isto para abrir. Para pratos mais completos, o restaurante apresenta umas bochechas de porco preto com farorinha (9€), peixe com açorda de tomate (9,50€), pica pau de polvo com batata doce (9,50€), abóbora assada com queijo de cabra, cevada e avelãs (6,50€), ervilhas com porco bísaro e ovo escalfado (7,50€) e um bem típico bife com batata frita (14€).
É claro que tendo Nuno Bergonse a idealizar a carta e David Jesus a comandar a cozinha, a comida aqui importa. "Mas o mais importante é a inclusão social destas pessoas", admite Nuno. E é por isso que não põe de parte a ideia de replicar o É um Restaurante noutros locais. "Gostava de dizer que não seria preciso, mas isso não é verdade", e acrescenta: "Este conceito é válido em qualquer parte do mundo", comenta.