Vasco Santana, equilibrado numa pedra e de martelo na mão, espeta um prego na parede de casa para montar um estendal de roupa. Há quem o alerte para a proximidade da canalização. Não quer saber. Martela, martela até que sai o tal inevitável líquido mas que, para surpresa de todos, não é água. "É vinho", exclama, dando o mote a que toda a vizinhança chegue com garrafões e cântaros para encher.
Uns bons anos mais tarde e a mais de 4 mil quilómetros de distância, o russo Mikhail Ubaydulaev, chorou a rir com esta cena e não descansou até ver todos os filmes que tivessem o ator português como protagonista. Com investimentos noutros países, decidiu assim apostar em Lisboa, para que a cidade acompanhasse o seu entusiasmo em reviver estas memórias.
Não foi, então, por acaso que escolheu um dos mais típicos largos de Lisboa — o do Regedor — em pleno Rossio, para marcar território. Em conjunto com o atual diretor, Georges Hutschinski, abriu O Artista, um hotel que ocupa um edifício que se diz ter pertencido a Vasco Santana e que conta, no piso térreo, com o apoio de um restaurante que está bem longe do conceito de restaurante de hotel.
"O Ato é uma homenagem a Vasco Santana, mas sobretudo à portugalidade", garante o diretor. E, de facto, para quem tem na memória a tal cena do Pátio das Cantigas, consegue ver, mesmo antes de se sentar para comer, algumas semelhanças. "O investidor queria ter vinho a jorrar da parede", conta Georges. "Mas achei que talvez a ASAE não achasse a mesma piada". Foi aqui, e em outros tantos pontos, que entrou em ação a decoradora Nini Andrade da Silva, que soube trazer ao espaço alguns pormenores que remetem ao filme e a uma Lisboa de outros tempos, sem fixar um estado de alerta para qualquer autoridade sanitária.
É por isso que uma das paredes do restaurante está forrada a garrafas de vinho vazias a jorrar água, como uma espécie de fonte e, no chão estão colocadas passadeiras vermelhas arredondadas a simular o vinho jorrado no chão.
Todo o espaço está decorado num misto de glamour e boémio, bem ao estilo de uma Lisboa de outros tempos. E é também nas memórias e na história da cidade que o chef Miguel Laffan se inspirou para criar uma carta que grita língua portuguesa a cada escolha do menu.
Um menu que também é arte
Não é que não trouxesse consigo a estaleca de anos de cozinha ou a experiência de ter estado à frente de restaurantes como o Fortaleza do Guincho ou de ter até dado ao Alentejo a sua primeira Estrela Michelin com o restaurante L'AND, em Montemor-o-Novo. Mas aqui o desafio era diferente. "Tinha que trazer a portugalidade aos pratos, sem que isso limitasse a minha criatividade", admite.
O chef pega na carta, abre-a ao nosso lado e pára logo na primeira página. "É nas entradas que se notam mais pormenores disto que é a cozinha de autor", explica, admitindo que isso se note mais na apresentação dos pratos do que propriamente no nome. De facto, não são nomes como sopa de peixe (16€) ou salada césar (18€) que vão marcar a diferença. Mas assim que a salada chega à mesa, com generosos pedaços de sapateira e duas tostas barradas a abacate a servir de apoio ao prato, o caso muda de figura. É uma entrada, um clássico, mas que servida desta forma serve perfeitamente como prato principal.
Mas antes mesmo de passar para os pratos, ainda há que dar um salto até à lista de mariscos, todos eles de Peniche ou do Algarve e de onde constam os clássicos: percebes (90€/kg), lingueirão (18€/dose), gambas (60€/kg), berbigão (18€/dose) e amêijoas (22€/dose).
Agora sim, sentimo-nos com forças para avançar para o principal, dividido por 'peixes', 'carnes' e 'portugalidade', ainda que todos os itens do menu coubessem nesta categoria especial que Miguel Laffan criou para pôr os quatro pratos que considera essenciais para quem quer saber o que é comida portuguesa: bacalhau de cura especial nas brasas, xerém de chouriças e couves grelhadas (28€), massada de cherne e berbigão (28€), filetes de pescada, molho de pimentos assados e arroz cremoso alimonado (24€) e o prego à marisqueira (16€). Esta última escolha faz sentido para o chef, que acredita que "onde há marisco tem que haver um prego para finalizar" e também porque vai ao encontro de um espaço aberto do meio-dia à meia-noite (ou à 1h ao fim de semana), sem horas marcadas para as refeições, que pode passar apenas por um já tardio prego no pão.
Na lista de peixes há robalo, pregado e pargo (todos 30€) e nas carnes no carvão — onde aliás é torrado o pão com manteiga que religiosamente acompanha o marisco — há vazia maturada, presa de porco de raça alentejana e perna de cabrito (também 30€). Apesar da qualidade de tudo o que nos chega à mesa, ainda não estamos impressionados. Isso apenas porque ainda não viramos a página que nos leva à lista de guarnições.
Basicamente, n'O Ato, é o cliente que constrói o seu prato, um vez que cada um dos itens de carne ou peixe pode ser conjugado com uma das seguintes opções: açorda de gamas, cebolas grelhadas com bourbon e natas azedas, ervilhas salteadas, morcela e hortelã, legumes salteados com batatinha saloia, puré de batata com manteiga fumada, batata doce e ananás com sweet chili e coentros, batata frita ou — decorem o nome que nos levou o coração —migas de piso de coentros e berbigão que, se fôssemos nós a mandar na cozinha, passava já a prato principal.
Mas como é, e bem, Miguel Laffan a tomar as rédeas do espaço, a divisão mantém-se como está numa carta que, palavras do próprio, é a primeira que, depois de anos de fine dining, lhe permite "explorar o que de mais português existe na forma de cozinhar e servir".
O capítulo da lusofonia não ficava terminado se da lista de sobremesas não fizessem parte coisas como um prato de queijos (12€) ou um pudim abade de priscos (9€). Mas o chef admite que, tal como no capítulo das entradas, é nas sobremesas que encontrou espaço para criar. É por isso que aos clássicos juntou invenções como duo de chocolate, creme de pistachio e amaretto e gelado de café (9€), textura de banana, chocolate e caramelo com gelado de avelã (9€) ou mil folhas de requeijão, maçã verde e gelado de abóbora (9€).
Miguel fala dos pratos que vão chegando à mesa com a paixão de criador e a segurança de que, mesmo a alguns metros da cozinha, tudo está em boas mãos. Lá dentro está Pedro Almeida, um chef de apenas 26 anos mas que já o acompanha há três projetos e com quem partilha o mesmo palato e a mesma forma de pensar a comida. "Se eu digo mata, ele diz esfola". E nós dizemos amém a esta vontade de destrinchar Lisboa.