São oito da noite. João Menino abre as portas d'O Velho Eurico. Lá fora, já se formou há muito uma fila, sobretudo de turistas, esperançosos por uma mesa. Há também quem tenha acautelado reserva e, após a confirmação, se vá acomodando na sala tosca, com talheres e pratos desemparelhados e o típico balcão de metal dos tascos, atrás do qual a azáfama de mais um jantar já começou. Na playlist do Spotify toca "Quero Voltar", dos Anjos. É uma casa portuguesa, com certeza.
Zé Paulo Rocha, 25 anos "bem gastos", como diz, é o dono disto tudo. E o chef. Nascido e criado em Lisboa, costuma dizer que é minhoto. Os pais, naturais de Vila Nova de Cerveira, mudaram-se para Lisboa "muito novos" para trabalhar na restauração. Ainda criança, o proprietário e chef d'O Velho Eurico, acostumou-se a viver o dia a dia entre tachos e panelas. "Cresci num restaurante aqui em baixo, na Baixa, o D. João I. A minha mãe trabalhou os 9 meses da gravidez. No dia anterior [ a eu nascer] estava a fazer moelas para o dia a seguir (risos)!".
Os pais trabalharam 25 anos no restaurante, onde Zé Paulo desenvolveu o amor pela comida. "Começo a cozinhar aos 13, 14 anos, doçaria, em casa. Na verdade, eu queria ser pasteleiro. Comecei por fazer uns doces em casa, cenas que saíram super mal, tipo trocar açúcar por sal", recorda.
A Escola de Hotelaria foi o próximo passo. Após três anos de formação, aos 18 anos, decidiu que a pastelaria era mesmo o caminho que queria seguir. Mas a vida tinha outros planos. "As coisas nunca correram muito bem. Apanhei pessoal de empresas um bocado chato, ou que me trataram mal. Disso tudo, a malta da cozinha sempre me puxou muito para largar a pastelaria. Acabei por me identificar mais com esse tipo de serviço e com as pessoas em si", conta.
O momento de viragem aconteceu quando estava a trabalhar no restaurante Sal Grosso. "Não foi escolher uma vertente ou outra, foi escolher o que é tradicional e o que é taberneiro. Fazer comida de conforto e servi-la no mesmo espaço. É a partir daí que nasce O Velho Eurico."
O restaurante, situado no Largo de São Cristóvão, fica a meio caminho da íngreme subida entre a Sé de Lisboa e o Castelo de São Jorge. Já existia, com o nome Eurico Casa de Pasto, há "40 ou 50 anos". O nome mudou para O Velho Eurico pouco tempo antes de Zé Paulo assumir o trespasse, concedido com uma imposição: a manutenção do nome. "Para nós foi bestial porque não tinha uma ideia melhor", confessa.
Em agosto de 2019, as portas abriram. Depois, já sabe o que aconteceu. No segundo confinamento, apostaram no take away "e correu super bem". "Um dos focos no take away foi criar uma ligação com os locais. Antes da pandemia a cidade estava cheia de turistas e os portugueses quase não tinham oportunidade de comer aqui porque não gostam de reservar". Zé Paulo explica que o melhor desse período foi "aprender a ser resiliente". "A Ana Leão ajudou-me muito nesse processo". Enviaram menus do it yourself para o cliente terminar em casa, cartas personalizadas, escritas à mão. "Foi brutal", recorda.
"Cozinhar, qualquer um cozinha. Receber as pessoas como nós recebemos, acho que não existem muitos Euricos por aí"
O conceito da cozinha d'O Velho Eurico é não inventar. O que é bom, é bom, não há invenções nem reinvenções, mas há elegância e delicadeza, quer na confecção, quer na apresentação, sempre sem perder a alma tasqueira.
"[O segredo] é não haver um conceito pré-definido. Tu tens um prato e tens obrigatoriamente de o transformar. Isso aqui não acontece. Olhamos, por exemplo, para uma receita da Maria de Lourdes Modesto, onde aquilo é 'quando a cebola estiver desta cor, mete o resto'. Com a nossa experiência, já conseguimos pegar numa receita destas e dar-lhe uns toques", conta. Zé Paulo não se coíbe de considerar Maria de Lourdes Modesto "um génio da cozinha", nem tão-pouco de admitir que vai buscar inspiração às receitas da icónica gastrónoma e escritora portuguesa, que morreu em 2022.
No início de fevereiro, Zé Paulo mudou totalmente o menu. Foi-se embora o chambão no bolo do caco, o hiper popular bacalhau à Brás, o arroz de pato. Houve revolta dos fieis? "Nós temos flexibilidade para ir alterando. A semana passada voltámos a ter o chambão porque havia muita malta a pedir e, como temos uma carta muito pequena, temos essa facilidade. É importante para nós irmos rodando a carta porque isto é um trabalho tão intenso que faz falta ir fazendo confeções novas", explica o cozinheiro.
A carta anterior, que fez d'O Velho Eurico 'O' sítio onde toda a gente quer comer, foi mantida durante "muito tempo". "Chegou a um ponto em que já não conseguia ver aqueles pratos. Tão cedo não quero voltar a ter bacalhau à Brás nem arroz de pato, por exemplo. Eventualmente vão voltar, mas não para já".
Zé Paulo Rocha diz que não receia as reações à mudança, mas sim à "automatização do método". "Eu não sou cozinheiro de fichas técnicas. Há uma receita, mas é tal como n0s livros da Maria de Lourdes Modesto. Os meus cozinheiros têm de sentir que, quando o alho estiver no ponto que eu quero, vai entrar a cebola. Não consegues escrever poesia sobre isso."
Quem consegue cozinhar e funcionar em equipa num espaço exíguo como é a cozinha d'O Velho Eurico, consegue fazê-lo em qualquer lado. Zé Paulo Rocha escolhe as pessoas, primeiro, pela humildade. "Têm de se dar bem com pessoas. Ou tentar. Isso é um percurso. Quando eu comecei a servir às mesas, não sabia falar com pessoas e agora adoro."
No final de janeiro, O Velho Eurico venceu, pelo terceiro ano consecutivo, o Prémio Especial Mesa Diária 2022, atribuído pelo Mesa Marcada, galardão que distingue o melhor restaurante de preço moderado. "Foi muito especial este ano porque os dois prémios passados não souberam ao mesmo. Foi via zoom, não houve uma gala. Foi brutal ver a malta toda da indústria reunida, poder levar a equipa acima do palco para recolher o prémio, foi muito fixe."
O que é que faz d'O Velho Eurico o sítio onde toda a gente quer ir? "Paciência, acima de tudo. Nada do que somos agora é o que éramos. Os frutos que estamos a colher não estava à espera de os colher tão cedo nem estava à espera que corresse tão bem. É esforço, dedicação, muita vontade. Acima de tudo, a simpatia e a hospitalidade que nos caracterizam. Cozinhar, qualquer um cozinha. Receber as pessoas como nós recebemos, acho que não existem muitos Euricos por aí", explica Zé Paulo Rocha.
Afinal o que é que se come aqui?
A cena tem graça, é caricatural mas demonstrativa do quão desejada é uma mesa n'O Velho Eurico. Já estávamos sentados quando, porta adentro, chega um turista. Algo irritado, começa a olhar, inquisitivo, para trás do balcão. A conversa resume-se mais ou menos a isto. "Há milhares de restaurantes em Lisboa e eu escolhi o vosso para jantar! Como é que não consigo reserva?". Ao viajante nervosinho lá foi explicado que, para reservar uma mesa, é preciso não só enviar email, como esperar uma resposta. E que, naquele dia (2 de fevereiro), os jantares já estavam todos reservados até "meados de março". É a vida.
Basta ir às plataformas onde é possível deixar críticas (Tripadvisor, Google, por exemplo) para perceber que há muita gente furiosa por não conseguir mesa n'O Velho Eurico. Também há criticas de pessoas que nem lá comeram e que destroem de alto a baixo o staff, a comida, o espaço, que dizem que o restaurante passou a ser da moda por causa "das redes sociais" e dos "amigos".
Só podemos falar da nossa experiência e essa diz-nos que comemos bem. Ainda voltando às críticas, há também quem diga que O Velho Eurico ficou careiro. Aqui fica o que havia para escolher nesse dia. Garantimos, como bons garfos, não só que as doses são generosas mas também que já comemos menos, pior e muito (mas muito!) mais caro.
#oconceitoépartilha. Vai mesmo assim, numa hashtag cansada, porque já estamos fartos de ouvir esta cantilena nos últimos quatro, cinco anos. Mas é mesmo assim, é mandar vir pratos e ir comendo até só restar espaço para a sobremesa. E acreditem, têm mesmo de guardar.
Tasco que é tasco tem que ter cesto do pão e qualquer coisa para acompanhar. Neste caso, veio o molho do chambão, escuro, apurado e untuoso, para ensopar o miolo fofo, e também um queijinho grelhado. Dica de insider: peçam a manteiga com mel que é usada para fazer o pudim de pão. Depois barrem no pão. Depois comam. Era só esta dica. Agradeçam depois.
Quando vimos coelho frito (8€) na ardósia, vieram-nos logo às memórias férias passadas em Vila do Bispo, onde este prato, acompanhado por generosos palitos de batata frita (caseira, claro) aconchegava o estômago depois de um dia a mergulhar nas não muito cálidas águas da praia do Castelejo. O coelho estava estaladiço por fora, tenro e húmido por dentro, como se quer. Dispensamos, em geral e na vida, molhos, exceto se for em junk food, e aqui também passávamos bem sem a maionese. Mas percebemos a ideia.
O pastel de massa tenra de leitão (4,50€) estava perfeito. Bem frito, massa não demasiado grossa, recheio generoso e bem temperado. A única desilusão da noite aconteceu com outro prato pelo qual temos afeição pueril: punheta de bacalhau (9€). Se precisarem de uma pausa para fazer trocadilhos e piadas, nós esperamos.
Ok. Então. A punheta de bacalhau, avinagrada, com rodelas generosas de cebola crua e muita pimenta branca, tem n'O Velho Eurico uma versão mais suave. A textura do bacalhau estava no ponto, as lascas sedosas e húmidas, mas faltava acidez e o prato veio demasiado aguado.
O que não desiludiu (e também faz parte dos nossos pratos favoritos) foi o arroz de polvo (10€). Diferente, mais apurado, avinagrado, com um ligeiro sabor fumado dos pimentos assados, com os pedaços do molusco no ponto, sem estarem demasiado cozinhados.
Salsicha, couve lombarda, puré (11€). E lágrimas. Não sou fã de puré porque é daqueles acompanhamentos que, quando comidos fora de casa, ou sabe a pacote ou a desilusão (ou a ambos). Mas o puré do Zé Paulo é pura emoção. Cremoso, delicado, o veículo perfeito para a salsicha, bem estufadinha, com molho apurado, vestida com o seu casaquinho de lombarda.
Borrego e castanhas (12€), ou como converter uma não-apreciadora de carne ovina e daquela fruta. Zé Paulo bem pode dizer que isto aqui é um tasco, mas a técnica, a ousadia dos sabores, o engenho do molho apurado, são de fazer inveja a muitas criações de fine dining. O toque de hortelã, a refrescar a intensidade da carne do borrego? De mestre.
Eis-nos nas sobremesas e a viajar, mais uma vez, à nossa infância. Lembram-se da Romântica, aquela tarte gelada da Olá, cheia de rococós, chocolate crocante e que os nossos pais nunca nos deixavam comer por ter (alegadamente) whisky?
Pois que a sanduíche de salame de chocolate com gelado de nata, azeite e avelãs (5€) d'O Velho Eurico nos leva até esses almoços gloriosos de domingo, em que o pedido por uma Romântica acabava sempre negado, em prol de um Pingu. Já adultos, vingámo-nos e esta versão romântica de 2023 encheu-nos as medidas.
Se forem mais do que duas pessoas à mesa, vale mesmo a pena pedir mais do que uma sobremesa. A nossa favorita, a mousse de lima com limão e suspiro (5€) é, como contou Zé Paulo Rocha, inspirada na mousse brasileira. O lemon curd, ácido e adstringente, casa na perfeição com a doçura do suspiro.
E para os que gostam da expressão "outra vez arroz?" nada como terminam com uma dose tripla do mesmo. Arroz doce, com arroz tufado e gelado de arroz doce (5€). Caseiro, estaladiço, cremoso, aconchegante, refrescante. "Isso tudo?", perguntam vocês. Isso tudo.
Zé Paulo Rocha não está a reinventar a cozinha tradicional portuguesa. Está a honrá-la. Maria de Lourdes Modesto ficaria orgulhosa do seu discípulo.
*A MAGG visitou O Velho Eurico a convite do restaurante