O Vila Bica abriu em plena pandemia da Covid-19, há dois anos, junto ao ascensor da Bica, que liga o Cais do Sodré ao Bairro Alto há 130 anos. Uma refeição neste restaurante vem sempre acompanhada do avistamento do elétrico — portanto, mais lisboeta seria impossível.
O barulho do elétrico a percorrer a linha é o cúmulo da confusão e faz com que tenhamos de levantar a voz para ser audível. Porém, a esplanada está inserida numa praceta sossegada, onde, de quando em vez, surgem moradores a pendurar a roupa no estendal ou turistas em posicionamento estratégico para capturarem a melhor imagem do icónico transporte.
A MAGG almoçou no Vila Bica e deparou-se com um dilema. Não queríamos tirar os olhos dos cativantes pratos, mas também era impossível deixarmos passar a grande mancha amarela sem a apreciarmos. Estivemos à mesa com João Augusto, o chef responsável pela ementa do espaço.
Uma ementa multifacetada numa esplanada convidativa
Esta encontra-se disponível em cada uma das mesas, em formato QR code. Foi concebida para agradar a todos os fregueses e é por isso que tem opções de carne, peixe, vegetarianas e vegan. São sempre pratos cujo intuito é partilhar e, de acordo com o chef, comer com a mão, já que são "mais dirty".
Um menu "mais jovem", com uma "vibe mais cool e descontraída". "Aqui não há um conceito definido. Uma cozinha transversal a toda a gente, portugueses, turistas, todas as idades. É aquilo que eu acho que faz sentido nesta zona", explicou à MAGG, garantindo que todos os pratos têm "um bocadinho" dele, pelo menos desde maio deste ano, quando assumiu as funções que hoje desempenha.
João Augusto quis mudar completamente o conceito que existia quando chegou, a começar por abrir "de manhã à noite". Todos os dias há alguém a cozinhar até às 22h30 ou, às sextas e sábados, até às 23h30. Até agora, está "a correr super bem", graças à "boa energia" constante, que também testemunhámos.
A esplanada do Vila Bica, onde passámos umas valentes horas, tem 18 lugares, todos com almofadas e protegidos por chapéus. Durante o inverno, terão aquecedores e mantas para assegurar o conforto. Na parte de dentro, que para o chef "é como o Brasil", devido ao calor, há outros 16 lugares com vista para uma das cozinhas mais pequenas que já vimos. Custa a crer que é dali que saem as delícias que provámos.
A magia é feita apenas com uma fritadeira, uma salamandra e uma placa de indução. Forno nem vê-lo, mas também não se sente a falta. O nosso primeiro contacto com o Vila Bica foi nas redes sociais, onde descobrimos a existência de ostras a 1€, que nunca antes havíamos provado.
O restaurante lisboeta onde pode comer ostras por apenas 1€
Aproveitámos a ocasião para ficar a conhecer mais um molusco, que julgávamos não estar ao alcance de qualquer carteira. Mas essa ideia cai por terra ao visitar este restaurante que tem Fábio Fevereiro e Bruno Santos como proprietários, principalmente durante as Oyster Weeks.
Nestas semanas das ostras, cada um dos bivalves custa apenas 1€. A promoção está sempre limitada ao stock existente e apenas é válida para quem, com a devida antecedência, reservou mesa pelo Instagram ou por SMS. Com esta iniciativa, visam "dar às pessoas a oportunidade de apreciar uma coisa que produzimos muito em Portugal".
Segundo o que nos contou o chef João Augusto, quando compradas aos produtores, a unidade chega a custar 1€, o que permite entender até que ponto está em causa, de facto, uma pechincha (daquelas com sabor a mar). Sem a promoção, cada uma tem o valor de 3€.
As Oyster Weeks são uma boa ocasião para apreciar esta iguaria sem ter de gastar muito dinheiro, mas também para a ficar a conhecer se, tal como nós, nunca antes a tiver comido. No Vila Bica são servidas ao natural ou condimentadas com óleo verde, pickle de cebolinho e piripi (6€).
No que depender do chef, irão "manter as ostras para sempre" no menu, faça chuva ou faça sol. João Augusto apela a todos que não desperdicem esta oportunidade por preconceito. "As ostras de viveiro não são perigosas de comer, porque são eliminados todos os vírus. São bivalves que passam por um processo de depuração", alerta.
Um almoço que repetíamos todos os dias, se possível
Mas nem só de ostras vive o Vila Bica. São, no total, 18 os pratos por onde terá de escolher. E acredite que não será uma escolha fácil. A premissa da partilha vai ajudá-lo a conseguir provar mais do que o que seria habitual. As doses, embora sejam generosas, não são gigantescas, o que é bom, pois vai precisar de espaço e apetite.
Começámos por provar as gyozas com kimchi, cebolinho, sriracha, paprica fumada e raspa de lima. Uma mão cheia delas custa 6€ e, como diz o chef, "quem é que não gosta de gyozas?". A seguir a este prato vegan veio outro: as espetadas de cogumelos, com hoisin, óleo de sésamo e lima (7€).
Para alguém que mete sempre qualquer cogumelo na borda do prato, podemos dizer que gostámos desta versão e que, se não soubéssemos, nem diríamos que se tratava deste fungo. Passámos para os rolls, que se tornaram presença obrigatória na carta depois de o chef se ter apaixonado por um lobster roll que comeu no estrangeiro, numa barraquinha de rua.
De lagosta nunca provámos, mas o roll de tártaro da vazia (14€) conquistou um lugar no nosso coração. No fundo, é uma carne crua com avelãs, cebola roxa e chilli verde colocada no topo de um pão brioche, depois irrigado com molho holandês (o mesmo que é utilizado nos ovos Benedict).
Além de nos estrearmos na degustação da ostra, também comemos pela primeira vez o interior de uma palmeira. Chama-se palmito e é o protagonista do roll vegetariano (11€). Só nos faltou comer o picante roll de atum (14€), mas fica para uma próxima (que, por nós, era já hoje).
Depois de lambermos os dedos com estes rolls gulosos, passámos para o prato de peixe, que consiste num crudo com vinagrete de pepino, rábano, gengibre, coentros, malagueta e maçã verde (10€). Leva o peixe do dia curado — que, neste caso, foi corvina — e é envolvido numa pasta feita com sal e açúcar.
Deve comer-se à colher, como se de uma sopa se tratasse. Fresco, acaba por limpar o paladar para o próximo prato. E nós não estávamos preparados para a vazia maturada e chimichurri (13€). Uma carne tenra e saborosa que surgiu cortada às tiras, polvilhada com sal grosso, com uma tira de gordura e quase crua por dentro (que é exatamente como gostamos).
Como se não estivéssemos já convencidos a voltar, o chef João Augusto ainda nos deu a provar as duas sobremesas presentes na ementa: a mousse de chocolate, caramelo e amendoins (6€), que, acredite ou não, é vegan, e o brioche, torrado com manteiga, com gelado de baunilha por cima, lima e flor de sal (6€), por seu turno vegetariano.
A supremacia do brioche é justificada. Em vez de baunilha, tantas vezes desprezada, na opinião do chef, João Augusto queria servir gelado de nata e vodka. Estamos certos de que, como tudo o resto que provámos, resultaria. O contraste do doce com o salgado deste prato com influências indonésias deixa a vontade de comer mais um pouco.
Acompanhámos tudo isto com cocktails feitos pela barwoman Joana: um de vodka, espumante, pepino, hortelã e limão, que nos foi aconselhado para beber com as ostras, e um de pisco, vinho do Porto, sumo de limão, maracujá e açúcar. O valor de cada cocktail varia entre os 8 e os 10€, mas também pode optar por vinho, espumante, cerveja, sumo ou água.
O percurso do chef responsável por estas criações
Se todos os pratos do Vila Bica têm história, quem é este chef que a conta? Desde pequeno que João Augusto tinha um gosto por esta área, que nasceu graças aos serões que passava com os pais na cozinha. Pelo que nos disse, estavam longe de ser grandes cozinheiros. "O melhor prato do meu pai era bifes de cebolada", acrescentou.
Mesmo assim, tornou-se o amigo que fazia sempre a comida. Mas nem sempre quis fazer disto vida. Estava a tirar Gestão de Empresas quando o pai morreu. "Desisti", admitiu à MAGG, acabando por não concluir esta formação. Convidaram-no a ir trabalhar para a Zomato, onde o bichinho da cozinha foi alimentado. Mais tarde, pegaria pela primeira vez de forma profissional nos tachos no "The Food Temple".
A adrenalina que sentia por estar ao fogão ditou que o seu percurso passaria por muitos outros restaurantes (como Boi-Cavalo, 1300 taberna e Terraço Editorial). Também por isso, e encorajado por amigos do meio, procurou obter formação em cozinha. Muitos eventos como private chef e caterings depois, surgiu a oportunidade de uma vida.
Um resort na Indonésia precisava de um chef. Inicialmente, João Augusto não queria candidatar-se, mas as amigas lá o convenceram. O que é certo é que quiseram avançar para entrevista. "Isto não pode estar a acontecer. É um sonho", pensou. Mesmo assim, demorou uma semana a construir um currículo.
Ficaram indecisos entre três pessoas. Além de João, um chef do Hawai e uma que já vivia na Indonésia. "A possibilidade de me escolherem era zero", sentia. Mas estava enganado. "Em 15 dias, arrumei a minha vida e fui para lá", continuou a contar-nos este chef que rumou sozinho ao continente asiático no final de 2018.
Viveu um ano na ilha de 2 km onde ficava o Aloita Resort. A sua rotina, como recorda, era acordar às 5 horas da manhã, visitar a cozinha, ir surfar, voltar para a cozinha, fazer massagens, cozinha, e por aí fora. Apesar de se dedicar mais a comida ocidental, aproveitava para fazer refeições para locais, que lhe diziam que era o ocidental que tinha começado a falar indonésio mais rápido (ficou fluente numa questão de "dois ou três meses").
Desde comer minhocas a abrir os cocos para fazer óleo de coco e a desmanchar o venenoso peixe balão, foram muitas as experiências que viveu. "Aprendi muito. Curti muito", assegura. "Tudo aquilo que faço tem alguma influência de lá", disse-nos, ainda sobre a forma como elaborou o menu do Vila Bica.
João Augusto lembra a vez em que foi de carro desde a Bélgica para a capital francesa com um amigo com o único propósito de comer ostras — pediram 60. Chegou a tornar-se vegetariano e depois até vegan, mas não resistiu ao javali concebido pelo chef João Baião. Hoje, com 36 anos e dois filhos, continua a ser contra a acomodação.
Desde as exigências aos funcionários ao tempo que dedica a conversar com os clientes, preocupado em recolher o feedback e em fazê-los sentirem-se bem-vindos, nota-se facilmente que tem uma grande paixão pelo que faz. E também por isso criou o Kue, um projeto paralelo dedicado a sobremesas vegan.
Este menu do Vila Bica vai sofrer alterações muito em breve, para ficar "algo mais invernal", com "sabores mais asiáticos, algo com abóbora, castanhas". "A minha vida não é permanente", justifica, pelo que considera que também a ementa não o deve ser. Se isso significar que vêm aí pratos tão bons ou melhores do que aqueles que comemos, somos muito a favor.