Qual é o melhor presente que se pode dar a um fã da Eurovisão? Um bilhete para a final. E foi exatamente isso que aconteceu, seguido de pouco mais de 24 horas de uma viagem alucinante, que culminou com um lugar na Liverpool Arena, para assistir, ao vivo e a cores, ao espetáculo da 67.ª edição do Festival Eurovisão da Canção, este passado sábado, 13 de maio. Toda a gente já sabe que Loreen, representante da Suécia, venceu, e que Mimicat ficou em 23.º lugar. Mas ainda há histórias para contar, daquelas que não apareceram na televisão.

1. O melhor protesto político de sempre

A 31 de janeiro de 2020, o Reino Unido oficializava a saída da União Europeia, resultado de um referendo realizado quatro anos antes e que dividiu a população praticamente a meio (52% para o 'sim', 48% para o 'não'). O tema continua a ser polémico e nada como um evento com projeção mundial como a Eurovisão para ter atenção mediática. O movimento EU flags Proms começou em 2016 como uma forma de protesto contra a saída do Reino Unido da UE e, desde então, tem distribuído milhares de bandeiras da União Europeia em eventos públicos. Quando chegámos a Liverpool, vimos centenas de fãs a acenarem com a bandeira de fundo azul e 12 estrelas. Inicialmente, nem sequer pensámos no tema, mas, depois, caiu-nos a ficha: "Isto não tem nada que ver com a Eurovisão!".

E, à medida que nos íamos aproximando da Liverpool Arena, onde decorreu o espetáculo, mais e mais bandeirinhas. Até que, finalmente, encontrámos os responsáveis pela distribuição em massa deste símbolo: vários voluntários com T-shirts a dizer "Thank EU for the Music", um trocadilho com a sonoridade da palavra "you" e a sigla "EU", European Union, que, pronunciadas em inglês, soam da mesma forma, e também uma alusão à música homónima dos ABBA, os mais famosos vencedores do Festival Eurovisão da Canção.

Voluntárias do movimento Thank EU for The Music a distribuir bandeiras no exterior da Liverpool Arena
Voluntárias do movimento Thank EU for The Music a distribuir bandeiras no exterior da Liverpool Arena

A União Europeia de Radiodifusão, entidade organizadora da Eurovisão, nasceu em 1950, sete anos antes da Comunidade Económica Europeia (CEE, atual UE). Apesar do nome, as entidades não estão correlacionadas, embora tenham em comum a génese europeia. Participam no certame de música vários países que não só não pertencem à União Europeia como nem sequer fazem parte do continente europeu (como, por exemplo, Israel ou a Austrália). O resultado foi um mar de bandeirinhas da União Europeia erguidas com orgulho (ou talvez algum inocente desconhecimento) num país que abandonou esta união económica e política e num espetáculo que, historicamente, tem uma aversão a manifestações políticas, ao ponto de as penalizar ou mesmo proibir.

A bandeira da União Europeia pode ser vista no fã à esquerda
A bandeira da União Europeia pode ser vista no fã à esquerda créditos: EBU

2. Não há pai para os ingleses quando é para organizar uma festa

Já tínhamos visto, mas apenas pela TV, como os ingleses são competentes a organizar mega-eventos. Vimo-lo nos jubileus de Diamante e Platina da rainha Isabel II, nos Jogos Olímpicos de Londres, nos casamentos de Kate Middleton e do príncipe William, do príncipe Harry e de Meghan Markle e, mais recentemente, na coroação do rei Carlos III. Mas testemunhar isto ao vivo é outra loiça.

Uma das entradas da Liverpool Arena
Uma das entradas da Liverpool Arena créditos: MAGG

Dos restaurantes às paragens de autocarro, dos bares aos cafés, nas ruas, em qualquer local público, tudo e toda a gente estava em estado de espírito eurovisivo. Festas temáticas, artistas de rua, coros de idosos, crianças a tocar violino, Liverpool entrou em força no espírito da Eurovisão. A cidade encheu-se de gente, mas nem por isso houve confusão, falta de sítios para comer, beber, apanhar sol, descansar ou mesmo apanhar um táxi, um comboio ou autocarro. Já na Liverpool Arena, fosse no exterior ou no interior, centenas de voluntários nem sequer esperavam pelos pedidos de ajuda e eram os primeiros a abordar os fãs para perguntar se precisavam de algum esclarecimento. Lixo nas ruas no dia seguinte? Nem vê-lo. 12 points go to... Liverpool!

3. Teleponto deixa zero margem para improviso

Tudo o que é dito em direto, seja nas semifinais seja na final da Eurovisão, é ensaiado. Mesmo aquelas conversas improvisadas com os concorrentes, quando estes estão na green room, são previamente combinadas, para que haja a menor margem possível para erros, atrasos, ou até súbitos desabafos. E isso fica especialmente visível ao vivo, porque o teleponto dos quatro apresentadores é um ecrã gigante, onde as falas vão aparecendo e até indicações de "ad lib" (ou seja, um momento em que os apresentadores podem improvisar).

Os apresentadores da final da Eurovisão Alesha Dixon, Julia Sanina, Hannah Waddingham e Graham Norton
Os apresentadores da final da Eurovisão Alesha Dixon, Julia Sanina, Hannah Waddingham e Graham Norton créditos: EBU

4. A atuação mais espectacular ao vivo (e menção honrosa para os técnicos)

Caixas e caixinhas, bailarinos, danças exóticas, mudanças de roupa em palco, pirotecnias várias, ecrãs gigantes com projeções, animações e tudo o que o dinheiro pode comprar e a tecnologia pode fazer. Nesta 64.ª edição da Eurovisão houve de tudo e cada país trouxe a palco os recursos que pôde pagar para tornar a sua performance ainda mais espetacular. Talvez em casa o impacto não tenha sido tão grande, mas, ao vivo, "Break a Broken Heart" foi tão impactante que quase ficámos com as pestanas queimadas. Literalmente. Andrew Lambrou, representante do Chipre, atuou em frente a uma cascata virtual até sensivelmente ao meio da canção.

Depois, quatro caixas colocadas em palco incendiaram-se, fazendo uma coluna de fogo, enquanto, na frente do palco, várias labaredas eram projetadas do chão. A dimensão deste verdadeiro incêndio controlado era tal que, mesmo estando no segundo balcão, conseguimos sentir a intensidade do calor (além de, visualmente, o efeito ser impressionante ao ponto de emocionar). Assim que a música terminou, vários técnicos entraram em palco, munidos de luvas gigantes e, em menos de 90 segundos, retiraram toda a parafernália cipriota para dar lugar ao cenário que receberia a atuação seguinte, a de Espanha. Impressionante.

Andrew Lambrou, do Chipre, cantou
Andrew Lambrou, do Chipre, cantou "Break A Broken Heart" créditos: EBU

5. Deram-nos tampa na Liverpool Arena

Vamos ser honestos, a parte das votações é uma seca. E se, em casa, a malta pode aproveitar para fazer um zapping, comer uns petiscos, beber uns canecos, numa sala de espetáculos as opções são sempre mais limitadas. Tal como em Portugal, não é possível levar bebidas do exterior, embora houvesse bastante oferta dentro do recinto. Quando decidimos comprar uma garrafa de água a 2,20 libras (2,53€), já nos estávamos a preparar para o filme de ter de levar o recipiente sem tampa para o nosso lugar, sabendo que, inevitavelmente, aqueles 2,53€ iriam acabar no chão ou, pior, no casaco ou na mala de alguém. Mas não. Não nos deram a garrafa com tampa, não senhor, mas passaram o líquido para um daqueles copos gigantes de refrigerante, com a respetiva tampinha e ainda uma palhinha. Sim, sabemos que não é espetacular para o ambiente, mas que querem? Nós, que somos team água, ficámos fãs.

O verdadeiro vencedor da Eurovisão 2023? A Finlândia

Temos de declarar a nossa parcialidade. Estávamos a torcer pela Finlândia, mesmo sabendo de antemão que todos os grupos de fãs, casas de apostas, blogues e demais plataformas eurovisivas davam como certa a vitória da Suécia. Loreen, com a sua "Tattoo", nunca nos impressionou, não só por ser uma atuação demasiado parecida com o que já tinha feito em 2012, quando venceu a Eurovisão com "Euphoria", mas também por ter aquela vibe de música que se ouve na playlist de uma aula de RPM, enquanto suamos que nem cavalos e o instrutor grita "VAMOOSSSSS!!!! ACREDITEM EM VOCÊS!!!! CARREGAAAA!".

"Cha cha cha", a inusitada, intrigante e até constrangedora atuação do finlandês Käärijä, acompanhado dos seus ainda mais estranhos bailarinos de danças de salão, todos eles em rosa-choque, estranhou-se, mas depois entranhou-se. Mas nada nos poderia preparar para o que testemunhámos (e sentimos) na Liverpool Arena.

Ficámos sentados à frente de um grupo de cerca de 40 finlandeses, por isso pareceu-nos normal estar, mesmo antes de a emissão começar, a ouvir constantemente, em altos berros, "Käärijä! Käärijä!" (pronuncia-se "cá-ri-á") e "cha cha cha!". Mas, quando o cantor de 29 anos e os seus quatro bailarinos subiram a palco, foi como se todo o público, de repente, fosse possuído por um espírito finlandês. Foi o único momento das três horas de emissão em que praticamente toda a arena se pôs de pé, cantando em plenos pulmões "cha cha cha!", mesmo sem perceber o que quer dizer o resto da letra, que fala sobre bebidas alcoólicas, sair à noite, mas também sobre libertação, auto-estima e superação de problemas.

E o coro de "cha cha cha" não ficou por aqui, aparecendo ao longo do resto da noite, vindo de todas as partes da arena, não só da torcida finlandesa. Ali, na sala de espetáculos, mesmo antes do início da votação, Käärijä já tinha ganhado. O entusiasmo pela canção concorrente daquele país nórdico foi tal que, a determinada altura, os apresentadores tiveram de fazer uma pausa para que o "cha cha cha" ensurdecedor amenizasse.

E isso só aconteceu quando, mesmo na reta final das votações, a soma dos votos do júri com os do público acabou por dar a vitória à Suécia (embora a Finlândia tenha vencido no sufrágio popular). Curiosamente, a Suécia volta a ser anfitriã do certame no ano em que se comemoram 50 anos da vitória dos maiores ícones da música sueca, os ABBA, na Eurovisão. Coincidências, haverá? "Cha cha cha".

Loreen voltou a vencer a Eurovisão, 11 anos depois de
Loreen voltou a vencer a Eurovisão, 11 anos depois de "Euphoria" créditos: EBU

*a MAGG assistiu à final do Festival Eurovisão da Canção a convite da Easyjet, parceira do evento no Reino Unido